Thursday, October 31, 2019

LUZ


"-Hum?
- Tu és especial. - disse Hallorann, voltando-se para ele. - Sempre chamei isto de luz interior. Era como a minha avó também lhe chamava. Ela tinha a luz. Costumávamos estar sentados na cozinha quando eu era um menino da tua idade, e tínhamos longas conversas sem nunca abrir a boca.
- A sério?"

Stephen King, A Luz, trad. Regina Estêvão, sic Idea, 2009, p. 80.

Wednesday, October 30, 2019

OVERLOOK


"O vento suspirava entre as árvores, e as folhas caídas arrastavam-se ruidosamente sobre a calçada e à volta das jantes dos carros estacionados. O ruído era fraco e triste, e o menino pensou que talvez fosse o único habitante de Boulder acordado àquela hora e capaz de ouvir aquilo. Pelo menos, o único ser humano. Não havia maneira de saber que mais seres poderia me andar soltos no meio da noite, vagueando famintos, às escondidas, entre as sombras, procurando os cheiros trazidos pela brisa."

Stephen King, A Luz, trad. Regina Estêvão, sic idea  Editorial, p.56.

Tuesday, October 29, 2019

MEDITAÇÃO



"A morte é um encontro com nós próprios: sejamos pontuais ao menos uma vez na vida."

André Ruellan, Aqui Jaz, trad. Vilhena (?), Lisboa: Edições Branco e Negro, s.d., p. 48.

Monday, October 28, 2019

APENAS UMA SOMBRA




"levarás somente um remo aos ombros
pegarás fogo a tudo o resto: o leito reencontrado
os dias felizes com Penélope
todas as vinganças
que de nada te aproveitaram

em tua última viagem
renunciarás também a Ítaca
serás ninguém e everyone
viandante desconhecido
apenas uma sombra sobre a terra

diante de ti as novas colunas de hércules:
hades ou éden"


Mário Rui Oliveira, O Livro da Consolação, Lisboa: Assírio & Alvim, 2019, p. 30. 

Sunday, October 27, 2019

MISTÉRIO (para o Divino José Bento)



"Avaramente usarás um dom, raro
mesmo para as pétalas, rarefeito em tua volta
mas que, ao acumular-se, 
diz o segredo do que não mostra a sua cor, 
a tonalidade dos abismos do ar, da água:
é um mistério a imposição
do manto com que consagras o azul."


José Bento, Silabário, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 201. 

Saturday, October 26, 2019

O PERDÃO




"a luz a ninguém perdoa
todos fogem de seus segredos
para dentro de uma coisa
ainda mais incerta

quando a vi
seus olhos
pareciam correr
por entre linhas inimigas
«não desças já não desças
faz comigo esta viagem
até ao fim» - disse - 

escapando assim do meu ou do seu
coração perdido"


Mário Rui Oliveira, O Livro da Consolação, Lisboa: Assírio & Alvim, 2019, p. 22. 

Thursday, October 24, 2019

VIDA DUPLA



"Muitos anos depois, em Londres, retomara o antigo hábito. Era bom para o seu trabalho. Observar os outros. O rosto de uma pessoa quando pensa que está sozinha. Quando pensa que não está a ser olhada. Um gesto, uma expressão, um olhar, podiam ser reproduzidos mais tarde, num palco, e ganhar uma importância que nunca haviam tido. Era um pouco assim que compunha as suas personagens, pedaços de si própria, pedaços dos outros. E também era interessante ver a reacção de uma pessoa quando percebia que estava a ser seguida todas as noites. Como se o mais insignificante empregado de um bar ou arrumador de cinema tivesse uma vida dupla, e entrasse em pânico ao perceber que alguém o espiava. Ela gostava de infundir medo. E quando a enfrentavam, o que havia a fazer era ficar em silêncio e olhá-los fixamente, e depois voltar-se e ir embora. Com o coração a bater muito depressa, claro. Talvez a esfaqueassem durante uma das suas perseguições nocturnas."

Ana Teresa Pereira, O Mar de Gelo, Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 43. 

Wednesday, October 23, 2019

O NÃO SABER



"Donde veio dizer de ti aquele famoso poeta Ovídio, na Arte que fez de bem amar, que eras não sabia quem, vinhas não sabia por onde, mandava-te não sabia quem, geravas-te não sabia como, contentavas-te não sabia com quê e eras sentido não sabia quando, matavas não sabia porquê, e finalmente que sem nos romper as veias nos sangravas, e esgotavas todo o sangue. Enfim, és alma do mundo, e se como tal tens de tua natureza ser comunicativo, não é muito que te achem entre cruéis, e que tu sejas um deles. És peçonha que logo derramas pelas veias, erva que logo prende em as entranhas, pasmo que faz adormecer os membros, e fim que o dás a todos."

Gaspar Pires de Rebelo, Infortúnios Trágicos da Constante Florinda, ed. Nuno Júdice, Lisboa: Teorema, 2005, p. 43. 

Tuesday, October 22, 2019

WE HAVE MUCH TO HOPE FROM THE FLOWERS




"A neve continuava a cair, os flocos esvoaçavam, e o silêncio... o silêncio de Deus. Lembrou-se de uma frase de Sherlock Holmes. «We have much to hope from the flowers.»
- E também temos muito a esperar da neve. 
Só uma divindade boa nos daria as flores. Só uma divindade boa nos daria a neve. As provas da existência de Deus."


Ana Teresa Pereira, O Mar de Gelo, Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 80. 

Monday, October 21, 2019

ENVOY



"Às vezes pensamos que, tal como as estrelas nos enviam luz de há milhares de anos, nós próprios vivemos há muito tempo este dia que hoje estamos a viver de novo."

Ramón Gómez de la Serna, Greguerías, trad. Jorge Silva Melo, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 55. 

Sunday, October 20, 2019

ALÉM



"Muitos aléns ficam aquém daquilo que seria para desejar. Embora seja grande a variedade de aléns - pois há-os de luxo, de classe turística e de mais baixas categorias, para empregados públicos e indigentes - a verdade é que as pessoas nem sempre vão para o além que lhes convém. Não é raro, por exemplo, que um asceta, dado às mortificações da carne e a outras atividades masoquistas, vá cair num além maometano com odaliscas, danças de ventre e capitosos banquetes e relaxações. E também não é a primeira vez que acontece a um amante da paz ir para o «repouso dos guerreiros» onde não encontrará para conviver e palestrar durante toda a eternidade outras pessoas que não sejam os que pertenceram em vida às hostes de Gengis-Kan ou aos quadros das SS e da Gestapo."

André Ruellan, Aqui Jaz, trad. Vilhena (?), Lisboa: Edições Branco e Negro, s.d., pp. 83-84. 

Saturday, October 19, 2019

ENSINAR




"A chuva martela o ventre redondo do amor.
(A tempestade é cheia de censuras.)

De pé, bem seguro nas pernas, o homem desafia o raio. 

Entre o dedo do pé e o indicador erguido, o sol ensina a ver."



Edmond Jabès, A Obscura Palavra do Deserto (Uma Antologia), trad. Pedro Tamen, Lisboa: Cotovia, 1991, p. 31. 

Friday, October 18, 2019

EXPRESSÃO



"Ao nível do pensamento, foi um facto beneditino, porque à medida que as mãos faziam o que nunca tinham feito, o pensamento adquiria uma expressão que nunca tinha tido. Sem que déssemos por isso, o social afasta-se, e não houve nesse movimento nem nostalgia, nem provocação."

Maria Gabriela Llansol, A Restante Vida, Lisboa: Relógio d' Água, 2001, p. 116. 

Thursday, October 17, 2019

EMURCHECIDA




"Na floresta emurchecida há um canto de ave
que parece sem sentido, nesta floresta emurchecida. 
E, porém, o rotundo canto da ave descansa 
neste instante que o criou, 
amplo como o céu sobre a floresta emurchecida.
Docilmente tudo se instala nesse grito:
o país inteiro parece repousar nele em silêncio, 
como se soubesse coisas que
matariam qualquer um."


Rainer Maria Rilke, O Livro das Imagens, trad. Maria João Costa Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 91. 

Tuesday, October 15, 2019

INFINITAMENTE



"E tu esperas, aguardas a única coisa
que aumentaria infinitamente a tua vida;
o poderoso, o extraordinário, 
o despertar das pedras, 
os abismos com que te deparas."


Rainer Maria Rilke, O Livro das Imagens, trad. Maria João Costa Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 99. 

Monday, October 14, 2019

RESISTÊNCIA



"A vida sempre destrói fórmulas feitas. A derrota pode vir a revelar-se como o único caminho para a ressurreição, não obstante os seus diminutos atractivos. Sei perfeitamente que para criar a árvore se condena uma semente a apodrecer. O primeiro acto de resistência, se sobrevém demasiado tarde, é sempre um acto de perda. Mas é o despertar da resistência. Talvez venha a produzir uma árvore, como acontece com uma semente."

Antoine de Saint-Exupéry, Piloto de Guerra, trad. Ruy Belo, Lisboa: Editorial Aster, s.d., p. 125. 

Sunday, October 13, 2019

RECORDAR



"Segundo uma personagem de Iris Murdoch, existem anjos, anjos caídos, deuses-animais, espíritos soltos que vagueiam no vazio. Quanto aos anjos, se não existissem Rilke tê-los-ia criado, como ao seus Deus, «quero espelhar-te sempre em corpo inteiro»; dos anjos caídos, além do que aprendi no «Livro de Henoch», há um outro conhecimento, mais íntimo, de que tive consciência em ver o seu rosto. Um rosto que provoca um arrepio gelado, e depois o pressentimento de um mundo mais antigo, porque tem algo que nos faz recordar o divino (Platão), ou a queda, o caos e as trevas - não consigo imaginar tanta escuridão concentrada num outro ser."

Ana Teresa Pereira, O Ponto de Vista dos Demónios, Lisboa: Relógio d'Água, 2002, p. 19. 

Saturday, October 12, 2019

LUGARES



"Fora em lugares como estes que Cristo estivera quando se recolheu no deserto, quando esperava a morte e quando foi crucificado. Fora em lugares como estes que tinham vivido santos, profetas e eremitas."

Antónia Fialho Conde (coord.), Lux Anima - Iluminuras na Biblioteca de Évora, Lisboa: althum.com editora, 2017, p. 73. 

Friday, October 11, 2019

DUPLO SILÊNCIO




"Assim ficámos por testemunha da lamúria de um pobre desconhecido:
é um lugar que está fora da casa, em que poderei ficar se não fizer muito frio. Atravessei toda a floresta para encontrar um sítio onde repousar. Na aldeia, em todos os sítios, havia alguém ou um rasto. 
Voltei, portanto, aqui, ao local de trabalho que, não funcionando, sugere um duplo silêncio, um silêncio dobrado como dobradas são certas dores densas."


Maria Gabriela Llansol, A Restante Vida, Lisboa: Relógio d' Água, 2001, p. 73.

Thursday, October 10, 2019

ILUMINAÇÃO



"Uma iluminação súbita parece às vezes que vem fazer bifurcar um destino. Mas a iluminação não passa de uma visão instantânea que o espírito tem de um caminho lentamente preparado. Aprendi a gramática a pouco e pouco. Exercitaram-me na sintaxe. Fizeram despertar os meus sentimentos. E eis que um poema me bate bruscamente à porta do coração."

Antoine de Saint-Exupéry, Piloto de Guerra, trad. Ruy Belo, Lisboa: Editorial Aster, s.d., p. 61. 

Tuesday, October 8, 2019

AS CIRCUNSTÂNCIAS



"Não há circunstância que consiga despertar em nós um estranho de cuja existência nem sequer teríamos suspeitado. Viver é nascer lentamente. Não é certo que seria demasiado simples receber almas já acabadas?"

Antoine de Saint-Exupéry, Piloto de Guerra, trad. Ruy Belo, Lisboa: Editorial Aster, s.d., p. 61. 

Monday, October 7, 2019

A PACIÊNCIA


"Levados pela corrente, passámos por um país cheio de contradições: preparámo-nos para voltar aos trabalhos do trabalho; atingimos o mar em poucos dias, no promontório; tínhamos seguido sempre o rio nos múltiplos aspectos; os camponeses haviam sucumbido arrastados pelo céu de brilho permanente. Para aí chegar é preciso que o destino tenha paciência."

Maria Gabriela Llansol, A Restante Vida, Lisboa: Relógio d' Água, 2001, p. 50. 

Sunday, October 6, 2019

DANTA' S AVENGE




"Cardeal Rufo:
Sobre um beijo outro beijo e sobre um ano outro ano...
Como envelhece a gente o velho Vaticano!
A política... o mal que se faz e desfaz
No mistério subtil destes panos de Arrás...
A intriga na sombra, os passos sempre incertos...

Cardeal Gonzaga, olhando a estante de música:
O que nos vale...

Cardeal de Montmorency:
Ah, sim... São os nossos concertos."


Júlio Dantas, A Ceia dos Cardeais, 51ª ed., Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1973, p. 23. 

Saturday, October 5, 2019

EXUL



"Somos o fruto de uma experiência de exílio. e temos uma língua e uma liberdade próprias. Praticámo-la durante infindos anos numa casa aberta e fechada. Com todos os espíritos nos deslocámos."

Maria Gabriela Llansol, A Restante Vida, Lisboa: Relógio d' Água, 2001, p. 66.  

Friday, October 4, 2019

PROMESSA



"«Sabes, disse Cristo, o que eu fiz? Dei-te os Estigmas que são as marcas da minha Paixão, para que sejas o meu porta-estandarte. E, tal como eu, no dia da minha morte, desci ao Limbo e de lá tirei todas as almas que encontrei, também a ti, pela virtude dos meus Estigmas, concedo que todos os anos, no dia da tua morte, vás ao purgatório e que de lá tires todas as almas das tuas três Ordens, quer dizer, dos Menores, das Irmãs e dos Continentes, e também de todos os outros que te tenham sido muito dedicados, as que encontrares tira-las, por virtude dos teus Estigmas, e conduze-las à glória do paraíso, para que sejas como eu na morte como foste em vida.»"

Florilégio, trad. M.F. Gonçalves de Azevedo, Lisboa: Estampa, 1991, p. 187. 

Thursday, October 3, 2019

INOCÊNCIA



"A Condessa de Ségur fala de um livro que não é um livro. Carrega-se num botão a meio e o falso livro abre-se e é uma caixa de tintas. Que maravilha! Gostava de pegar num livro assim e de carregar no botão. Maravilhas do século XIX."

Adília Lopes, Manhã, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 117. 

Wednesday, October 2, 2019

SONHANDO





"SONHANDO DANÇAS, VÍGIL, MARCAS PASSO.
Vivendo dormes, vives se adormeces
Na caixinha de música em que esqueces 
Como um velho sobre o éter do bagaço, 
Oh, em ti rodopias, pobre piasca, 
Que sonhas teu compasso visionário, 
A falsa valsa, o baile imaginário
Nos clássicos salões da tosca tasca. 
E abraços tantos são em que te abraças
Que em sonho lasso o abraço lhe prolongas;
Em aguardente imerso o capitão
Assim aceita os braços de outras braças. 
A vida... Porque nela te delongas?
A vida cabe toda num caixão."


Daniel Jonas, Nó - sonetos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, p. 13. 

Tuesday, October 1, 2019

CONTO DE OUTONO



"«Ferva a água, sem no entanto a deixar ferver em cachão: o chá aprecia a calma!»

Maria de Lourdes Modesto, A colher de pau


Acho que nesta citação
está o Zen o Yoga o Tao
a sabedoria oriental
a poesia
a negentropia
tudo de bom

Tanzt die Orange
escreveu Rilke
nos sonetos a Orfeu
dansai a laranja"


Adília Lopes, Manhã, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 111.