Monday, September 30, 2019

A REALIDADE




"O que os poetas provam é que é preciso uma imagem para revelar o que a realidade não existe. 
No livro do imaginário a lua é verde de morrer, as cadeiras brancas, e a terra amarela começa a dormir - gosto dos poetas claros. 
Não, ainda não."

Herberto Helder, Photomaton & Vox, 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 60. 

Sunday, September 29, 2019

MICHA'EL



"Aqui por baixo um actor movimenta alguma crueldade. Apenas a maçã reineta faz parte do reino das naturezas mortas."

Fernando Grade, Serenata ao Diabo, S. João do Estoril: edições Mic, 1978, p. 50. 

Saturday, September 28, 2019

POETA PORTA




"O segredo é brusco e
fundo - tem olhos de lobo. 
Até esta criança que não sabe de vulvas nem
de guerras (é tudo o mesmo, às vezes)
parece um ciclone ateado por cisternas
- está limitada a Nordeste oh varandas lisas
ripas compridas curvam-lhe mais os ombros
como pássaros embrulhados pela língua
hirtos de musgo. 

Poeta porta - a criança vai explodir 
na beleza corrosiva verme e aço
leopardo roendo maçãs sonoras diante do mar."


Fernando Grade, Serenata ao Diabo, S. João do Estoril: edições Mic, 1978, p. 31. 

Friday, September 27, 2019

A BELA CULTURA



"Procuras homens de bela cultura? Deves então, como quando procuras belas regiões, contentar-se com pontos de vista e perspectivas limitadas. Sem dúvida que existem também panorâmicos, sem dúvida que são, como as regiões, brilhantes e cheios de ensinamentos: mas sem beleza."

Friedrich Nietzsche, Aurora, 511, trad. Rui Magalhães, Porto: Rés Editora, s.d., p. 226. 

Thursday, September 26, 2019

EXPRESSÃO


"Gosto de que me desenvolvam a unidade do amor em colunas diversas e em cúpulas e em esculturas patéticas. Ao exprimir a unidade, diversifico-a infinitamente e tu não tens o direito de te escandalizares."

Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela, trad. Ruy Belo, 3.ª ed., Lisboa: Editorial Aster, 1973, p. 163. 

Tuesday, September 24, 2019

CHEGADA




"E, daí a pouco tempo, quando a Primavera
Reverdecer os campos, eu hei-de chegar
À terra, numa flor que tenha a cor da hera, 
Pra que o Outono, outra vez, a venha desfolhar!"


Teixeira de Pascoaes, À Minha Alma, in Belo. À Minha Alma. Sempre. Terra Proibida, ed. António Cândido Franco, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 91. 

Monday, September 23, 2019

EQUINÓCIO




"Que bom haver realidade,
a luz, o calor, o cheiro
e estas pedras tão pequenas
a desenharem-se em chão.

Que felicidade
o mundo não ser apenas
o nevoeiro
da minha imaginação!"


José Gomes Ferreira, "Café", in Poesia - III, Lisboa: Círculo de Leitores, 1973, p. 131. 

Sunday, September 22, 2019

ESCONDER




"Só árvores no mundo 
a taparem o céu
de haver mistérios
para além dos pássaros.

Só árvores no mundo...

E os homens sem morte
a desenharem no chão
pátrias de preguiça."


José Gomes Ferreira, "Província", in Poesia - III, Lisboa: Círculo de Leitores, 1973, p. 101. 

Saturday, September 21, 2019

ESTRANHEZA




"A. Sabe, menina Júlia, é muito estranha. 
C. Talvez seja. Mas você também. E é tudo tão estranho. A vida. Os seres humanos. Espuma e lama que flutua à tona de água e depois se afunda."


A. Strindberg, Menina Júlia, trad. J. A. Osório Mateus, Lisboa: a regra do jogo, 1980, p. 15. 

Thursday, September 19, 2019

REVOLUÇÕES




"A pedra da meia-noite 
gira
detrás da testa. 
O século 
dá uma reviravolta. 
O vídeo cospe
mais uma história,
é o teu filme privado
tardio. 
Também ele só
trata de ti."


Richard Wagner, Castanhas Quentes e Outros Poemas, trad. colectiva, Lisboa: Quetzal Editores, 1994, p. 15. 

Wednesday, September 18, 2019

LÁZARO



"Um dia ouvi umas vozes que vinham de fora. 
Por fim vozes de fora, pensei, vozes de outros
que transportam a luz dentro de si e que a dizem, 
que me chegam do ar e não de mim. 

Vozes que ao chegar eram sussurros. 
Passos que pararam diante da minha porta. 
Alguém disse: Aqui jaz, como se o lesse. 
Calaram-se os demais. 
Uma voz chamou-me: Lázaro, disse, 
levanta-te e caminha
Reconheci-a mas fingi não a ouvir. 
Lembrei-me de Jonas. Fiquei quieto, 
Pensei: preferiria
não o fazer, não sair nunca daqui. 

Conheço demasiado bem o mundo. 
Lá fora, sei, espreita o mau amor, 
seu mel amargo, seu engano, sua ameaça. 

Levanta-te de ti. Sai da sepultura
Mas eu detestava os milagres. 

E além disso tinha
demasiado apego à minha vida de morto. 

Deixei passar os anos. Agora espero
uma voz que me chame, que me diga
o que tenho de fazer, o que desejo."


Juan Vicente Piqueras, Instruções para Atravessar o Deserto, trad. João Duarte Rodrigues e Manuel Alberto Valente, Lisboa: Assírio & Alvim, 2019, pp. 39; 41. 

Tuesday, September 17, 2019

ANONIMATO



"A pouco e pouco as paredes afrouxaram o seu abraço, porque não há amor eterno entre as pedras. Uma a uma redescobriram, nas ruínas, o anonimato do seu destino."

Edmond Jabès, A Obscura Palavra do Deserto (Uma Antologia), trad. Pedro Tamen, Lisboa: Cotovia, 1991, p. 27. 

Monday, September 16, 2019

HÁBITO




"Rupert.   Do you remember your chest complex, Brandon?
Brandon.  My chest complex?
Rupert.     Yes. Whatever the story was - piratical, detective, murder, adventure or ghost - it always contained a marvellous dénouement with a bloody chest containing corpses. You had a perfect mania for it, don't you remember?"


Patrick Hamilton, Rope: a Play, Act II, 3.ª ed. (reimpr.), London: Constable & Co, 1947, p. 45. 

Sunday, September 15, 2019

COR




"A vida dispõe de todas as cores, que aviva; a morte só de uma dispõe, que impõe."


Edmond Jabès, A Obscura Palavra do Deserto (Uma Antologia), trad. Pedro Tamen, Lisboa: Cotovia, 1991, p. 51. 

Saturday, September 14, 2019

ARGUMENTAÇÃO




"Pelo quarto, que empestava a fenol, viam-se moscas mortas. Oscar perguntou-me se eu queria ouvir um sermão ou se preferia que brincássemos aos enterros. No guarda-fato guardava um caixãozinho para bebé. Respondi-lhe que não acreditava em Deus, e então Oscar coçou a cabeça, assegurando-me ao mesmo tempo que a existência de Deus estava cientificamente provada, que o maior cientista do mundo era um russo chamado Einstein, e que esse Einstein tinha entrevisto o rosto de Deus nas suas fórmulas matemáticas. Disse-lhe que tão-pouco acreditava em histórias da carochinha e pouco depois estávamos zangados. Ele, que era mais forte do que eu, torceu-me o braço e exigiu que eu reconhecesse a existência de Deus. Senti dores, tive medo, mas não gritei por socorro porque era muito possível que ele fosse maluco, e eu sabia que os idiotas têm de levar avante a sua vontade, de contrário nunca se sabe o que pode acontecer. Apressei-me a dizer que sim, que acreditava que Deus existia."


Ingmar Bergman, Lanterna Mágica, trad. Alexandre Pastor, Lisboa: Relógio d'Água, 2012, p. 297. 

Friday, September 13, 2019

IMAGEM



"Tradicionalmente, o Inferno e o Limbo eram figurados de maneira diferente. O primeiro, por uma grande torre arruinada com uma goela de dragão servindo de porta. O segundo, com uma torre colada ao Inferno. Nas artes plásticas, o Paraíso era muitas vezes figurado pela fachada de uma igreja."

Maria José Palla, A Palavra e a Imagem, Lisboa: Editorial Estampa, 1996, p. 18. 

Thursday, September 12, 2019

PENSÉE




"O meu amigo Erland Josephson disse uma vez que devemos evitar conhecer pessoas, porque então começamos a gostar delas."

Ingmar Bergman, Lanterna Mágica, trad. Alexandre Pastor, Lisboa: Relógio d'Água, 2012, p. 272. 

Wednesday, September 11, 2019

ESTRUTURA



«Mais algumas linhas sobre Grevenius. Tinha visto um dos meus primeiros filmes e queixou-se. De mau humor, disse-me que o filme, a meio, tinha "um furo". Defendi-me, explicando-lhe que o actor, no filme, fazia o papel de um medíocre. A isto replicou Grevenius: "O papel de um medíocre nunca deve ser representado por um medíocre, o de uma mulher ordinária por uma mulher ordinária, o de uma prima-dona presumida por uma prima-dona presumida."»

Ingmar Bergman, Lanterna Mágica, trad. Alexandre Pastor, Lisboa: Relógio d'Água, 2012, p. 171. 

Tuesday, September 10, 2019

FIRME



"Quando, firmes, de pé, e frente a frente, 
As nossas duas almas se encontrarem, 
E, em silêncio, as asas alongarem, 
Co'os extremos rompendo em chama ardente, 

O mundo deixarão dificilmente,
Por mais que as fira. Temo que as separem
Os anjos que, cantando, as rodearam, 
Quebrando o seu silêncio fundo e quente. 

Ficarão mais unidas, não saindo
Do mundo. Este, volúvel, pressentindo
Almas esquivas, há-de abandoná-las;

Elas sempre um recanto hão-de encontrar, 
Onde se possam, por um tempo, amar, 
Com as trevas e a morte a rodeá-las."


Elizabeth Barrett Browning, Sonetos Portugueses, trad. Manuel Corrêa de Barros, Lisboa: Relógio d' Água,  1991, p. 55. 

Sunday, September 8, 2019

COMO ABELHA NUM COPO



"Não te queixes do rosto pensativo
E triste que te mostro. Para o lado 
Oposto ao que o teu olha, está voltado;
Não pode reflectir clarão tão vivo. 

Tu, se pensas em mim, não tens motivo
De recear, pois o meu ser, cansado, 
No círculo em que a dor o tem fechado, 
Como abelha num copo, está cativo.

Mas eu só penso em ti, considerando, 
P'ra além do amor, o fim do amor; prevendo
Que tudo há-de, por ti, ser olvidado.

Como quem, de alto monte contemplando, 
Um fresco vale, está, ao longe, veno
Brilhar, depois do rio, o mar salgado."


Elizabeth Barrett Browning, Sonetos Portugueses, trad. Manuel Corrêa de Barros, Lisboa: Relógio d' Água,  1991, p. 41. 

Saturday, September 7, 2019

PÍTON




"Então Foibos Apolo disse-lhe altivamente:
«Agora putrefactos aqui sobre a terra que alimenta os homens...»
E as trevas velaram os olhos da besta, e o ardor sagrado do sol fê-la apodrecer precisamente nesse lugar que desde então se chamou Píton, que quer dizer putrefacção.
Decerto, as velhas divindades veneradas não se deixam alojar assim sem resistência do seu terreno e dos seus fiéis; vencidas, não desaparecem totalmente; subsiste delas um cadáver que se enterra nas consciências, que apodrece provocando pesadelos, uma terrível perturbação mental."


Michel Butor, O Espírito do Lugar, trad. Rui Guedes da Silva, Lisboa: Arcádia, 1963, p. 69. 

Friday, September 6, 2019

CRIATURAS



"(Há que admitir a nossa ausência do mundo, a nossa confortável segurança perante as marionetas inspiradas com que as crianças sonham. Há que admitir a nossa irrealidade que respeita as deambulações dessas criaturas incómodas."

Edmond Jabès, A Obscura Palavra do Deserto (Uma Antologia), trad. Pedro Tamen, Lisboa: Cotovia, 1991, p. 29. 

Wednesday, September 4, 2019

NO PARQUE


"Ser daquela cidade, de Paris... e não ter de ver, todas as manhãs, a mãe com quem se encontrava no Bois e com quem dava um curto passeio na Allée des Acacias (o que levava Bella Karol a pensar ter cumprido o seu dever e a não ter de se preocupar mais com a filha até ao dia seguinte, salvo se surgisse alguma doença grave), não ter de a ver com aquela jaqueta irlandesa, com aquelas pintinhas no véu do chapéu, com aquelas saias arrastando as folhas mortas, a caminhar com um ar empenachado, de «cavalo de carro fúnebre», característico das mulheres daquele tempo, em direção a um canto da alameda onde as esperava um argentino de tez escura..."

Irène Némirovsky, O Vinho da Solidão, trad. Júlia Ferreira e José Cláudio, Lisboa: Relógio D'Água, 2013, pp. 57-58. 

Tuesday, September 3, 2019

A COR


"No espelho do armário viu, sem a reconhecer, uma menina de oito anos envergando um vestido azul e um grande avental branco, com uma cara pálida, aturdida pela violência da sua vida interior, com os dedos manchados de tinta e as pernas fortes e sólidas, calçadas com meias de algodão e grossas botinas amarelas com atacadores."

Irène Némirovsky, O Vinho da Solidão, trad. Júlia Ferreira e José Cláudio, Lisboa: Relógio D'Água, 2013, p. 23. 

Monday, September 2, 2019

DÉCIMO PRIMEIRO ANO




"Precisava de falar-te ao ouvido
De manter sobre a rodilha do silêncio
A escrita.
Precisava dos teus joelhos. Da tua porta aberta.
Da indigência. E da fadiga.
Da tua sombra sobre a minha sombra
E da tua casa.
E do chão."


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 20. 

Sunday, September 1, 2019

LANÇADO



"Como herói primitivo, com Héracles, lançado para diante da hidra com cem cabeças, o homem moderno sente que tem de recomeçar tudo, compreender de outra maneira, dominar de outra maneira e que se encontra perante uma floresta de ameaças, não lhe servindo a ciência senão para melhor lhe fazer ver a extensão."

René Huyghe, Sentido e Destino da Arte (II), trad. João Gama, Lisboa: Edições 70, 1986, p. 283.