Sunday, August 31, 2014

SILHUETA



"Estou casado há meses, na Ilha (conta John Derosa, súbdito norte-americano), com um corpo feminino que se compõe de maré-cheia, das nuvens algodoadas, dos bicos dos penedos e desta aragem carregada de sal que me visita no torreão da Ponta Negra e faz tremer as folhinhas amargas e verdoengas dos salgueiros. É... Minha Mulher a Solidão."


Vitorino Nemésio, "O Arquipélago dos Picapaus", in Quatro Prisões Debaixo de Armas e outras histórias, Lisboa: Editorial Verbo, s.d., p. 151. 

JUSTIFICAR



" - É absolutamente necessário justificar a nossa vida? Justificar, porquê? Atiram-nos para este mundo e ainda por cima temos de justificar!
Elisa riu subitamente ao ouvir as palavras de Jerónimo. Tinha um riso de menina e duma perfeita infantilidade. 
- É preciso justificar, de contrário a vida não tem sentido - disse ainda, entre gargalhadas pueris.
- A mim parece-me que até as vidas não justificadas têm sentido - objectou Jerónimo. 
- Se todos se guiassem pela sua opinião caíamos num perfeito caos. Todos os homens sofrem muito durante a vida, envelhecem e depois morrem. É preciso justificar tanto sofrimento e contribuir para que esse sofrimento diminua.
- A Elisa já sofreu muito?
- Não. 
- Eu também não."


Graça Pina de Morais, Jerónimo e Eulália, Lisboa: Edições Antígona, 2000, p. 176. 

Saturday, August 30, 2014

RECÍPROCO



"O nosso conhecimento recíproco é total. Tu és eu e tu, e tu sou eu e tu. Algo tão perfeito e tão simples como uma andorinha ou a lei da gravidade."

Mario Vargas Llosa, Elogio da Madrasta, trad. Cristina Rodriguez, 3ª ed., Lisboa: D. Quixote, 2012, p. 133.

Friday, August 29, 2014

ACONTECER



"- Vejamos, isto aconteceu ou não aconteceu? Sim ou não?
George respondeu:
- Aconteceu assim, se é que de facto aconteceu. Eu preferiria subir ao céu sozinho do que empurrado por querubins e, se lá chegasse, gostaria que os meus amigos estivessem debruçados, exactamente como fazem aqui.
- Nunca irás para o céu - disse o pai. - Tu e eu, meu caro rapaz, havemos de jazer em paz na terra que nos deu à luz e os nossos nomes desaparecerão, tão certo como é certo que o nosso trabalho sobreviverá.
- Algumas pessoas só podem ver a campa vazia, não o santo, seja ela quem for, que sobe ao céu. Aconteceu assim, se é que de facto aconteceu. 
- Desculpe - disse uma voz fria. - A capela é pequena de mais para dois grupos. Não vos incomodaremos mais."


E. M. Forster, Um Quarto com Vista, trad. Manuel de Seabra, Lisboa: Relógio D'Água, 2011, p. 31. 

QUEDA



"O castelo encontra-se mesmo à beira de um terrível precipício. Uma pedra que caísse da janela cairia mil pés sem tocar em nada! Tanto quanto o olhar aviste, é um mar de topos de árvores verdes, com uma profunda abertura ocasional, onde existe um abismo. Aqui e ali fios prateados onde os rios correm por entre estreitos desfiladeiros através das florestas. Mas não estou com disposição para descrever belezas, pois após ter observado a vista continuei a explorar; portas, portas por toda a parte, e todas fechadas e aferrolhadas. Em parte alguma, excepto nas janelas das paredes do castelo, existe uma saída acessível. O castelo é uma verdadeira prisão, e eu um prisioneiro!"


Bram Stoker, Drácula, trad. Ana Maria Mendes Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 34. 

Wednesday, August 27, 2014

APRECIAR


"As portuguesas apreciaram sempre as cartas de amor. As da freira de Beja perturbaram a corte corrompida e cínica de Luís XIV, e Mme. de Sévigné escrevia a sua filha: «Branca escreveu-me uma carta excessivamente terna: fala-me do seu coração em todas as linhas. Se lhe respondesse no mesmo tom, seria uma portuguesa.»"

Suzanne Chantal, A Vida Quotidiana em Portugal ao Tempo do Terramoto, trad. Álvaro Simões, Lisboa: Livros do Brasil, 2005, p. 121. 

Tuesday, August 26, 2014

DENTRO



"Queria chorar mas sentia o coração mais árido do que o deserto."


André Gide, Sinfonia Pastoral, trad. Roberto Ferreira, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 159. 

IANUS


" - Gostava que me dissesse se há lírios na grande campina que se estende diante de nós. - Não, Gertrudes, os lírios não crescem nestas alturas, onde há, somente, algumas espécies raras. - Nem aqueles que se chamam lírios do campo?- Não há lírios do campo. - Nem mesmo nos arredores de Neuchatel?- Não há lírios do campo. - Então porque diz o Senhor: «Olhai os lírios do campo»?- Havia sem dúvida, no seu tempo, pois que Ele o diz, mas as culturas dos homens fizeram-nos desaparecer. - Lembro-me de que me tem dito frequentemente que a maior necessidade da terra é confiança e amor. Não lhe parece que com um pouco mais de confiança, o homem tornaria a vê-los? Eu, quando oiço esta palavra, asseguro-lhe que os vejo. Vou descrevê-los, quer? Dir-se-iam sinos resplendentes, grandes sinos azuis, cheios do perfume do amor e que o vento da tarde embala. Por que me diz que não os há diante de nós? Eu sinto-os! Vejo a campina cheia deles.- Os lírios não são mais belos do que tu os vês, minha Gertrudes.- Oh!, diga-me que eles não são menos belos!- São tão belos como tu os imaginas."

André Gide, Sinfonia Pastoral, trad. Roberto Ferreira, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 96. 

Monday, August 25, 2014

INFINDO


"Fora necessário registar a criança sob um nome qualquer, nome escolhido, aliás, com muito propósito. Ficara a chamar-se Maria das Dores em virtude dos grandes sofrimentos atravessados na sua breve existência. O que preocupava as mulheres, sobremaneira, não era a monstruosidade nauseante da morte da criança dentro da panela mas a sua morte sem baptismo. Baptizada tornar-se-ia em mais um anjinho, destinado a uma vida celeste; assim, não passava dum ser sem alma, condenado a errar, eternamente, através do limbo, arrastando atrás de si as secundinas às quais ficara ligado. No limbo não havia nada para além do vazio, da escuridão infinda e dum silêncio sepulcral."

Graça Pina de Morais, Jerónimo e Eulália, Lisboa: Antígona, 2000, p. 118. 

SENTIDOS


"Não lhe respondi logo, porque pensava que estas harmonias inefáveis pintam o Mundo não como é, mas como podia ser, sem o mal e sem o pecado. Ainda não ousara falar a Gertrudes no mal, no pecado e na morte. - Os que têm olhos - disse-lhe - não conhecem a sua felicidade. - Mas eu não os tenho - exclamou.  - Eu conheço a alegria de ouvir."

André Gide, Sinfonia Pastoral, trad. Roberto Ferreira, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 51. 

Sunday, August 24, 2014

ABASTAR


"Mas este mar, Sr. Aronnax - disse-me ele -, este celeiro prodigioso, inesgotável, não só me alimenta, também me veste.Os tecidos que o cobrem são feitos com o bisso de certas conchas, são tingidos com a púrpura dos antigos e misturados com cores violetas que extraio das aplisias do Mediterrâneo. Os perfumes que encontrará no quarto de banho da sua cabina são produto da destilação das plantas marinhas. A sua cama é feita da mais delicada zostera do oceano. A sua caneta será  uma barba de baleia; a tinta, o licor segregado pelo choco ou pelo calamar. Tudo agora me vem do mar, como tudo um dia nele irá terminar !"


Júlio Verne, 20.000 Léguas Submarinas, trad. M. de Campos, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 84. 

PARTE



"O coração sufocado pela angústia, eu procurava a solidão e a noite."


Charles Nodier, "Uma Hora da Madrugada ou A Visão", in As Melhores Histórias Insólitas, trad. Francisco Parente, Rio de Janeiro: Editorial Bruguera, s.d., p. 97. 

Wednesday, August 20, 2014

CONQUISTA




 
"O que todo o viajante deseja, o que todo o escritor precisa, é da ilusão de que é um descobridor solitário, quer seja de um território real ou imaginário. Isto é obviamente uma presunção, mas é necessário para preservar a disposição que permite a um escritor conquistar um lugar."


Paul Theroux, Mão Morta, trad. Nuno Guerreiro Josué, Lisboa: Quetzal, 2011, p. 165.

QUEIMARA

 




"Le soleil brûlait juste ici...
Un mât aux voiles noires
d' il y a bien longtemps."


Tomas Tranströmer, La Grande Énigme, trad. Jacques Outin, Paris: Le Castor Astral, 2004, p. 93.

VENTO CEGO



"Quand l'heure vient
le vent aveugle repose
sur les façades."


Tomas Tranströmer, La Grande Énigme, trad. Jacques Outin, Paris: Le Castor Astral, 2004, p. 89.

RELUCÊNCIA

 




"Forêt déconcertante
que Dieu habite sans argent.
Les murs reluisaient."



Tomas Tranströrmer, La Grande Énigme, trad. Jacques Outin, Paris: Le Castor Astral, 2004, p. 71.

REBOCADOR


"Le soleil disparaît.
Le remorqueur regarde avec
sa tête de bouledogue."


Tomas Tranströmer, La grande Énigme, trad. Jacques Outin, Paris: Le Castor Astral, 2004, p. 45.

Wednesday, August 13, 2014

TRANQUILIDADE


" - Que grandiosa cidade se construiria naquele anel de montanhas! Cidade tranquila, refúgio pacífico, longe de todas as misérias humanas. Como viveriam ali, calmos e isolados, todos os misantropos, todos os que odeiam a humanidade, todos os que se aborrecem da vida social!"- Todos! Não haveria espaço para eles! - comentou simplesmente Barbicane."


Júlio Verne, À Volta da Lua,trad. André Mendonça, Lisboa: Correio da Manhã, 2003, p. 148.

Friday, August 8, 2014

LUPI



"O homem irrealizado, ávido de glória, de heroísmo, de imortalidade, pensa que chegou o momento único para se impor."

Graça Pina de Morais, A Origem, 3ª edição, Lisboa: Antígona, 2002, p. 56. 

Thursday, August 7, 2014

REPOUSO


"A manhã benfazeja, larga, espaçosa e silente preenchia-a por completo e gostaria de conservar para sempre esse tranquilo interregno de repouso."

Graça Pina de Morais, A Mulher do Chapéu de Palha, Lisboa: Antígona, 2000, p. 25. 

DO VENTO


" -... A terra parecia despovoada, das casas não vinha um murmúrio de vida... só aquele vento de inferno a passar, a zunir... Então notei a velhice, a extrema decrepitude que invadira tudo. Estava em frente da minha casa, o tal palacete, o tal castelo miserável e tive a sensação que ele ia desabar, cair com fragor sobre mim, deixando-me soterrada, mas viva ainda. Sentia que uma grande trave pesava já sobre o meu peito, onde o coração batia sempre."

Graça Pina de Morais, Jerónimo e Eulália, Lisboa: Antígona, 2000, p. 77. 

ALIUS



"Mergulho os meus pés da água na pedra obsessiva
de encontro à táctil escrita que a mão gera no abismo. 
Ardendo, a voz de Deus - perpétua geometria
a noite me enche de olhos, de perfeição sombria

a pedra alastra agora na boca que sangrando
só o esplendor do abismo vê perder-se na escrita"


Laureano Silveira, O lado negro do lado branco, Porto: Limiar, 1993, p. 100. 

Monday, August 4, 2014

AS IMAGENS



"A carnificina continuava de parte a parte, a golpes de machado e de azagaia. Logo que um inimigo caía no chão, o adversário tratava de lhe cortar a cabeça. As mulheres, metidas no meio daquela turba, apanhavam as cabeças ensanguentadas e empilhavam-nas nos dois extremos do campo de batalha; lutavam até por vezes entre si para conquistar tão repugnantes troféus.
- Que horrível cena! - exclamou Kennedy com profunda repugnância.
- É nojento! - acrescentou Joe. - Se, no fim de contas, tivessem um uniforme qualquer, eram como todos os outros guerreiros deste mundo."
 
 
Jules Verne, Cinco Semanas em Balão, trad. Francisco Barata, Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 124.

CAELI


 
 
"Era um dos mais belos espectáculos que a natureza podia oferecer ao homem. Em baixo a tempestade, em cima o céu estrelado, tranquilo, mudo, impassível, com a Lua, que projectava os raios pacíficos sobre as nuvens irritadas."


Jules Verne, Cinco Semanas em Balão, trad. Francisco Barata, Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 96.