Thursday, March 29, 2012

A VELHA IRONIA


" - Não te assustes - disse a figura absurda. - Sou tua madrinha e trago-te o folar.
Falho dos espíritos, apenas soube o moço proferir:
- Minha madrinha...!
- Olé, segundo as boas regras canónicas em prática na cristandade! Não estava na minha esfera, mas teu pai tais fineas me disse que condescendi. Ele que conte...
- Mas quem és, santo Deus, quem és?
- A caluniada, mancebo. Caluniada do frade e do leigo, de todas as catervas, néscios e belos espíritos que alumiaram a Terra. Tu, que praticaste os clássicos, sabes muito bem a quem Ovídio chama acerba e nigra, Virgílio turbidula, Séneca efrena e abominanda, Lucrécio turpis, Tibulo rapax, Horácio...
- A Morte?
- Eu mesma à face de Deus e do Diabo, meus altos e honrados amos.
- Estou a delirar... a Morte é uma ficção.
- Afilhado, lembra-te do que reza o capítulo terceiro do Génesis. Vim ao mundo quando Adão engoliu a maçã. Posso citar-te, em abono da minha identidade, vários doutores da Igreja, que nem rindo mentiam, e muitos anacoretas que se retiraram do mundo a fim de no sossego do deserto ouvirem do Senhor, em matéria de ser e não ser, o que depois comunicaram aos Homens. Pousei no atelier de Holbein e pintou-me; nunca viste o meu retrato?
- Sim, alegoricamente, em escanifrada dança, com papas, reis...
- Médicos...
- Médicos... que te fazem andar a toque de caixa.
- Quando não são auxiliares!
- A velha ironia!
- Afilhado, partiu-se a corda da vida, está para nascer o sábio que seja capaz de remontá-la. Em geral, a índole e causas primárias das enfermidades são mistérios que nnguém sabe. Mistério é também a natureza das substâncias havidas como remédios e enigma ainda maior a causa por que actuam sobre os seres animados. E mais duvidosos que o efeito dos reagentes são os axiomas de diagnóstico e de prognóstico, ditados segundo uma tabela de sinais. Ainda e sempre ainda, a determinante principal da cura está no jogo dessa força intrínseca, mediadora ab se, que por um trabalho surdo e constante tende a restabelecer a ordem no organismo. O homem é uma máquina de viver. Chego, forço as molas... e pronto. Até esse instante, o récipe justifica-se post hoc, ergo propter hoc. Mas, virando de página, trago-te o folar e magnífico..."
Aquilino Ribeiro, "A Grande Dona", in Estrada de Santiago, Lisboa: Bertrand/Círculo de Leitores, 1984, pp. 195-196.

Wednesday, March 28, 2012

NADA DURA


"Ho mundo pouco vall e muyto custa e nada dura. E Deus muito vall e pouco custa e senpre dura, pois sandeu he quem escolhe çugidade e leixa fremosura."

Castelo Perigoso, ed. crítica de Elsa Maria Branco da Silva, Lisboa: Edições Colibri, 2001, p. 202.

Tuesday, March 27, 2012

SEMELHANTE AO FOGO


"Um círculo de trevas, a realidade; esquecê-la é consolar-se. Desvairado pelas derrotas da realidade, o espírito evade-se para a embriaguez do belo consolador.
Cantou com os pastores da primitiva humanidade, suavizando-lhes  o rigor dos ásperos dia; educou-se nas montanhas do Oriente e migrou para a Europa. Engrandecida pela força do gênio, ganhou mil formas, expandiu-se em todas as direções - estrela imensa! clareando o orbe inteiro e o recesso das almas, confortando, com o divino eflúvio, os corações deprimidos. Semelhante ao fogo, o êxtase consome-se no próprio ardor. Passa a embriaguez dos sentidos, passa o entusiasmo inteligente da investigação; fica a saciedade; a descrença, a fadiga, a morte. Extinta a chama, cinzas.
Os transportes do belo, não. A floresta das ilusões, assaltada pelo inverno, esfolha-se folha a folha; a arte persiste. Desfere ainda, em pleno extermínio das energias, o canto glorioso do seu entusiasmo.
Farol de Leandro, imortal e culminante, domina impávido o naufragar das eras.
Feliz quem pode abismar-se no tempo ao clarão desse facho!"
Raul Pompéia, in A Poesia no Brasil, vol 1, org. Sônia Brayner, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, pp. 330-331.

Sunday, March 25, 2012

O SILÊNCIO DA TERRA



" - Se a terra se abrisse para tragar os patifes - rosnou o Abade - não faziam os coveiros noventa e nove por cento das sepulturas. A terra é cega e muda... aguenta tão bem o ladrão como o homem honrado.
- Que está aí a dizer?! Ouvi rezar, era eu menina, que houve tempos em que a terra abria bocas e gritava. Os homens iam para meter a enxada e ela a clamar, a gemer como uma alma cristã se a magoam. Fizeram então muitos rogos a Deus e Deus disse: «Cala-te terra, que tudo criarás e tudo comerás!»"
Aquilino Ribeiro, "A Maldição Cubra os Pardais", in Estrada de Santiago, Lisboa: Bertrand/Círculo de Leitores, 1984, p. 26.

Saturday, March 24, 2012

D' ALMA ESTÓICA


"Tenho assaz conservado o rosto enxuto
Contra as iras do Fado omnipotente;
Assaz contigo, ó Sócrates, na mente,
À dor neguei das queixas o tributo.

Sinto engelhar-me da constância o fruto,
Cai no meu coração nova semente;
Já me não vale um ânimo inocente;
Gritos da Natureza, eu vos escuto!

Jazer mudo entre as garras da Amargura,
D'alma estóica aspirar à vã grandeza,
Quando orgulho não for, será loucura.

No espírito maior sempre há fraqueza,
E, abafada no horror da desventura,
Cede a filosofia à Natureza."

Bocage, Opera Omnia, vol. I, prep. texto Hernâni Cidade, Lisboa: Livraria Bertrand, 1969, p. 140.

Friday, March 23, 2012

AUDIÇÃO


"Isto são os ruídos. Mas há aqui alguma coisa que é mais terrível: o silêncio. Creio que nos grandes incêndios irrompe por vezes assim um momento de tensão extrema, os jactos de água caem, os bombeiros não sobem pelas escadas, ninguém se mexe. Sem ruído, lá no alto, uma cornija negra avança, e um muro alto, atrás do qual o fogo irrompe, inclina-se, sem ruído. Tudo pára e espera, de ombros encolhidos, as caras contraídas sobre os olhos, pelo golpe terrível. Assim é aqui o silêncio."
Rainer Maria Rilke, Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, 3ª ed., trad. Paulo Quintela, Porto: o oiro do dia, 1983, p. 30.

Thursday, March 22, 2012

CANCIÑOS (para a memória da Cuca)


"Todo esse apego do homem ao cachorro é porque o cachorro considera o seu dono o primeiro homem do mundo..."
Mário Quintana, "Caderno H" in Poesia Completa, org. Tânia Franco Carvalhal, Rio de Janeiro: col. Nova Aguilar / Nova Fronteira, 2009 (reimp.), p. 367.

Wednesday, March 21, 2012

PRIMAVERA E CAL NOS MUROS



"Noite única noite singular impressa
consagração das chuvas e das flores violadas

dos pássaros algemados em voo
dos silêncios por amor à voz
das alquimias pobres alquimias de oiro
das turbinas de aço onde as espadas escorrem

crescem árvores mais definitivas
pálpebras trémulas da noite

é o muro que eu recrio a cal sem vazios diários
todos de verdade nós todos férteis salvo

todos veias claras nós sementes
nós o susto fecundo de vivermos
nós os números e as letras e os desenhos

ah matem-me de noite punhais híbridos
sentinela das fronteiras extintas
sentinela última da noite"

Luiza Neto Jorge, "Os sitios sitiados" in Poesia, org. Fernando Cabral Martins, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, pp. 24-25.

Tuesday, March 20, 2012

E NA JANELA TAMBÉM


"O que é que te perturba? O que é que te abala o coração? Quem é que te tacteia no puxador da tua porta? Quem é que te chama da estrada sem contudo entrar pela porta aberta? Ah! É precisamente aquele que te perturbas, aquele a quem abalas o coração, aquele à porta de quem tacteias, aquele que chamas da porta da estrada e pela porta do qual não queres entrar."
Franz Kafka, Antologia de Páginas Íntimas, trad. Alfredo Margarido, 3ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2002, p. 136.

Monday, March 19, 2012

PRENÚNCIO


"Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!"
Mário Quintana, velório sem defunto - poemas inéditos, 2ª ed., Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1992, p. 29.

Sunday, March 18, 2012

SACRIFÍCIO

Caravaggio, David with the head of Goliath (Kunsthistorisches Museum, Viena)


"Como dar vida a uma verdadeira obra de arte
A não ser com a própria vida?"

Mário Quintana, velório sem defunto - poemas inéditos, 2ª ed., Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1992, p. 50.

Saturday, March 17, 2012

LUTAR


"«Como queira o Senhor que no céu está
e lá rege e tempera o universo,
faz de mim o que aos outros fazes já.»

Lhe respondeu assim; e eis disperso
de mortos um tal monte o campo tenha,
que entendê-lo não pode prosa ou verso:

de Índia a Marrocos, de Cataio a Espanha,
o meio e os lados plenos, desde antigos
tempos que turba assim era tamanha.

Lá dos ditos felizes são jazigos,
pontífices, reinantes, imperadores:
agora nus e míseros mendigos.

U são riquezas? U honras maiores?
e as gemas, os ceptros, a coroa,
e as mitras pois e as purpuradas cores?

Pobre o que em mortais coisas atordoa
sua esperança ( e quem não?), e então se vê
enganado no fim e é razão boa.

Ó cegos! Tanto assim lutar porquê?
Todos voltais à grande madre antiga
e vosso nome então já mal se lê.

Haverá entre mil e uma fadiga
não sendo só de vãs ostentações?
quem saiba vosso esforço assim mo diga."
Francesco Petrarca, Os Triunfos, trad. Vasco Graça Moura, Lisboa: Bertrand Editora, 2004, p. 117.

Thursday, March 15, 2012

LIBERTAS


"Neste instante, de resto, vê-os, mas eles não a vêem a si. Odeio com todas as minhas forças esta servidão que pretendem impor-nos. Lastimo o homem por ter de sofrer essa condenação, por geralmente não se lhe poder eximir, mas não é a dureza da pena que me dispõe em seu favor, é sim o vigor do seu protesto, e só isso. Sei que perante um forno de fábrica, ou diante de uma dessas máquinas inexoráveis que impõem todo o dia, a alguns segundos de intervalo, a repetição do mesmo gesto, ou por toda a parte sob as ordens mais inaceitáveis, ou na prisão, ou à frente de um pelotão de fusilamento, a gente ainda pode sentir-se livre, mas não é o martírio sofrido que cria essa liberdade. Uma vida livre é uma lembrança passada a quebrar perpetuamente as correntes que nos tolhem, e para que isso seja possível, preciso é que as correntes não nos esmaguem, como fazem a muitos daqueles de que fala. Mas a liberdade é também, e talvez seja o que melhor a define humanamente, a mais ou menos longa, mas sempre maravilhosa, sequência de passos que ao homem não acorrentado é permitido dar."
André Breton, Nadja, trad. Ernesto Sampaio, 2ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 2010, p. 51.

Wednesday, March 14, 2012

DO NOT EXIT

(museu de Lamego)


  
"deambulo pelas salas de paredes ardentes
eis édipo creonte jocasta o templo de latona
os ventos pararam contra os vidros e as pedras
entre os vinhos procuro a explicação da lã
da seda a reconstituição dos fios os olhos
para que te servem se não escreveres as histórias

estes suaves muros que estremecem estiveram
algum dia em trento na capital de que reino
na bagagem de que bispo perdido no concílio
em cada pedaço tecido cresce a fábula a arte
não quero sair destas salas brancas estendo-me 
nestes bancos cobertos de estranhos veludos

aproxima-se a hora de fecho do museu de lamego
deveria confundir-me com o pó suspenso a cal
aproximo-me de cada episódio e tacteio o sono
os séculos o breve itinerário de uma aranha
foi toda uma tarde de lume sol quebrado acasos
asas na língua e receio de principiar a tecer"
José Viale Moutinho, Retrato de Braços Cruzados seguido de Páginas de Itália, Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 83.

Tuesday, March 13, 2012

PALIDEZ


"Nenhum imigo foi tão atrevido
que ousasse aparecer com vista escura
'té Morte ter o assalto concluído.

Após calar o pranto e a amargura,
cada uma o belo rosto olha insistente
e só de desesp'ranças é segura,

e não qual chama à força desalente,
mas antes por si mesma se consume,
se foi aquela alma em paz contente,

a modos de um suave e claro lume
a que alimento a pouco e pouco estanca,
levando até ao fim o seu costume.

Pálida não, mas mais que a neve branca
que em colina sem vento em flocos caia,
dir-se-ia repousar exausta e franca:

quase um manso dormir seus olhos raia,
já o espírito do corpo à parte posto,
chama a isso morrer a néscia laia:

e era bela a morte no seu rosto."
Francesco Petrarca, Os Triunfos, trad. Vasco Graça Moura, Lisboa: Bertrand Editora, 2004, pp. 121; 125.

Monday, March 12, 2012

E L'OCCHIO TORNA A DIETRO


"Estreito cárcer', treva a escurecê-lo,
nos encerrou, e lá penas usadas
mudei com o tempo e o tempo aos lábios fê-lo;

e entanto em liberdades só sonhadas
a alma, do desejo pronta e leve,
consolei com o ver coisas passadas.

Olhando eu era, feito ao sol de neve,
tanta alma mor que em triste cárcer' jaz,
como grande pintura em tempo breve,

que o pé avança e o olho volta atrás."

Francesco Petrarca, Os Triunfos, trad. Vasco Graça Moura, Lisboa: Bertrand Editora, 2004, pp. 81; 83.

Sunday, March 11, 2012

FULGOR


"conhecemos o fulgor das nossas estrelas
privamos com o seu brilho de pedra
somamos a nostalgia à memória ao fim"

José Viale Moutinho, Retrato de Braços Cruzados seguido de Páginas de Itália, Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 77.

Saturday, March 10, 2012

O QUE TEMOS NESTE OLHAR


(Infanta Maria Teresa de Áustria, Velázquez - Kunsthistorisches museum, Viena)

"É um momento humilde pois deixamos tudo aquilo que sabemos para trás, como à entrada já deixámos as mochilas. Não vemos a perícia do pintor, nem a biografia do modelo, nem a massa poética de Shakespeare. O olhar dispensou o pensamento, soltou-se do devir. Podia comparar-se com o olhar de Deus, fora do tempo. Ou do animal, que não projecta e não sabe recordar. Mas o que temos neste olhar pertence ao humano, ao que só no humano paralisa e deixa perceber o mal da carne."
Hélia Correia, Adoecer, Lisboa: Relógio D'Água, 2010, p.60.

Friday, March 9, 2012

CENIZAS


"Urnas plebeyas, túmulos reales
penetrad sin temor, memorias mías,
por donde ya el verdugo de los días
con igual pie dio pasos desiguales.

Resolved tantas señas de mortales,
desnudos huesos y cenizas frías,
a pesar de las vanas, si no las pías,
caras preservaciones orientales.

Bajad luego al abismo, en cuyos senos
blasfeman almas, y en su prisión fuerte
hierros se escuchan siempre, y llanto eterno,

si queréis, oh memorias, por lo menos
con la muerte libraros de la muerte,
y el infierno vencer con el infierno."

Luis de Góngora, Sonetos Completos, Madrid: Castalia, 1969, p. 231.

Thursday, March 8, 2012

ORIENTE



"Mas não falemos sem alicerces. Nós não estamos algures.
Nós estamos aqui dentro desta sala, onde eu estou a dizer a conferência - o chão, o tecto, e quatro paredes. Vocês e eu.
Para nos orientarmos melhor, aqui onde estou fica sendo o Norte, lá no fundo da sala o Sul, Este ali e Oeste aquele lado.
Que isto fique assim bem combinado entre nós, de tal maneira que, quando eu chamar o Sul aqui ao lugar onde estou, vocês se levantem, protestem, e digam que não, que o Sul é lá no fundo da sala."

José de Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, ed. Jerónimo Pizarro, Lisboa: Guimarães/Babel, 2010, pp. 32-33.

Wednesday, March 7, 2012

REMOVER MONTANHAS



"Mas esquecer não é a palavra que convém aqui... A memória deste homem não sofreu mais do que a sua força de imaginação. Quanto a remover montanhas, nem a sua memória nem a sua imaginação o podem; este homem, é necessário reconhecê-lo, mantém-se fora do nosso povo, fora da nossa humanidade, não cessa de ser esfomeado, só o instante lhe pertence, o instante ininterrupto da calamidade, instante que não é seguido de nenhuma faísca, de nenhum momento de reconforto; há apenas sempre uma mesma coisa: as suas dores, mas no mundo inteiro nenhuma outra coisa que se possa fazer passar por remédio, não há mais solo do que aquele que podem cobrir as suas mãos, tem portanto menos do que o trapezista do Music-Hall, para o qual se tomou o cuidado de estender uma rede acima do solo. Nós outros, não temos o nosso passado e o nosso futuro para nos sustentar e não passamos a maior parte das nossas folgas e, quanto tempo mesmo durante a nossa profissão, a tornar a dar carreira livre ora ao passado, ora ao futuro para os manter em equilíbrio."

Franz Kafka, Antologia de Páginas Íntimas, trad. Alfredo Margarido, 3ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 2002, p. 29.

Tuesday, March 6, 2012

TINTA DA CHINA


"Gabriel Charles Dante, conhecido por Dante Gabriel, caminhou num mundo intensamente deformado pela beleza dos destinos trágicos."
Hélia Correia, Adoecer, Lisboa: Relógio D'Água, 2010, p. 22.

Monday, March 5, 2012

SECA SEVERA


"o céu é aquela clareira
onde deito os olhos com ténues
cambiantes de cor que quase
gasto nas mãos, e como. como
o céu e aguardo uma
digestão convulsa. enquanto
o aguaceiro seca a terra antes que o
possa beber e deus se
vinga de mim ditando
os versos que escondem
a água do mundo. já as
fogueiras florindo em volta,
murchando o dia que me
persegue. uma intervenção
divina para me resistir."


valter hugo mãe, estou escondido na cor amarga do fim da tarde, Porto: Campo das Letras, 2000, p. 20.

Sunday, March 4, 2012

CACÂNIA


"jazemos as coisas onde
densamente fazemos os nossos
mortos comparecer, e
através da saudade seguramos
a ubiquidade do amor
para suportar, mais tarde, o enfraquecimento
radial dos corações"


valter hugo mãe, a cobrição das filhas, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 15.

Saturday, March 3, 2012

VASTIDÃO


"A poesia legitima o poder:
o Anarquista abraçado ao Rei
é o Archanjo Gabriel.
A vastidão das suas
seiscentas mil asas
abarca o mundo inteiro
nas remiges mais pequenas."

António Barahona, Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar Uma Gávea, Lisboa: Averno, 2011, p. 80.

Thursday, March 1, 2012

SILÊNCIO


"Silêncio é uma palavra impossível.
Não corresponde a nenhuma realidade.
Não há silêncio no cosmos
nem em cada um de nós.
Numa sala sem eco,
entre sete paredes de cimento isolante,
ouve-se ecoar a circulação
do nosso próprio sangue."

António Barahona, Raspar o Fundo da Gaveta e Enfunar Uma Gávea, Lisboa: Averno, 2011, p. 137.