Friday, October 31, 2008

NAS VÉSPERAS DOS MORTOS



"Nunca, entre tanta serenidade,
poderia pousar uma crispação, uma recusa
ou um brusco estremecimento do coração
desmedido. Não conhecer a paixão
é um privilégio dos mortos. Entre a mão
e a barca,
entre o silêncio e a aridez,
entre a claridade
e o tremor
caem as sombras sobre a água como
a roupa se desprende e cai do corpo desejado,
entrevisto,
como de tanto amor se tece a Morte!"


Luís Filipe Castro Mendes, "A Ilha dos Mortos", in Poesia Reunida. Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 32.

Wednesday, October 29, 2008

PFAUENINSEL 2



"Foi numa tarde na Ilha dos Pavões que sofri a minha maior derrota. Tinham-me mandado procurar penas de pavão na relva. Como se tornou mais atraente para mim a ilha enquanto reserva de troféus tão encantadores! Contudo, depois de ter, em vão, revolvido todos os cantos da relva à procura do objecto prometido, fui assaltado por uma sensação de profunda tristeza, mais do que rancor, pelos animais que com as suas plumagens intactas se passeavam diante dos viveiros. Os achados são para as crianças o que as vitórias são para os adultos. Procurara algo que a ilha me dera muito pessoalmente, que me desvendara exclusivamente a mim. Com uma única pena ter-me-ia apoderado da ilha, da tarde, da travessia de barco a partir de Sakrow; tudo isto me teria total e incontestavelmente ficado a pertencer, se tivesse encontrado a minha pena. Perdeu-se a ilha e com ela uma segunda pátria: a terra dos pavões. E, só então, antes de ir para casa, fui capaz de ler nas vidraças reluzentes do palácio os avisos que o brilho do Sol neles deixara: hoje eu não devia lá entrar.
Naquele tempo, a minha dor não teria sido tão inconsolável se não tivesse perdido uma terra ancestral por causa de uma simples pena que me escapou."


Walter Benjamin, Infância em Berlim por volta de 1900, trad. Cláudia de Miranda Rodrigues. Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 190.

Monday, October 27, 2008

ANTROPOMORFISMOS OU IMPROVÁVEIS INTERTEXTOS INESIANOS


"Azul, azul é a relva junto ao rio
E os salgueiros transbordam a cerca do jardim,
E lá dentro, a senhora, a meio da sua juventude,
Branca, branca é a face, hesita, ao passar a porta,
Delicada, adianta a sua mão delicada;

E ela foi em tempos cortesã,
E casou-se depois com um borrachão,
Que sai agora para a rua a embebedar-se
E a deixa muito, muito só."

(atribuído a Mei Shêng, 140 a.C.)


Ezra Pound, Cathay, trad. Gualter Cunha, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, p. 29.

Sunday, October 26, 2008

WHERE IS THERE AN END OF IT?



"Where is there an end of it, the soundless wailing,
The silent withering of autumn flowers
Dropping their petals and remaining motionless;
Where is there an end to the drifting wreckage,
The prayer of the bone on the beach, the unprayable
Prayer at the calamitous annunciation?"


T. S. Eliot, Quatro Quartetos, trad. Gualter Cunha, Lisboa: Relógio D'Água, 2004: pp. 58,60.

Tuesday, October 21, 2008

O SOL NO OUTONO


" Eu sou o pai do dia...
Sou velho tronco, a arder, no lar azul do espaço.
Os planetas abrange a curva do meu braço.
Eu sou um grande lar onde os mundos se aquecem...
Sempre milhar's de mãos que os gelos arrefecem
Se estendem sobre mim... E descobri entre elas,
Homem, as tuas mãos, orvalhadas d'estrelas,
De lágrimas, talvez... teu lúcido fulgor
Sabe compreender tuas lágrimas de dor
Que nas asas ideais da Vaporização
Alcançaram meu grande e ardente coração!
Vejo-as dentro de mim. E a minha luz bendita,
Que numa bênção cai da abóbada infinita,
Quando seus lábios vão beijar o pranto humano
Que lhes faz lembrar as ondas do oceano,
Sente-se triste... e vem trazer-me essa tristeza
Na nuvem que troveja e que suspira e reza!...
Tenho, dentro de mim, o humano sofrimento..."


Teixeira de Pascoaes, Para a Luz, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998: pp.78-79.

Friday, October 17, 2008

PFAUENINSEL 1



"Como há-de hoje alegrar-me à luz do dia
se não entras comigo na floresta
faísca o sol nos ramos negros Resta
que renová-lo o teu olhar podia

enquanto o ensino que o teu dedo assesta
à tábua de eu pensar se guardaria
em fiéis signos - tímido olharia
eu mas a morte vela à beira desta

estrada em teu lugar No bosque estou
mais só que arbustos onde a noite passa
Há um vento na encosta nua Dou

por claro meio-dia que me abraça
e o curvo céu mais fundo e azul prescruto
como um olho enigmático de luto."


in Os Sonetos de Walter Benjamin, trad. Vasco Graça Moura, Porto: Campo das Letras, 1999: p. 27.

Monday, October 13, 2008

UNIVERSO COMO REALIDADE AMBÍGUA




"«-O universo é uma realidade ambígua.» Por outro lado,
ele mexia o café e respirava apressadamente o ar húmido,
os cheiros da terra, a água a serpentear nos canteiros.
«- Do lado oculto, as coisas daqui tornam-se visíveis. Se-
res duplos, corpos sem alma, etc.» O contacto dos lábios
com a chávena! A neblina dissipava-se, revelando as
colinas, o pequeno bosque, casas já distantes e dispersas,
uma fogueira... e o ruído abstracto de lenha a crepitar
desviou-lhe o pensamento: paisagem? sonho? a construção
de um mundo interior no qual subitamente, ele próprio
perdesse a sua consistência - como se não fosse mais do
que um espírito vagueando entre uma e outra coisa, ali-
mentando a sua existência de qualidades diversas e con-
traditórias: a dureza de uma pedra, a transparência da
água, as cores da vegetação, o fumo do café."



Nuno Júdice, "Rimbaud Inverso", in Obra Poética (1972-1985). Lisboa: Quetzal Editores, 1991, p. 314.

Friday, October 10, 2008

O OUTONO


"O Outono não se caracteriza apenas pela queda das folhas, mas também pelo declínio das forças vitais de todos os seres, incluindo o homem.

A Via Láctea torna-se mais nítida. Todavia é a lua a alma desta estação. Na sua remota proximidade adensa o mistério da nossa existência. O vento soa também de maneira diferente e nele podemos surpreender, por vezes, o murmúrio da própria morte.

Os gritos dos insectos ecoam por todo o lado. Mas são os crisântemos, com a beleza das suas folhas e das suas flores e o seu perfume esotérico, a referência dominante da estação, logo a seguir à lua."


Matsuo Bashô, O Gosto Solitário do Orvalho, seguido de O Caminho Estreito, trad. Jorge Sousa Braga. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 39.

Sunday, October 5, 2008

CIDADES VISÍVEIS II


"Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando-se na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida"


Daniel Filipe, a invenção do amor e outros poemas, 11ª ed., Lisboa: Edit. Presença, 2006, p. 35.

Thursday, October 2, 2008

NO 30º DIA, PARA A GRANDE ARTISTA



"Ergueu-se do cepo e de pé ficou diante das duas irmãs.
-Eu sou uma grande artista! - disse ela.
Esperou um momento e depois repetiu:
- Eu sou uma grande artista, Mesdames.
De novo por longo tempo se fez um profundo silêncio na cozinha.
Por fim, Martine disse:
- Então vai ser pobre para o resto da vida, Babette?
- Pobre? - retorquiu Babette. E sorriu como se só ela soubesse porquê. - Não, eu nunca serei pobre. Disse-vos que sou uma grande artista. Um grande artista, Mesdames, nunca é pobre. Temos qualquer coisa, Mesdames, que os outros nada conhecem. (...)
Continuava imóvel, perdida nos seus pensamentos.
- Sabem, Mesdames - disse por fim - essa gente pertencia-me, eram todos meus. Haviam sido educados a um custo que as senhoras, pobrezinhas, não imaginam ou sequer haviam de acreditar, e ensinados a compreender a grandeza da minha arte. Eu podia fazê-los felizes. Quando dava o meu melhor, fazia-os perfeitamente felizes.
Fez uma breve pausa.
-Era assim também com Monsieur Papin - disse ela.
- Com Monsieur Papin? - perguntou Phillipa.
- Sim, com o seu Monsieur Papin, minha pobre senhora - disse Babette. - Ele próprio mo disse: «É terrível e insuportável para um artista», dizia ele, «ser encorajado a fazer, e aplaudido por ter feito, uma coisa inferior a nós próprios.» Dizia ele: «O mundo inteiro é percorrido por um só grito; é o coração do artista que pede: «Deixai-me fazer o insuperável!»
Phillipa acercou-se de Babette e abraçou-a. Sentiu o corpo da cozinheira qual monumento de mármore contra o seu, que, esse sim, tremia da cabeça aos pés.
Por momentos, ficou incapaz de falar. Depois murmurou:
- Mas isto não é o fim! Sinto, Babette, que isto não é o fim. No Paraíso há-de ser a grande artista que Deus sempre quis que fosse! Ah - disse ainda, as lágrimas correndo-lhe pelas faces. - Ah, como irá, Babette, encantar os anjos!"


Isak Dinesen (Karen Blixen), Histórias do Destino - A Festa de Babette e outros contos, trad. Maria J. Jorge. Lisboa: Editorial Querco, 1988, pp. 60-62.