Saturday, June 23, 2007

SONHO ORVALHADO DE VERÃO


"Julguei que se tinha levantado um obelisco místico no meio da praça; e que o obelisco dava uma sombra azul; e que tinham acendido um fogão no quarto húmido; e que tinham dado alta ao doente.

Julguei que nascia o sol à meia noite; e que uma boca muda me falava; e que esfolhavam lírios sobre o meu peito; e que havia uma novena ao pé do Jardim de Aclimação.

Uma boca muda me falou; mas o obelisco, de ténue que era, não deu sombra; e o fogão não aqueceu o quarto húmido; e o doente teve uma recaída.

(...)

E no dia seguinte, em vez dos sacros livros, que de ordinário me deleitam, li Schopenhauer, e achei Artur Schopenhauer setecentas vezes superior a todos os Doutores da Igreja"


Eugénio de Castro, in "Horas", Obras Poéticas de Eugénio de Castro, Tomo I, ed, dirigida por Vera Vouga, Col. Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, nº 85, Porto: Campo das Letras, 2001, pp. 165-166.

Wednesday, June 20, 2007

SUMA E VENAL TRANQUILIDADE


"Fique na Terra a triste humanidade
Nos seus loucos intentos enredada
Visto que essa só é sua vontade
Para Nós seja a paz tão desejada
Seja a suma e venal tranquilidade
Nada requeiro mais de Deus mais nada."


Ângelo de Lima, Poesias Completas, org. Fernando Guimarães, Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, p. 42.

Sunday, June 17, 2007

OLHAR DE TRAVÉS

"Enquanto o homem aristocrático vive numa atitude de confiança e de franqueza para consigo próprio (a palavra grega «de nascimento nobre» sublinha a «fraqueza» mas também por certo o matiz da «ingenuidade»), pelo contrário, o homem de ressentimento não é franco, nem ingénuo, nem tão-pouco frontal e sério perante si mesmo. A alma deste homem olha de través, o seu espírito gosta de recantos, de caminhos tortuosos e de portas das traseiras, encanta-se com tudo o que é recôndito, porque esse é o seu mundo, a sua segurança, o seu conforto. É especialista em calar-se, não esquecer, esperar, e em amesquinhar-se ou humilhar-se provisoriamente."

Nietzsche, Para a Genealogia da Moral, trad. José M. Justo, vol. VI, col. Obras Escolhidas de Friedrich Nietzsche, Lisboa:Relógio D'Água, 2000, pág. 38.

Sunday, June 10, 2007

ENCONTRAR MORTALMENTE A LUZ DA VIDA

LVII

"Imortais mortais, mortais imortais,
vivendo a morte destes, morrendo a vida daqueles"


Heraclito, Fragmentos Contextualizados, trad. Alexandre Costa. Lisboa: IN-CM, 2005, p. 148.

Saturday, June 9, 2007

RECORDANDO A MAGNÓLIA NUM JARDIM FECHADO



EXPLICAÇÃO DA AUSÊNCIA

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer - fosse abertura -
E a saudade é tudo ser igual.


Daniel Faria, Explicação das Árvores e de Outros Animais.

Tuesday, June 5, 2007

CELEBRANDO A MAGNÓLIA-MONTAGEM EM TETRAEDRO DE LUZ, REMATANDO COM VERSOS DE ALBANO MARTINS


I.

Mulheres pela noite dentro levando nas patas
grandiosos lenços brancos.
Correndo com lenços muito vivos nas patas
pela noite dentro.
Lenços vivos com suas patas abertas
como magnólias
correndo, lembradas, patas pela noite
viva. Levando, lembrando correndo.

II.

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
e antes magnólias amo
que a glória e a virtude.

Logo que a vida não me canse, deixo
que a vida por mim passe
logo que eu fique o mesmo.

III.

7
Magoa ver a magnólia cair. Acredita
O relâmpago vem
Sobre ela. A tempestade.
As plantas são tão frágeis como as cabanas dos homens.
Somos muito frágeis os dois neste poema
Com o relâmpago, a cabana, com a magnólia aos ombros,
Sem nenhum terreno pulmonar intacto

IV.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim


OUTRA VEZ A SURDA
RESPIRAÇÃO DOS LÁBIOS,
OS PULMÕES
DA TERRA QUENTE. AQUI,
A MAGNÓLIA DOS SÍMBOLOS,
A FLORIDA,
INCANDESCENTE METÁFORA.

(I-Herberto Helder, II-Ricardo Reis, III- Daniel Faria, IV- Luiza Neto Jorge; remate de Albano Martins)

Friday, June 1, 2007

ANGELOGRAFIA 4



"Aceno-te com as cores deste palácio
encerrado nos dizeres demorados das flores.
Quase perdi a noção do tamanho
que têm as palavras, rezando-te.
Lembro que me esqueci de respirar
quando te julguei por aqui.

e que nada soube acerca da morte,
nesse momento."


Pompeu Miguel Martins, O Livro do Anjo (Anjo 8). Vila Nova de Famalicão: Quasi Ed., 2001, p. 21.