Tuesday, May 31, 2022

CORAÇÃO

 



"Parecia-lhe que o carro era um Ford de 1928 ou 1929. - M'nha senhora - disse, e voltou-se para a mulher, concentrando nela toda a sua atenção - deixe dizer-lhe uma coisa. Um desses médicos que praí há, um fulano de Atlanta, pegou num bisturi e cortou o coração humano... o coração humano - repetiu, curvando-se para diante - pra fora do peito duma pessoa e depois segurou-o na mão - e estendeu a mão aberta, com a palma voltada para cima, como se nesta segurasse o peso ligeiro do coração humano - e então pôs-se a olhar pràquilo como se fosse um pinto nascido na véspera, e m'nha senhora - concluiu, deixando que decorresse uma longa pausa significativa em que a cabeça lhe deslizou  para a frente e os olhos cor de barro que brilharam -, ele não ficou a saber mais sobre o coração humano que a senhora ou eu."


Flannery O'Connor, Um Bom Homem É Difícil de Encontrar e Outras Histórias, trad. Paulo Faria, Lisboa: Relógio d'Água, 2015, p. 51. 

Monday, May 30, 2022

O PASTOR ANIMARUM

 




"Ó Pastor das almas,
ó primeira voz,
pela qual todos fomos criados,
seja agora de teu agrado
libertar-nos
de misérias e enfermidades nossas."


Hildegard von Bingen, Flor Brilhante, introd. e trad. Joaquim Félix de Carvalho e José Tolentino Mendonça, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 61. 

Sunday, May 29, 2022

RENASCER

 



"é quando os Homens se transformam 
em Aves
que nascem os Anjos

a leveza alada
floresce-lhes em asas
e o desejo pulveriza-se
abandonando-se o peso
que impedia o voo

a voz
no entanto
não se ramifica 
em siringe

e o canto
flui 
em palavra solitária
não em gorjeio
de harmonia plurítona"


Alexandra Soares Rodrigues, Il n' y a aucune raison de ne pas aller à Cluny, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2022, p. 10. 

Saturday, May 28, 2022

A VIDA (para a memória de Eurico F. Ribeiro)

 



"A vida é o dia de hoje,
a vida é ai que mal soa,
a vida é sombra que foge,
a vida é nuvem que voa;
a vida é sonho tão leve
que se desfaz como a neve
e como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
mais leve que o pensamento,
a vida leva-a o vento,
a vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
a vida é sopro suave,
a vida é estrela cadente,
voa mais leve que a ave:
Nuvem que o vento nos ares,
onda que o vento nos mares
uma após outra lançou,
a vida – pena caída
da asa de ave ferida -
de vale em vale impelida,
a vida o vento a levou!"


João de Deus, Campo de Flores. 

Thursday, May 26, 2022

IMAGENS

 


"Estas imagens não se restringem às que se configuram na produção iconográfica e artística: englobam também o universo das imagens mentais. E, se é verdade não haver pensamento sem imagem, tão-pouco deveremos deixar-nos afogar no oceano de um psiquismo sem limites. As imagens que interessam ao historiador são imagens colectivas, amassadas pelas vicissitudes da história, e formam-se, modificam-se, transformam-se. Exprimem-se em palavras e em temas."


Jacques Le Goff, O Imaginário Medieval, trad. Manuel Ruas, Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 16. 

Wednesday, May 25, 2022

AQUELA CONFIANÇA

 



"Aquela fé tão clara e verdadeira, 
A vontade tão limpa e tão sem mágoa, 
Tantas vezes provada em viva frágua
De fogo, i apurada, e sempre inteira;

Aquela confiança, de maneira
qu'encheu de fogo o peito, os olhos d'água,
Por qu'eu ledo passei por tanta mágoa, 
Culpa primeira minha e derradeira, 

De  que me aproveitou? Não de al por certo
Que d'um só nome tão leve e tão vão, 
Custoso ao rosto, tão custoso à vida. 

Dei de mim que falar ao longe e ao perto;
E já a si consola a alma perdida, 
Se não achar piedade, ache perdão."


Sá de Miranda, Poesia, org. Alexandre M. Garcia, Lisboa: Editorial Comunicação, 1984, p. 275. 

Tuesday, May 24, 2022

ESQUELETO

 



"Eu vou onde me ordena a destra do Senhor, 
da Carne amaldiçoada a libertar a Alma,
a chamar para o Bem o Homem pecador!

Eu vou introduzir na suavidade calma,
no sossego final da eterna quietação, 
o mártir que alcançou a triunfante palma, 

e vou levar de Deus a férrea punição
à maldade que afronta e esquece a lei divina, 
ao orgulho que solta a voz da negação!...

Se roubo à Natureza a graça que fascina, 
se faço estiolar as pétalas das rojas, 
se apago da existência a chama purpurina

se tornam tudo em cinza as minhas mãos piedosas, 
se esmago e se aniquilo a sórdida Matéria
- é para abrir do Céu as portas luminosas

e o Espírito levar à imensa Glória etérea!..."


Luís de Magalhães, Antologia Poética, selec. José Valle de Figueiredo, Maia: Edição da Câmara Municipal da Maia, 1998, p. 90 [ort. atual.]. 

Monday, May 23, 2022

AVIDEZ

 


"Os meus pensamentos estão tão afastados de Deus. Mais valia Ele não me ter criado. E os sentimentos que incubo ao escrever neste diário duram aproximadamente meia hora e parecem-me um logro. Não quero estes sentimentos artificiais e superficiais estimulados pelo coro de vozes. Hoje demonstrei ser uma glutona - ávida de bolinhos de aveia integral e de pensamentos eróticos. Nada mais resta dizer acerca de mim."


Flannery  O'Connor, Um Diário de Preces, trad. Paulo Faria, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 49. 

Sunday, May 22, 2022

A CRENÇA

 



"Ninguém pode ser ateu sem conhecer todas as coisas. Somente Deus é ateu. O demónio é o maior dos crentes, e lá tem as suas razões."


Flannery  O'Connor, Um Diário de Preces, trad. Paulo Faria, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 37. 

Saturday, May 21, 2022

CONHECIMENTOS MERIDIANOS

 



"(...) que devemos dirigir atentamente o olhar com a dialéctica, como com um nível boreal; que nos devemos habituar a suportar na contemplação da natureza a ainda fraca luz da verdade, primeiro indício do sol nascente; até que, finalmente, com a meditação teológica e o santíssimo culto de Deus, possamos aguentar vigorosamente, como águias do céu, o fulgurante esplendor do sol do meio-dia. Talvez sejam estes os conhecimentos matutinos, meridianos e vespertinos, cantados primeiro por David e em seguida explicados amplamente por Agostinho. Esta é a luz resplandecente que inflama os Serafins e do mesmo modo ilumina os Querubin. Esta é a região para a qual tendia sempre o pai Abraão. E este o lugar onde, segundo o ensino dos Cabalistas e dos Árabes, não há lugar para os espíritos impuros."

Pico Della Mirandola, Discurso sobre a Dignidade do Homem, trad. Maria de Lurdes Sirgado Ganho, Ed.70/RBA Editores, 1995, pp. 69; 71. 

ENTRADA

 



"Desceram e foram sentar-se junto do seu hospedeiro e disseram-lhe: Repete-nos o que acabas de dizer, pois isso é muitíssimo bom. Onde o ouviste? Ele respondeu: Foi o meu avô que mo ensinou. Dizia que os anjos acusadores deste mundo se agitam no mundo durante as três primeiras horas da noite; mas exactamente à meia-noite as acusações cessam porque nesse instante Deus entra no Jardim do Éden."


O Zohar - O Livro do Esplendor, introd. e selecç. Gershom Scholem, trad. Ana Moura, 2ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 2007, pp. 47-48. 

Thursday, May 19, 2022

UMA VIDA INTEIRA (para a memória do Divino Vangelis)

 



"Vai ser uma vida inteira de luta sem atingir a consumação. Quando qualquer coisa está concluída, não a podemos possuir. Nada podemos possuir, exceto a luta. Consumimos todas as nossas vidas em possuir a luta, mas somente quando acarinhamos essa luta e a orientamos para uma consumação final exterior a esta vida é que ela tem algum valor. Quero ser a melhor artista que seja possível, sob a batuta de Deus."


Flannery  O'Connor, Um Diário de Preces, trad. Paulo Faria, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 41. 

Wednesday, May 18, 2022

VISÕES

 



"As delícias intelectuais e artísticas que Deus nos proporciona são visões, e, sendo visões, pagamos um preço por elas; e a sede da visão não acarreta necessariamente consigo uma sede do sofrimento concomitante. Olhando para trás, vejo que sofri, não o meu quinhão, mas o suficiente para lhe chamar sofrimento, embora haja um fabuloso saldo a meu favor. Meu bom Deus, por favor, envia-me a Tua Graça."



Flannery  O'Connor, Um Diário de Preces, trad. Paulo Faria, Lisboa: Relógio D'Água, 2014, p. 40. 

Tuesday, May 17, 2022

FECHAR OS OLHOS NO MURO

 



"A criança fecha os olhos no muro
Conta o tempo que os amigos demoram
A transformar-se

Fecha os olhos no interior dos números
Olha para dentro e em redor e encontra-se
A si mesma

A criança pergunta se há-de ir ter consigo
Ela quer encontrar os amigos, ela quer
Que lhe respondam. Ela calcula a voz alta
A altura do muro, a progressão do silêncio"


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 292. 

Monday, May 16, 2022

PORTA

 



"Penso em portas. Descubro uma tese académica com título «Kafka e as Portas» e pergunto-me: porquê as portas? Para mim, Kafka são castelos, praças escurecidas, Kafka são corredores apertados dentro de casa, mas não são portas. Lembro-me de perceber a presença de K. em Praga, no centro histórico, a meio de uma praça à noite. Onde mais senti K. presente foi nos velhos batentes dos portões das igrejas e dos edifícios municipais. Agarrava o batente de uma porta e imaginava um K. miúdo, a fazer o mesmo. Afinal, sim: Kafka são portas."


José Gardeazabal, Quarentena - Uma História de Amor, Lisboa: Penguin Random House/Companhia das Letras, 2021, p. 82. 

Sunday, May 15, 2022

A JANELA

 



"Conduz-me a brisa a momentos que nunca vivi;
de tão certo os tomo, que na verdade lhes pertenço sem contar. 

Daí a pouco, fecho a janela. Chega de sonhar."


Pedro Moreira, Viagens  de Ida e Volta, Vila Nova de Famalicão: Editorial Novembro, 2022, p. 67. 

Friday, May 13, 2022

A PRESSA

 



"O passado tornou-se personagem de filme de ação, cabe-nos acreditar nos seus malabarismos. Há tanta pré-história! E agora a doença e a morte. Algumas pessoas desesperam por um Messias participativo. Não temos pressa de morrer, morrer é antigo, a morte não tem conteúdo, pensamos nela, na melhor das hipóteses, como uma linha reta no céu, acima do horizonte, à altura das nuvens. Não tem conteúdo, a linha aérea da morte. Não queremos que o passado caia no esquecimento. Não queremos que o passado caia."


José Gardeazabal, Quarentena - Uma História de Amor, Lisboa: Penguin Random House/Companhia das Letras, 2021, p. 29. 

Thursday, May 12, 2022

FRACTAL

 




"dentro de cada coração
há uma língua de fogo
dentro da língua de fogo
um pendão azul
dentro do pendão azul
uma centelha negra
dentro da centelha negra
uma gota de luz
dentro da gota de luz
um eco de cada coração"



Alexandra Soares Rodrigues, Il n' y a aucune raison de ne pas aller à Cluny, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2022, p. 84. 

Wednesday, May 11, 2022

HÁ IMENSO TEMPO

 



"o meu futuro contigo     há imenso tempo
tem sido sempre o mesmo
os teus olhos
a tua noite
cada coisa tem a sua luz
como frigoríficos fechados
como cozinhar todos os dias
e eu    mulher     não sou uma coisa
não sou armário nem fábrica têxtil
tecer e desmanchar teias é um sonho masculino"


José Gardeazabal, Penélope Está de Partida, Lisboa: Relógio D'Água, 2022, p. 50. 

Tuesday, May 10, 2022

CAMINHO

 



"Ai, por que será que sempre reclamamos
Da providência de Deus ou da Fortuna?
Que nos trazem sempre, de maneiras várias, 
Bem mais do que esperamos?
Alguns homens anseiam por riqueza, 
Que lhes causa a morte ou a enfermidade, 
E outros pedem que os libertem da prisão, 
E pelos criados que são mortos na sua própria casa.
Não conhecemos o que desejamos.
Caminhamos como os ébrios.
Um homem bêbado bem sabe que tem casa, 
Mas não sabe ao certo o caminho para lá chegar,
E para ele o caminho é uma charada. 
E assim também caminhamos nós. 
Procuramos com ânsia a felicidade, 
Mas muitas vezes erramos o caminho."


Geoffrey Chaucer, "O Conto do Cavaleiro", in Contos de Cantuária, trad. Linguagest, Barcelona: Mediasat Group, 2004, p. 46. 

Monday, May 9, 2022

VOLUPTAS

 



"A primavera chegara mais cedo numa abundância de seiva.
A natureza acordava em miríades de rumores. 
A folhagem trémula, nova, dum verde tenro e claro, balançava-se sob a pressão genésica dos insetos na ânsia de se multiplicarem, mordendo-se frementes e insaciados.
A terra abria as suas entranhas em rubras emanações, fecundada pelo sol. 
O espasmo glorioso da reprodução acendia-se e crepitava em toda a parte, desde o escarpado dos montes até  aos mais ignorados recantos. 
A asa rubra do desejo, palpitando, irmanava os seres da mesma angústia, no mesmo ardor, na mesma ânsia...
Um sopro de volúpia turbador e excitante subia em eflúvios cálidos, pondo nas almas uma nova alegria de viver."


Judith Teixeira, "Satânia", in Poesia e Prosa, org. Cláudia Paços Alonso e Fabio Mario da Silva, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2015, p. 301. 

Sunday, May 8, 2022

LIÇÃO

 



"Só é imoral
sermos mortos-vivos, 
sol apagado, 
e gastarmos forças a pôr os outros
fora do sol."


D. H. Lawrence, Sol, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2021, p. 159. 

Saturday, May 7, 2022

PRIVILÉGIOS

 




"o teu problema     Ulisses     não foi a viagem mas o regresso
a poligamia tarda-te a navegação
apura-te o ouvido para sereias
adoça-te a cama de Circe
eu sei    matas monstros   dormes com deusas
a tua odisseia é um saco de palavras
mais monstro      menos monstro
mais olho     menos olho
e     olhado de fora     imensas mulheres
Circe    Calipso    todas
sonhei sê-las
sereias?     cantei com elas
(ouviste?)
a oralidade da odisseia não te desculpa
gozas privilégios de grego antigo     de literatura
aos heróis dão palavras suficientes
e a mim tecidos    silêncios
a ti o verbo e a história
a mim espera e memória
Ulisses
não te quis artimanhas     quis-te homem
to que massacras sem te rires
quero-te a chorar para dentro
quero-te deus feito passarinho"


José Gardeazabal, Penélope Está de Partida, Lisboa: Relógio D'Água, 2022, p. 16. 

Friday, May 6, 2022

VALORAR

 


"O pensar contra «os valores» não afirma que tudo aquilo que se declara como «valores», a «cultura», a «arte», a «ciência», a «dignidade do homem», «mundo» e «Deus», seja sem valor. Ao contrário, importa, finalmente, reconhecer que, justamente pela caracterização de algo como «valor», rouba-se a dignidade daquilo que é assim valorado. Isto quer dizer: ao avaliar algo como valor, aquilo que foi valorado é apenas admitido como objecto para a avaliação pelo homem. Mas aquilo que é algo em seu ser, não se esgota em sua objectividade e, sobretudo, de modo algum então, quando a objectividade tem o carácter de valor. Todo valorar, mesmo onde é um valorar positivamente, é uma subjectivação. O valorar não deixa o ente ser, mas todo valorar deixa apenas valer o ente como objecto do seu operar. O esdrúxulo empenho em demonstrar a objectividade dos valores, não saber o que faz. Quando se proclama «Deus» como «o valor supremo», isto significa uma degradação de Deus.  O pensar através de valores é, aqui, e em qualquer outra situação, a maior blasfémia que se pode pensar em face do ser. Pensar contra os valores não significa, portanto, propagar que o ente é destituído de valor e que é sem importância; mas isto significa: levar para diante do pensar a clareira da verdade do ser contra a subjectivação do ente em simples objecto."


Martin Heidegger, Carta sobre o humanismo, trad. Arnaldo Stein, Lisboa: Guimarães Editores, 1973, pp. 97-98. 

Thursday, May 5, 2022

DIFERENTE

 



"E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta, 
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha. 

O que de sonho jaz nas encadernações vetustas, 
Nas assinaturas complicadas (ou tam simples e esguias) dos velhos livros.
(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte, 
Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!)
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações, 
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam. 

Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime, 
Tudo o que diz o que não diz, 
E a alma sonha, diferente e distraída."


Álvaro de Campos, Poesia, ed. Teresa Rita Lopes, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 471. 

Wednesday, May 4, 2022

DO AMOR UNIVERSAL (ESTREIA)

 



"só aquele que observa
e não deseja
acolhe o amor
universal

só o ser
absolutamente solitário
sem desejo do outro
respira o amor
universal

amor puro
resplandecência límpida
amor amor em si mesmo
rejúbilo 
na noz do coração
noz como mente

a consciência
talvez
uma estrela
seja esse ser
puro

resplandecência de amor na luz

uma estrela
incomburível
eterna
o brilho alimentando o brilho

uma estrela

onde caiba 
o brilho do universo
pulsando
anenergético
sem sorver 
sem criar

o todo em si mesmo
não fechado
não aberto
abarcando o todo
proanaléptico
no amor
universal"


Alexandra Soares Rodrigues, Il n' y a aucune raison de ne pas aller à Cluny, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2022, pp. 37-38.

Tuesday, May 3, 2022

AREAL

 



"Agora eu digo, Fernando, que naquele dia
O espírito vadiava como vadia uma traça,
Entre as flores para lá do areal imenso;

E que o mínimo rumor do vaivém das ondas
Nas algas marinhas e nas pedras submersas
Não incomodava nem o mais ocioso ouvido. 

Foi então que aquela monstruosa traça
Que ficara imóvel pregada no azul
E no púrpura colorido do mar preguiçoso, 

E dormitara ao longo de litorais ossudos, 
Surda para a conversa que as águas fiavam, 
Se ergueu perlada e buscou o rubro ardente

Salpicada de pólen amarelo - tão rubro
Como a bandeira no cimo do velho café - 
E por ali vadiou toda a estúpida tarde."


Wallace Stevens, Harmónio, trad. Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa: Relógio D'Água, 2006. p. 59. 

Monday, May 2, 2022

TEMPO PARA COGITAÇÕES

 



"O amor não é apenas a presença, o amor é também uma memória condividida. 
Quem é o morto e quem é o vivo, se num sonho morte e vida coincidem?
Ai está, uma pessoa tem, enquanto passeia, tempo para cogitações. Sobretudo quando o Sol amolece o crânio e não se topa com um ser falante, durante a caminhada, um dia inteiro."


Gerrit Komrij, Um Almoço de Negócios em Sintra, trad. Fernando Venâncio, Lisboa: Guerra & Paz, 2022, p. 66. 

Sunday, May 1, 2022

MÃE

 



"e os filhos calam-se
lábios fechados perante o
nosso olhar como
uma mudez que lhes seguramos
pela mão"

valter hugo mãe, publicação da mortalidade, Lisboa: Assírio & Alvim, 2018, p. 142. 

METAPSICOLOGIA

 



"Essas imagens apagam o mundo e não têm passado. Não procedem de qualquer experiência anterior. Estamos certos de que são metapsicológicas. Dão-nos uma lição de solidão. É preciso, por um instante, tomá-las apenas para nós. Se as tomarmos em sua instantaneidade, perceberemos que só pensamos nisso, que estamos por inteiro no ser dessa expressão. Se nos submetermos à força hipnótica de tais expressões, vemos que cabemos por inteiros na redondeza do ser, que vivemos na redondeza da vida, como a noz que se arredonda em sua casca. O filósofo, o pintor, o poeta e o fabulista deram-nos um documento de fenomenologia pura. Cabe-nos agora utilizá-lo para captarmos a agregação do ser em seu centro; cabe-nos também sensibilizar o documento multiplicando as suas variações."

Gaston Bachelard, A Poética do Espaço, trad. Antônio de Pádua Danesi, São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 236-237.