Sunday, January 31, 2010

BALANÇO MENSAL 01



"Os deuses ou são mortos ou são caídos,
Quais duros aldeões dormindo as sestas,
Ou andam, pelos astros perseguidos,
Chorando os velhos tempos das florestas.

Os reis ressonam nas devassas festas:
Já os frutos do Mal estão crescidos:
Ó Sol, há muito que tu já nos crestas!
E aos nossos ais o Céu não tem ouvidos!

Há muito já que o Olimpo está vazio,
E no seio de um astro imenso e frio
É morto o Deus do Testamento Velho.

Apenas, sobre o mundo eterno e aflito,
Fausto rebusca o x do infinito,
E Satã dorme em cima do Evangelho."


Gomes Leal, "Claridades do Sul", in Poemas Escolhidos (Antologia), Lisboa: Círculo de Leitores, 1988, p. 9.

Saturday, January 30, 2010

DO GÉNIO, COM O EXEMPLO DE CAMILO

"Quem quiser ler Camilo em esplendor e glória, leia a Maria da Fonte, um dos maiores livros de língua e fígados e corações portugueses. Camilo é isso: génio truculento, estilo maduro de risadas entre aventuras truanescas e sentimento sufocado de algumas lágrimas. Homem da nossa lei, nem bom, nem fingido; capaz de matar com os olhos fechados e de renegar até a honra, se ela é negócio de ferir os outros. Português, não há outro tão grande nas letras. Pese aos mequetrefes da escola romântica, e realista e estrutural, todos juntos. Quando alguém, como Orfeu, consegue ser arrebatado à morte através da fidelidade de quem o ama, é porque na sua obra existe alguma coisa que não pertence ao esquecimento. Camilo é um Orfeu a meio caminho do inferno e da sua libertação. É preciso amá-lo sem consentir dúvidas a seu respeito, para que ele more com os vivos e não com os mortos."

Agustina Bessa-Luís, "O Romanesco em Camilo - A Enjeitada", in Camilo, Génio e Figura, Lisboa: Casa das Letras, 2008, pp. 25-26.

Tuesday, January 26, 2010

DA ESPERA PELAS PROMESSAS ANTIGAS



"E conhecerás a natureza do éter e do éter todos
os sinais, e da pura e brilhante luz do sol
as obras invisíveis e de onde provêm;
e saberás os efeitos circulares da lua a girar
e a sua natureza, e conhecerás o céu que os contém a toda a volta
de onde ele nasceu e, como conduzindo, o obrigou
a Necessidade a conter [no seu limite] os astros."


Parménides de Eleia, Sobre a Natureza, trad. António Monteiro. Lisboa: Lisboa Editores, 1999, frgm. 10, p. 44.

Monday, January 25, 2010

DA CONDIÇÃO ABSOLUTAMENTE ROMÂNTICA

"A brisa voga no prado
Perfume nem voz não tem;
Quem canta é o ramo agitado,
O aroma é da flor que vem.

A mim, tornem-me essas flores
Que uma a uma eu vi murchar,
Restituam-me os verdores
Aos ramos que eu vi secar...

E em torrentes de harmonia
Minha alma se exalará,
Esta alma que muda e fria
Nem sabe se existe já."


Almeida Garrett, Folhas Caídas, Lisboa: Editorial Ulisseia, 1998 (reimpr.), p. 153.

Sunday, January 24, 2010

DO SENTIDO ECFRÁSTICO



"Autoritário, assim percorreu o exército: e para a assembleia
se precipitaram eles de novo, de junto das naus e das tendas,
com o estrondo da onda que no mar marulhante rebenta
contra a longa praia e das profundezas sai um rouco bramido."


Homero, Ilíada, C.II, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Cotovia/Biblioteca editores Independentes, vrs 207-210, p. 54.

Thursday, January 21, 2010

DA BREVIDADE



"A brevidade
é um corpo indeciso, anónimo.
Um corpo que desliza e
sombrio
permanece na simetria confusa do
recorte; vento e linha.

A brevidade
desliza da noite
surge da multitude animal e provoca,
atravessa sem remorso a
tão humana imagem."


João Miguel Fernandes Jorge, a jornada de cristóvão de távora primeira parte, Lisboa: Editorial Presença, 1986, p. 51.

Tuesday, January 19, 2010

VITAE SUMMA BREVIS


"Demoradamente, do gume do sono,
ergo-me tarde e sem vontade se a manhã
é uma letra morta sobre a cama.

Sei que os dias se contam em surdina:
certo é a morte cobrir-me por inteiro
com uma pá de terra quando friabilidade

das paredes e tudo o mais se desmorona,
ao mar! Hoje não me leva já o enlevo dos sentidos
dar a volta à cidade num circunlóquio.

Mas ao sair, quase tangíveis na descida do elevador,
deixo precipícios do olhar num turvo espelho.
Na rua tributa-se com lembranças a memória em hora de ponta.

Túmidos são os lábios para o vocábulo inútil
e o sorriso mordaz, brusca a dança dos braços
a ver se um voo me alça pra longe daqui...

Um dia mais bordeja o século que finda.
Em vão buscar noutros corpos certeza
e tangibilidade do que formos ainda?"


Paulo Teixeira, Autobiografia Cautelar. Lisboa: Gótica, 2001, p, 41.

Wednesday, January 13, 2010

NOVA TEOGONIA


"Pensando bem, raramente pronunciavam a palavra «amor». Talvez fosse uma coisa bastante fictícia, bastante inútil na vida. Os padres e os políticos falavam de amor. Os fadistas, os poetas, toda essa gente descarada e consumidora de lagostins e de cerveja. Mas vivia-se bem sem o amor. Ou antes, vivia-se melhor sem ele.
Porque: o tal fogo que arde sem se ver é um estado de combustão espontânea que a natureza celebra de tempos a tempos com as suas florestas e pântanos do neolítico, seja o que for.
Porque: o amor é completamente discriminado, proibido e desfavorecido na sociedade moral e ululante quando se trata do amor e as suas repercussões. Não se trata da moral pequeno-burguesa, mas do edifício de dissimulações que faz a sociedade viável dentro dos seus compromissos. E por falar em neolítico, imaginem que aquela terra descampada e seca fora há dez milhões de anos um prado verde, com lagos de límpida água, fresca como um beijo de menino. Viviam lá tartarugas gigantes e sáurios que se arrastavam pelas margens. Flores grandes e pensativas desabrochavam à brisa da noite. Ouvia-se um murmúrio, talvez de sangue que escorre, uma vez a presa abatida. A alma da terra não tinha palavras para se descrever. O amor não tinha sido ainda inventado; só a criação acontecia, vigorosa e imensamente ignorante de Deus. E Deus não existia, porque não era irmão da sua imagem que lhe daria nome e reconhecimento. E um dia a terra morreu, ficou pálida e sedenta, o vento levantava o pó e cobria o céu de pó. Foi quando o homem e a mulher, feitos do pó, começaram a sua caminhada."


Agustina Bessa-Luís, Memórias Laurentinas, 2ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, pp. 126-127.

Tuesday, January 12, 2010

A TRANSITÓRIA FORMA CASUAL


"XVIII. Há horas, em que eu sou apenas uma transitória forma causal! Dir-se-á que a folha seca do outono adquire consciência, no meu ser, e vê, com os meus próprios olhos, a sua palidez moribunda, o seu voo incerto e o charco para onde o vento a leva...
Súbito, aparece, em mim, alguém que estava ausente. Arde-me o sangue, nas veias; exalto-me, aspiro, quero ser. E digo: Eis a minha fragilidade; mas sou eu que a contemplo. Eu e ele somos duas criaturas... E, tocado de sobrenatural, pergunto a mim mesmo, ironicamente, como a pessoa estranha: Quem és tu? Tu não és mais que a minha pobre sombra. Macaqueias a minha presença... E rio-me de mim."


Teixeira de Pascoaes, Verbo Escuro, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 60.

Thursday, January 7, 2010

PRIMEIRA NEVE/A LONGÍNQUA MONTANHA


" Neste mundo
Por cima do inferno
Contemplo as flores

(...)

A longínqua montanha
Reflectida nos olhos
Duma libélula

(...)

Cerejeiras em flor -
E no entanto
Sofrimento e corrupção

(...)

Imperfeito este mundo
E contudo
Recoberto de flores"



Issa Kobayashi, Primeira Neve [haikus], versões de Jorge Sousa Braga. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, pp. 20;21;23;25.

Tuesday, January 5, 2010

O DESEJO DE PERMANECER NA MONTANHA MÁGICA

"Vivemos, porque os nossos olhos encarceraram as cousas e os seres em pequenas formas limitadas. Que seria de nós se as víssemos nos seus aspectos verdadeiros? A presença duma árvore petrificar-nos-ia, de repente!
Vivemos, porque os nossos olhos dão às cousas uma aparência banal e familiar. Se pudéssemos ver a nossa dor! Desvanecer-se-ia por encanto. Nada resiste ao fogo visionário que lampeja nas pupilas.
Os desertos e as ruínas - uma obra dos nossos olhos, não do tempo.
Os astrónomos, espreitando as regiões celestes, afugentaram os anjos e os deuses. O telescópio é que matou o Paganismo e converteu o Infinito num deserto.
O que descobrimos do mundo é o que resta do seu desencanto, ao ser contemplado pelos homens; - os escombros dum incêndio."


Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo, Obras Completas de Teixeira de Pascoaes, IX vol., Amadora: Livraria Bertand, 1973, p. 120.

Sunday, January 3, 2010

REGRESSO AO REALISMO MÁGICO E À MONTANHA



"E, depois, peço licença - continuou António Joaquim - para ponderar que as tuas fantasias romanescas são, na maior parte, desnaturais e falsas.
- Ora essa!...
- Espanta-me; mas não te agastes com esta rudeza. Sabes que eu leio os teus romances: é o máximo sacrifício que posso fazer-te das minhas horas de repouso. Em louvor dos teus livros, basta dizer-te que os leio. Prendem-me a curiosidade uns paradoxos de virtude que tu estendes a trezentas páginas. Já fizeste chorar minha mulher; quase que ma ias fazendo nervosa! Foi-me preciso dizer-lhe que tu mentias como dois ministérios, e que timbravas em ter um estilo de cebola ou de mostarda de sinapismos que faz rebentar chafarizes de pranto. Nem assim consegui desacreditar-te! Assim que sai romance teu, minha mulher, combinada com o editor, seca-me a paciência, até que o livro chega de Braga entre um papeliço de açúcar, e o saco do arroz. A pobre mulher começa a chorar no título; estrenouta-se a ler; e, ao outro dia, está desolhada, e amarela como as doze mulheres tísicas que tens levado à sepultura num rio de lágrimas. Tens romances, meu amigo, que mentem desde o título. Comecei, pouco há, a ler um que se chama: «A mulher que salva».
-Então - acudi eu - que tem esse título?
- Não tem senso comum.
- Estou pasmado!... Pois a mulher que salva...
- Não há mulher nenhuma que salve. Homem perdido por uma, não pode ser salvado por outra.
- Cala-te aí! Tu não sabes nada do coração humano, António Joaquim! (...)"


Camilo Castelo Branco, Vinte Horas de Liteira, 2ª ed. revista pelo autor, Lisboa: Companhia Editora de Publicações Illustradas, s.d. pp. 15-16 [actualização do texto]

Saturday, January 2, 2010

O CHAMADO REALISMO MÁGICO



"Poucas horas depois, a esposa do médico...
- Que podia ter morrido de paixão e de vergonha, talvez! - exclama uma leitora sensível.
- Não, minha senhora; o estudante continuava nesse ano a frequentar a Universidade; e, como tinha já vasta instrução em patologia, poupou-se à morte de vergonha, que é uma morte inventada pelo visconde de A. Garrett no Fr. Luís de Sousa, e à morte da paixão, que é outra morte inventada pelos namorados nas cartas despeitosas, e que não pega nos maridos a quem o século dotou de uns longes de filosofia, filosofia grega ou romana, porque bem sabem que os filósofos da antiguidade davam por mimo as mulheres aos seus amigos, quando os seus amigos por favor lhas não tiravam. E esta filosofia hoje então..."


Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, Lisboa: Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, 1991, pp.193-194.

Friday, January 1, 2010

AVISO DE MAU TEMPO PARA OS LEITORES


"Chove há muito no mundo sobre o homem
Empurram-no as ondas como horas para a praia da manhã
lá onde a ponta mais ocidental dos dedos já percorre
as mais agrestes árvores do sonho
O homem nada sabe sem queimar os pés no fogo
As luzes brilham cedo certos anos o Natal não vem
e é opinião comum de todos os doutores
que a culpa pode ser secreta e primitiva
pois a ninguém cabe servir a dois
muito menos a mais e mesmo muito mais que dois senhores
Morremos todos da maneira mais mortal possível
mas todas as crianças se conhecem e reconhecem
na praia que talvez - quem sabe? - alguma outra praia encubra
Essa é na verdade a mais pequena de todas as sementes

Talvez eu espere simplesmente um amigo que de longe venha,
ó tecelão de outonos nos cabelos"


Ruy Belo, "Tempora Nubila", in O Problema da Habitação - Alguns Aspectos. Lisboa, ed. Presença, 4ª ed., 1997, p. 44.