Thursday, February 28, 2019

CASA



"Lá está ainda na muralha
a pedra moira
que esfarela nos muros
da minha casa"

Luiza Neto Jorge, A Lume, Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 48. 

Wednesday, February 27, 2019

TORSÃO


"Seu ventre abarca
um acrobata
a ensaiar
o mortal

Contorcionista
que se enrola qual
caracol"

Luiza Neto Jorge, A Lume, Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 68. 

Tuesday, February 26, 2019

ENCOSTAR



"Tremem-me os cerros
os favos entumescem:
às meias-horas cai
da sombra a sombra. 

E a gorda luz
encosta-me à parede."


Luiza Neto Jorge, A Lume, Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 54. 

Monday, February 25, 2019

A LEMBRANÇA



"A lembrança do dia
é leve de se ter:
garganta de um jardim, 
só aroma ao descer."


Eugénio de Andrade, Os amantes sem dinheiro, 20ª ed., Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2004, p. 79. 

Sunday, February 24, 2019

DOMINGO MAGRO



"Chiara sacudiu a cabeça. Nos seus olhos camponeses luzia essa lucidez que é só apanágio dos visionários. 
- Não há nada mais natural e agradável do que planear a sua própria morte. É muito mais doloroso assistir à morte de um amigo que se adianta ao seu destino. - Referia-se a a Fabio Valenzin. - Não tanto pelo amigo que morre, mas por nós próprios. Quando falamos de um amigo morto, estamos a falar da nossa própria morte, dessa parte de nós próprios que os outros levam consigo quando se extinguem. Não choramos o amigo mas o que esse amigo nos arrebata. Os mortos abastecem-se com a nossa própria morte."


Juan Manuel de Prada, A Tempestade, trad. Marcelo Correia Ribeiro, Porto: Âmbar, 2004, p. 78. 

Saturday, February 23, 2019

PELO OCIDENTE



"Na apoteose da tarde, os astros, como lâmpadas, 
Tremeluzem na sombra. Há, por todo o ocidente, 
A pompa funeral de uma câmara ardente.
Vésper, qual um diamante azul claro, irradia.
E, diluída na treva, empalidece e apaga-se
                  A última luz do dia."

Martins Fontes, "A Natureza e o Sonho", in Verão, Santos: Typographia Escholastica Rosa, 1921, p. 44. 

Thursday, February 21, 2019

DESCIDA



"Já a luz desceu por baixo da escuridão"

Homero, Odisseia, III, 335, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes/Cotovia, 2010 (reimpr.), p. 60. 

Wednesday, February 20, 2019

ULTRA COELOS



"O crepúsculo cai tristonho e lento. 
Brilham prenúncios do luar por tudo
E parece que é feita do veludo
A carícia dulcíssima do vento.

No silêncio do meu recolhimento, 
De olhos fechados, deslumbrado, estudo
O céu dos astros, infinito e mudo, 
Que existe além do nosso firmamento. 

E, contemplando mundos invisíveis, 
Perdido nas fantásticas estradas
Das serenas regiões inatingíveis, 

Em pleno azul, por horas encantadas, 
Sinto a paz e a pureza inexprimíveis, 
Que há sobre o céu, nas amplidões sonhadas!"


Martins Fontes, "As Almas e as Estrelas", in Verão, Santos: Typographia Escholastica Rosa, 1921, p. 99. 

Monday, February 18, 2019

RADIOSO



"Para as almas, o amor é como o sol na terra:
Na magia de um sonho a vida transfigura!
É tão belo e radioso o clarão que ele encerra, 
Que até, depois da morte, a sua luz perdura!

Só por ele se vive, e se sonha, e se brilha: 
Vai-se ao fundo do mar, às regiões do sargaço!
E há de alcançar-se, enfim! a excelsa maravilha
Dos tesouros astrais, nos oceanos do espaço!

Quem não teve uma vez, pelo menos, na vida, 
Um enorme consolo, uma alegria imensa, 
Vendo certa mulher, talvez desconhecida, 
Que depois não se vê mais e na qual sempre pensa?

Esse instante feliz de um olhar, que presume
Quanto deve ser doce o prazer do desejo, 
É mais embriagador, no seu vago perfume, 
Que a ilusória fusão das almas pelo beijo."


Martins Fontes, "Palavras Românticas", in Verão, Santos: Typographia Escholastica Rosa, 1921, p. 153. 

Sunday, February 17, 2019

TEMPORÁRIO


"Apertaste os lábios como se reprovasses. Mas ao mesmo tempo os teus olhos estreitaram-se tristemente, como para mostrar que não me censuravas. Fui avassalado por um terrível sentimento de remorso. Não devia ter sido. Tencionava falar de algo completamente diferente. 
- Mas, afinal de contas, acaba de ocorrer-me a ideia... talvez não seja mau ir de vez em quando ao cinema. Toda a gente se mete na cara dos atores. Ninguém precisa da sua. Um cinema é um lugar onde se paga para mudar temporariamente de cara. 
- Isso é verdade. Talvez seja realmente bom ir ao cinema de vez em quando."

Kobo Abe, A Máscara, trad. Daniel Gonçalves, Porto: Civilização Editora, 1970, p. 113. 

AS REGIÕES DE OURO (para o Divino Bruno Ganz)



"Por um país de enganos foste, um dia, 
De olhos fechados, caminhando pelas 
Regiões de ouro e de luz da fantasia,
Onde as flores brilhavam como estrelas!

Tantas surpresas no teu sonho havia,
Que tu ficavas deslumbrado ao vê-las!
E eis que de estrelas tua mão se enchia, 
Tão fácil era à tua mão colhê-las...

Longe dos males das paixões terrenas, 
Encantado e sonhando, te transportas
Nessas paragens claras e serenas...

Mas, de repente, as dores que suportas
Lembraste. E, abrindo os olhos, viste, apenas,
Que essas estrelas eram flores mortas."


Martins Fontes, "As almas e as Estrelas", in Verão, Santos: Typographia Escholastica Rosa, 1921, p. 101. 

Friday, February 15, 2019

OBLITERAR


"Estas teias de cicatrizes metálicas existiram apenas como um negativo fotográfico para constituir o avesso da máscara. Ou por outras palavras: era uma existência negativa que devia ser coberta pela máscara e desse modo eliminada. Mas isso seria tudo? Era na verdade uma existência negativa, mas mesma uma máscara que eliminasse as cicatrizes metálicas não poderia de modo algum existir sem se servir delas como base. Em suma, esta base de metal era o ponto de partida para a construção da máscara, e ao mesmo tempo a máscara tinha como objetivo obliterar a base."

Kobo Abe, A Máscara, trad. Daniel Gonçalves, Porto: Civilização Editora, 1970, p. 65. 

Thursday, February 14, 2019

PISANDO





"Quem és tu que assim vens pela noite adiante, 
Pisando o luar branco dos caminhos, 
Sob o rumor das folhas inspiradas?

A perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas. 

A história da noite é o gesto dos teus braços, 
O ardor do vento a tua juventude, 
E o teu andar é a beleza das estradas."


Sophia de Mello Breyner Andresen, "Poesia I", in Obra Poética I, Lisboa: Caminho, 1992, p. 42. 

Tuesday, February 12, 2019

BEM PENSAR



"O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza. Mas é um caniço pensante. Não é necessário que o universo inteiro se arme para o esmagar: um sopro, uma gota de água, bastam para o matar. Mesmo, porém, que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata, pois sabe que morre e sabe a vantagem que o universo tem sobre ele. O universo, esse, nada sabe. 
Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É a partir dele que temos de nos elevar, e não do espaço e do tempo, que não poderíamos preencher. Esforcemo-nos, pois, por bem pensar: eis o princípio da moral."


Blaise Pascal, Pensamentos, 3ª ed. , trad. Américo de Carvalho. Mem Martins: Publ. Europa-América, 1998, pP. 144-145. 

Monday, February 11, 2019

SINGELO


" Carducci tinha o ar singelo.
- Não. Talvez eu não seja um grande artista, mas artista sou, porque busco a beleza universal. 
- Pois fotografe paisagens. Deixe as pessoas em paz. 
- Para paisagens há os pintores, iguais ao senhor e a esse coitado que acabamos de enterrar. Ademais, sou um homem comum, com família. Paisagens não pagam contas."

Luiz Antônio de Assis Brasil, O Pintor de Retratos, Porto: Âmbar, 2001, pp. 75-76. 

Sunday, February 10, 2019

PSICOLOGIA



"- Sim, as pessoas têm pressa, mas depois não se queixem. A fotografia apenas capta um instante do fotografado. Ficam impressas na chapa as dores de barriga, as brigas de ontem com as esposas e as queimações da bexiga. O retrato pintado, pela observação demorada que o pintor faz do carácter do retratado, só esse modelo reproduz toda a verdadeira psicologia do modelo. - Enfim lembrava-se dos juízos de René La Grange. E dissera o maior argumento de sua vida. 
Carducci admirava-se. O bigode caía nos cantos da boca. 
- Parabéns! O senhor é um livro falante. Mas responda-me: isso não é mentir?
- Ao contrário, é ser fiel à alma do retratado. 
O fotógrafo piscava os olhinhos, na sombra do chapéu de feltro. Havia uma luz de malícia quando disse: 
- Mesmo que ele seja um bandido, um assassino?
- Por que não? - respondeu Sandro, sem a menor certeza."


Luiz Antônio de Assis Brasil, O Pintor de Retratos, Porto: Âmbar, 2001, pp. 74-75. 

Saturday, February 9, 2019

EXPRESSÃO



"Mas K. não desistira. 
- Lastimo dizer-lho, mas é evidente que o senhor não compreende. A cara, ao fim e ao cabo, é a expressão. A expressão... como hei-de dizer?... bem, a expressão e uma espécie de equação pela qual mostramos as nossas relações com os outros. Se estiver bloqueado por um desmoronamento de terras, mesmo aqueles que tinham o maior empenho em percorrê-lo pensarão que o senhor é agora uma espécie de casa desabitada, em ruínas, e passarão adiante.
- Não tem importância. Quem não quiser parar que siga o seu caminho."

Kobo Abe, A Máscara, trad. Daniel Gonçalves, Porto: Civilização Editora, 1970, p. 38. 

Friday, February 8, 2019

ABERTOS



"Olhos abertos do navegador
Mudam aqui a luz a sombra a cor
E também faces e gestos se modulam
Segundo elaboradas estranhezas
Outro o recorte da vaga e do penedo
Caudas de dragões seguem os barcos"


Sophia de Mello Breyner Andresen, Navegações,  Lisboa: Caminho, 2004, p. 182. 

Thursday, February 7, 2019

REGENERA


"De certo modo, podemos até afirmar que no mundo não se produz nada de novo, pois tudo consiste na repetição dos mesmos arquétipos primordiais; essa repetição, ao atualizar o momento mítico em que o gesto arquetípico foi revelado, mantém continuamente o mundo no mesmo instante auroral do princípio. O tempo apenas possibilita o aparecimento e a existência das coisas; não tem qualquer influência decisiva sobre essa existência - dado que ele próprio se regenera constantemente."

Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno, trad. Manuela Torres, Lisboa: Ed. 70, 1978, p. 104. 

Wednesday, February 6, 2019

FLUIDA




"O primeiro olhar sobre o visível é obra das mãos. Nada deve a um objeto cinzelado nem à natureza fluida de um meio transparente. O espectador é obra das nossas mãos. Bem sabemos que, quando Narciso se contempla, recolhe um reflexo que nada deve às suas mãos. O gozo mortífero não provirá dessa silenciosa impotência das mãos?"


Marie-José Mondzain, Homo Spectator, trad. Luís Lima, Lisboa: Orfeu Negro, 2015, p. 41. 

Tuesday, February 5, 2019

OBEDIÊNCIA



"Esse cultor da ciência, quando por acaso alguém o surpreendia na prática de um desses ritos de supersticioso, procurava explicar:
- É preciso obedecer com fé e sem fazer exame às leis subtis das coisas. Ninguém sabe exatamente, menino, de que possa depender o curso dos acontecimentos e o mistério complicado dos fados."


Vianna Moog, Eça de Queirós e o Século XIX, 5.ª ed., Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966, pp. 78-79. 

Monday, February 4, 2019

NO MUNDO


"Tu só, pobre animal, beijas o triste!
Tu que o rato devoras, e que os dentes
Tens afiados para quanto existe!
Caprichosa excepção! dize: Que sentes?

Amas, pobre animal? e tens tu pena, 
Sim, pode na tua alma entrar piedade?
Se pode entrar eu sei! Negar quem há de
Amor ao tigre, coração à hiena!

Tudo no mundo sente: o ódio é prémio
Dos condenados só que esconde o inferno. 
Tudo no mundo sente: a mão do Eterno
A tudo deu irmão, deu par, deu gémeo. 

A mim deu-me esta gata, a mim deu-me isto...
Esta fera, que as unhas encolhendo
Pelos ombros me trepa e vem, correndo, 
Beijar-me... Só não vivo! amado existo!"


João de Deus, Campo de Flores, 6ª ed., Lisboa: Companhia Editora Portugal-Brasil, s.d., p. 240. 

Sunday, February 3, 2019

FORJA



"Lia o filósofo e dizia que as nuvens se engendram dos vapores que saem do mar e da terra; e nesses vapores estão encadeados e ligados os quatro elementos. Pelo fogo e pelo ar sobem os vapores, pois o fogo e o ar são ligeiros; e na comunicação que a água e a terra têm com o fogo e o ar, ascendem; e o fogo e o ar, que estão na sua região, atraem para si os vapores da água e da terra, para que com aqueles vapores possam depurar o fogo e o ar, que naqueles vapores estão misturados com a água e com a terra."


Ramon Llull, "Livro das Maravilhas", in Obra Escogida, trad. Pere Gimferrer, Barcelona: Penguin Clásicos, 2016, p. 107. 

Saturday, February 2, 2019

A GRAÇA


"Tendo tido, no Brasil, a estranha aventura que o ligara de modo tão particularmente afectivo ao filho de Dona Sinhá e o fizera descobrir em menino todo dedicado a Deus e aos santos e tão amoroso da Mãe uma graça diferente da que, macho brasileiramente normal, já havia, então encontrado nas mulheres de várias cores com quem tivera relações de cama ou de esteira, de sofá e de rede, Paulo, na Europa, preocupava-se em procurar surpreender na arte de escritores e de pintores da Igreja outras expressões dessa mesma graça, vindas talvez dos Gregos mas tornadas místicas, pelo Catolicismo, através de representações de anjos em adolescentes e de santos em jovens, muito jovens. Lembrava-se, a propósito de misticismo, de ter lido em Pater - a leitura de Newman levara-o à de Pater, tendo visitado Oxford em homenagem aos dois grandes ingleses - que a palavra místico, derivada do grego, significava fechado: segundo uns, de boca fechada, de modo a não se abrir, o místico, pela boca, a contactos com o mundo por meio de palavras e manifestar-se acerca de assuntos sobre os quais deveria meditar, sem falar a respeito deles; segundo outros, os platonistas, menos de boca que de olhos fechados, desde que fechando os olhos, o místico veria mais claro os mistérios interiores. Mas sem que os santos e os anjos, representados pelos pintores italianos, deixassem de ter olhos de adolescentes abertos às coisas do mundo e bocas por vezes humaníssimas em seu modo de ser bocas de efebos ao serviço de Deus. Mesmo porque, sem bocas entreabertas e olhos abertos, a graça dessas figuras, sua beleza, não se afirmaria em arte. E a Igreja, nos seus grandes dias, não se fechara a nenhuma forma de beleza capaz de se harmonizar com suas doutrinas: inclusive a de serem os anjos extremamente belos e nem de um sexo nem do outro, mas de um como terceiro sexo, para a Igreja, apenas místico."

Gilberto Freyre, Dona Sinhá e o seu Filho Padre - seminovela, Lisboa: Círculo de Leitores, 1974, p. 171.