Tuesday, July 27, 2010

BALANÇO MENSAL 07



"Eh! Também o criador é cego,
Lutando pelo seu conjunto harmonioso,
Rejeitando partes intermédias,
Horrores e falsidades e erros;
Mestre incapaz de toda a força,
Idealista demasiado vago, esmagado
Por um aflato que persiste.
Por causa disto sofremos vidas breves,
Evanescentes simetrias
De um polegar de oleiro meticuloso."


Wallace Stevens, Harmónio, trad. Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa: Relógio D'Água, 2006, p. 239.

Monday, July 26, 2010

O LUGAR DOS SOLITÁRIOS


"Que o lugar dos solitários
Seja um lugar de ondulação perpétua.

Que seja em pleno mar
Na negra e verde nora,
Ou nas praias,
Que nunca cesse
O movimento ou o ruído do movimento,
O renovar do ruído
E múltiplos prolongamentos;

E, sobretudo, do movimento das ideias
E da sua incansável iteração,

No lugar dos solitários,
Que há-de ser um lugar de ondulação perpétua."


Wallace Stevens, Harmónio, trad. Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa: Relógio D'Água, 2006, p. 145.

Saturday, July 24, 2010

DIE TOTENINSEL - TERCEIRA INTERPRETAÇÃO A PARTIR DE ARNOLD BÖCKLIN



"Para onde vão as formas, as cores
das súbitas coroas das ideias
quando o seu deus as quebra?

Estas ricas cascatas de mil formas,
que no raio de sol
do espírito brilham um instante,
entre anjo e demónio,
como um tesouro imemorial.
Depois
não se vêem já em nada mais
que flores de cinza vã,
na pegada universal da miséria."


Juan Ramón Jimenez, Antologia Poética, trad. José Bento, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 154.

Friday, July 23, 2010

RIMAS


"
LXIX

Ao brilhar um relâmpago nascemos,
dura inda seu fulgor quando morremos:
tão curto é o viver!

Glória e amor por que nos consumimos
sombras de um sonho são que perseguimos:
acordar é morrer!"


Gustavo Adolfo Bécquer, Rimas, trad. José Bento, Lisboa: Relógio D'Água, 1994, p. 139.

Thursday, July 22, 2010

ELSINORE



"- Não vejo por que motivo tens de desistir do teu precioso modo de vida. Podias dar aulas de História de Arte em Edimburgo. Até podias voltar para a América.
- Não. Se continuar a existir dá cabo de mim. Não quero ficar como Sandy, uma espécie de playboy, a sustentar uma pega num apartamento e...
- Sandy com certeza que não sustentava pegas em apartamentos!
- Não, estou só a generalizar. Quero eu dizer, uma espécie de lavrador completamente inútil com um iate e um carro de corridas e a tratar de plantas e das árvores...
- Mas, Henry, por que havias de ficar assim?
- A minha mãe vive numa espécie de sonho feudal. É tudo falso, uma mentira, e eu vou estilhaçá-la.
- É preciso cuidado quando se estilhaçam as mentiras dos outros. É melhor concentrarmo-nos nas nossas próprias mentiras. "


Iris Murdoch, Henry e Cato, trad. Maria José Guerreiro, Lisboa: Edições Cotovia, 1996, p. 148.

Wednesday, July 21, 2010

SEGUNDA APROXIMAÇÃO A "L´EMBARQUEMENT POUR CYTHÈRE", DE WATTEAU



"O poema rejuvenesce a vida de modo que partilhamos
Por um momento a ideia inicial... Ele satisfaz
A crença num princípio imaculado

E envia-nos nas asas de uma vontade inconsciente
A um imaculado fim. Movemo-nos entre estes pontos:
Da candura primordial à sua tarde pluralidade

E a candura que há neles é a forte exaltação do
Que sentimos naquilo que pensamos, do pensamento
pulsando no coração como sangue recém vindo.

Um elixir, uma excitação, um poder puro.
O poema, através da candura, traz de novo um poder
Que dá a cada coisa uma cândida índole."


Wallace Stevens, Notas para uma Ficção Suprema, trad. Maria Andresen e Alexis Levitin, Lisboa: Relógio D'Água, 2007, p. 31.

Tuesday, July 20, 2010

PRIMEIRA APROXIMAÇÃO A "L'EMBARQUEMENT POUR CYTHÈRE", DE WATTEAU


"E por quê, senão por ti, sinto eu amor?
Estreito eu a mim, dia e noite em mim escondido,
O grande livro do mais sábio dos homens?
Na incerta luz da verdade, única, certa,
Igual, na sua intensa mutabilidade, à luz
Em que te encontro, em que quietos nos sentamos,
No centro do nosso ser, por um momento,
A intensa transparência que tu trazes é paz."


Wallace Stevens, Notas para uma Ficção Suprema, trad. Maria Andresen e Alexis Levitin, Lisboa: Relógio D'Água, 2007, p. 25.

Sunday, July 18, 2010

SE ALGUÉM ME DER UM CÃO RAIVOSO DE PRESENTE



"MORITZ

É o melhor. - Eu não me adapto a isto. Que eles se esfolem uns aos outros... Fecho a porta atrás de mim e liberto-me disto tudo. - Não estou muito interessado em me deixar empurrar.
Eu não me impus. Para que é que eu agora me hei-de impor? - Não tenho nenhum contrato com Nosso Senhor. Que vejam a coisa de uma maneira ou de outra, dá sempre o mesmo. Esmagaram-me. - Não responsabilizo os meus pais. De qualquer modo eles deviam estar preparados para o pior. Tinham idade suficiente para saberem o que estavam a fazer. Eu era um bebé quando vim ao mundo. - Senão teria sido suficientemente esperto para me transformar noutra pessoa. - Mas porque é que eu tenho de pagar pelo facto de todos os outros já cá estarem?!
Eu devia ser parvo... se alguém me der um cão raivoso de presente, eu devolvo-lhe o cão raivoso. E se ele não quiser ficar com o cão raivoso, então nesse caso eu sou humano e...
Eu devia ser parvo!
As pessoas nascem totalmente por acaso e não haviam elas de terem reflectido bem - é de dar um tiro na cabeça!"


Frank Wedekind, O Despertar da Primavera, trad. Maria Adélia Silva Melo, 3ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, pp. 109-110.

Saturday, July 17, 2010

PROCURA-SE LIBERTINO/A PARA AMIZADE



"Não se amavam.
Que milagre não se amarem!... O uso de se verem duas pessoas entreamadas gasta-lhes o amor. O uso de se verem as que muito se estimaram, não lho deixa nascer. O imprevisto, a surpresa, o domínio incerto e disputado, isto sim, é céu ou inferno, onde o amor rejubila como anjo, ou se estorce em fogo de réprobo."


Camilo Castelo Branco, O Sangue, 6ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1972, p. 48.

Thursday, July 15, 2010

MAIOR QUE A VIDA



"Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi."


Sophia de Mello Breyner Andresen, "Mar Novo" in Obra Poética I, Lisboa: Caminho, 1992, p. 301.

Wednesday, July 14, 2010

LEVIATAÇÃO



"De facto - é agora o momento de o dizer -, com excepção do assassínio, há apenas um traço que só os libertinos possuem e nunca partilham, seja de que forma for: é a palavra. O senhor é aquele que fala, que dispõe completamente da linguagem; o objecto é aquele que se cala, permanece separado, por uma mutilação - mais absoluta do que todos os suplícios eróticos - de todo o acesso ao discurso, pois nem sequer tem o direito de receber a palavra do senhor (as arengas dirigem-se apenas a Juliette e a Justine, vítima ambígua, detentora de uma palavra narrativa). É certo que há vítimas - muito raras - que podem discutir a sua sorte, acusar o libertino de toda a sua infâmia (M. de Cloris, Mlle. Fontange de Donis, Justine); mas não passam de vozes mecânicas, têm apenas um papel de cúmplices no desbragamento da palavra libertina. Só esta palavra é livre, inventada, confundindo-se inteiramente com a energia do vício. Na cidade sadiana a palavra será, talvez, o único privilégio de casta verdadeiramente irredutível."

Roland Barthes, Sade, Fourier, Loiola, trad. Maria de Santa Cruz, Lisboa: Ed. 70, 1999, p. 35.

Monday, July 12, 2010

CRIME E CASTIGO


"A troca dum valor qualquer, moeda, objecto, bem móvel ou imóvel, perdeu a função de simples meio e alargou-se aos domínios além do económico. O prazer da troca substituiu o prazer de possuir um bem. O amor é também objecto de troca, e a vida humana é, na sua dramatização que é a morte, e a morte dada por outrem, uma forma de consumo. Uma vez que até o suicídio entra no processo de troca, propensão obrigatória da natureza humana, o crime não fica longe dessa intenção de ganho que explica o suicídio e, sobretudo, o seu crescimento a partir do fim do século. Ele não significa tanto um resultado da melancolia, do estado de anomia provocado pelo desaparecimento dos laços sociais e parentais conforme a tradição. É um motivo de troca, pois o suicida espera obter na memória das pessoas um lugar que não teve mercê das suas limitações ou, em suma, da sua susceptibilidade de indesejável. A morte que é dada a alguém não se explica senão por um factor que não é adicional, mas, possivelmente, é o factor principal. Comete-se um crime para cultivar a imagem que nos está a ser subtraída. O que se exige da vítima é que ela devolva algo que representa um ganho excessivo, a personalidade de que ela se apoderou."


Agustina Bessa-Luís, Eugénia e Silvina, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1990, p. 290.

Saturday, July 10, 2010

AS PRISÕES DA VIRTUDE



"- Senhora - retorqui-lhe eu -, se tudo isso é obra do crime, a Providência, que acaba sempre por ser justa, não vos deixará que o gozeis por muito tempo.
- Enganas-te - contrariou a Dubois. - Não te convenças de que a Providência favorece só a virtude; não deve um curto instante de prosperidade cegar-te a esse ponto; para o bom equilíbrio das leis da Providência, é indiferente que Paulo faça o mal, enquanto Pedro faz o bem; a natureza necessita tanto duma coisa como da outra; é-lhe perfeitamente indiferente que neste mundo se pratique a virtude ou o crime; escuta-me com atenção, Teresa - continuou esta corruptora, sentando-se ao meu lado -, eu sei que és esperta e vou fazer tudo para te convencer.
Não é a opção virtuosa do homem que lhe faz encontrar a felicidade, minha filha, pois a virtude, tal como o vício, é apenas um modo de singrar na vida; seguir uma coisa ou outra é o que menos importa; o que é preciso é seguir sempre o caminho mais geral; quem dele se afastar está a laborar pelo erro; num mundo inteiramente virtuoso, eu aconselhar-te-ia a virtude, porque sendo então recompensada, traria consigo a felicidade; num mundo totalmente corrompido, eu aconselhar-te-ia sempre o vício. Quem não seguir o mesmo caminho que os outros está irremediavelmente perdido; irá chocar com tudo o que lhe aparece e, como é fraco, acabará por ser esmagado. É vão todo o esforço das leis para restabelecer a ordem e reconduzir os homens à virtude; prevaricadoras e fracas como são, elas levarão os homens a afastarem-se um tudo-nada do caminho mais batido, mas nunca poderão arredá-los totalmente desse caminho. Quando o interesse geral dos homens os impele para a corrupção, quem com eles não quiser corromper-se está a lutar contra o interesse geral; ora, que felicidade pode esperar quem está continuamente a contrariar o interesse dos outros? Vais talvez dizer-me que é o vício que contraria o interesse dos homens? Eu era capaz de o admitir num mundo composto por partes iguais de bons e de maus, porque nessa altura o interesse duns choca visivelmente com o dos outros; mas não se passa já o mesmo com uma sociedade completamente corrupta; os meus vícios, ultrajando somente o vicioso, determinam nele outros vícios com que ele se desforra, e ambos ficamos felizes. A vibração torna-se geral; é uma série de choques e de lesões mútuas em que cada um, tornando logo a ganhar o que acaba de perder, recupera a todo o momento uma posição vantajosa. O vício só é perigoso para a virtude que, fraca e tímida, não se atreve a agir."


Marquês de Sade, Justine ou os Infortúnios da Virtude, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Antígona, 2001, pp. 281-283.

Friday, July 9, 2010

DIE TOTENINSEL - SEGUNDA INTERPRETAÇÃO A PARTIR DE ARNOLD BÖCKLIN



"Em direcção à ilha, junto dos mortos,
casados com a canoa desde o bosque,
com os céus enrolados nos braços como abutres,
as almas saturninamente aneladas;

assim vogam os estranhos e os livres,
os mestres do ferro e da pedra:
rodeados pelo barulho de bóias que se afundam
e pelos latidos do mar azul-tubarão.

Eles remam, remam, remam:
oh mortos, nadadores, adiante!
Cercado também isto com nassa!
E o nosso mar que amanhã estará seco!"


Paul Celan, Sete Rosas Mais Tarde - Antologia Poética, trad. João Barrento e Y.K.Centeno, 2ª ed., Lisboa: Ed. Cotovia, 1996, p. 71.

Thursday, July 8, 2010

O QUE PODE NÃO ESTAR EM TOTAL ACORDO


"O nascimento de uma vocação artística: deixamos de pertencer ao universo relativamente acolhedor dos mamíferos, não temos mãe que se contraia e tenha dores para nos dar ao Sol. Descobrimo-nos então - aterrados- feitos planta; que tem de raspar as primeiras tenras células de encontro à terra dentro da qual nasceu e cuja crosta lhe cumpre furar a todo o custo para chegar a verde, a árvore. E esta terra portuguesa está numa espécie de grade ressequida; seca que já vem de trás, de longe - perguntem ao Antero e ao Garrett. Ao wagon-dor do Sá Carneiro-Cesariny-Express. Às lágrimas de aguardente do Fernando; à minha mãe Florbela (os remorsos que sinto por ter sido malcriada quando ela me ralhava por me portar bem à mesa ou querer ir cedo para a cama).

Mas sou arrastada para a criação literária por duas razões fundamentais: a infungibilidade da forma estável que poderei dar à parte da vida humana que conheço e o meu desejo de me unir ao Outro. Nenhum contacto humano directo vai tão longe (para mim) como sinto que pode ir o acto de escrever.
Les hommes veulent souvent aimer et ne sauraient y réussir, il cherchent leur défaite sans pouvoir la rencontrer, et, si j'ose ainsi parler, ils sont contraints de demeurer libres."


Nuno Bragança, A Noite e o Riso, Lisboa: ed. TV Guia Editora, 1996, pp. 225-226.

Tuesday, July 6, 2010

SE A FELICIDADE TIVER DE ME CORROMPER ASSIM



"- Meu senhor - disse eu ao celerado, apavorada com semelhantes discursos -, como é possível que possais conceber tais volúpias e que venhais propor-me servi-las? Os horrores que vós proferistes... Se vós, homem cruel, passásseis sequer dois dias pela desgraça, veríeis como tais sistemas de humanidade se desvanesceriam no vosso coração; é a prosperidade que vos cega e vos endurece; estais embotado pelo espectáculo de males que julgais longe de vos atingirem e, como esperais nunca os sentir, julgais-vos no direito de os inflingir aos outros; o meu desejo é que, se a felicidade tiver de me corromper assim, melhor será nunca a conhecer... Meu Deus! Já não basta abusar do infortúnio! Ter de levar a ousadia e a crueldade ao ponto de o acrescentar e de o prolongar, com vista à mera satisfação dos próprios desejos! Que crueza, senhor! Nem os animais ferozes nos dão exemplos de tanta barbárie!
- Teresa, estás enganada! Não há astúcia de que o lobo não se sirva para atrair o cordeiro; tais manhas encontram-se na natureza, na qual a bondade prima pela ausência; esta é característica da fraqueza preconizada pelo escravo, para comover o amo e o convencer a ser brando; a bondade só surge no homem em dois casos: quando ele é o mais fraco ou quando receia vir a sê-lo; a prova de que essa pretensa virtude não existe na natureza está no facto de ela ser desconhecida no homem que mais próximo está da mesma natureza. O selvagem, desprezando-a, mata o semelhante sem piedade, quer para se vingar, quer por avidez... Se essa virtude estivesse inscrita no seu coração, será que ele a respeitaria? A verdade é que ela não surgiu lá como nunca surgirá onde quer que os homens sejam iguais: a civilização, depurando os indivíduos, dividindo-os em classes, colocando o pobre na frente do rico, inspirando a este o receio duma mudança de estado que poderia precipitá-lo no nada do pobre, inscreve no seu espírito o desejo de consolar o infeliz, para ser por sua vez consolado, no caso de vir a perder as riquezas. Daí nasce a beneficência, fruto da civilização e do temor: é, portanto, uma virtude de circunstância, não é um sentimento da natureza: esta nunca pôs em nós desejo algum que não fosse o de nos satisfazermos, seja por que preço for. É confundindo assim todos os sentimentos, nunca analisando coisa alguma, que se cai na cegueira total e se renuncia a todo o prazer."


Marquês de Sade, Justine ou os Infortúnios da Virtude, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Antígona, 2001, pp. 242-243.

Monday, July 5, 2010

DIE TOTENINSEL - PRIMEIRA INTERPRETAÇÃO A PARTIR DE ARNOLD BÖCKLIN



"E ao voltar-me vi injustiça em tudo quanto acontecia debaixo do Sol, e olhei, e eram lágrimas daqueles que sofreram a injustiça, sem ninguém que os consolasse e aqueles que cometeram injustiça em relação a eles eram demasiado poderosos. Então louvei os defuntos que já tinham morrido.
Louvei os mortos. Todas as coisas têm o seu tempo, coser e rasgar, guardar e atirar fora. Louvei os mortos que jazem sob as árvores, dormindo."


Alfred Döblin, Berlim Alexanderplatz, trad. Sara Seruya e Teresa Seruya, 2ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2010, p. 467.

Saturday, July 3, 2010

TRÊS RUBAIYAT


" 26

O vasto mundo: um grão de poeira no espaço.
Toda a ciência dos homens: palavras.
Os povos, os animais e flores dos sete climas: sombras.
O resultado da tua perpétua meditação: nada.


37

Não posso divisar o Céu, com demasiadas lágrimas a toldar-me os olhos.
Os fogos do Inferno são apenas uma ínfima centelha,
quando os comparo às chamas que me devoram.
O Paraíso, para mim, é um instante de paz.


116

Dizia uma rosa: «Eu sou a maravilha do universo.
Na verdade, um perfumista teria a coragem de me fazer sofrer?»
Um rouxinol respondeu-lhe:
«Um dia de felicidade prepara um ano de lágrimas.»"



Omar Khayyam, Rubaiyat - Odes ao Vinho, trad. Fernando Castro, 3ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1999, pp. 29; 32; 52.

Friday, July 2, 2010

VELHAS E NOVAS ANTROPOFAGIAS



"A Franga - Que horrendos patifes! Estou prestes a desfalecer. Como? Furarem-me os olhos! Cortarem-me o pescoço! Assarem-me e comerem-me! Esses celerados não têm um pingo de remorsos?

O Frango - Não, minha amiga; os dois abades de que te falei diziam que os homens nunca têm remorsos das coisas que têm o hábito de fazer.

A Franga - A detestável corja! Aposto que quando nos devoram ainda se põem a rir e a contar ditos anedóticos, como se nada fosse.

O Frango - Adivinhaste; mas fica a saber, se te serve de consolação, que essas bestas bípedes como nós, e que estão verdadeiramente abaixo de nós visto que não têm penas, fizeram muito frequentemente o mesmo com os seus semelhantes. Ouvi dizer aos meus dois abades que nenhum imperador cristão ou grego se coibiu de furar os dois olhos aos primos e aos irmãos; que, mesmo no país em que vivemos, um houve, chamado Débonnaire, que fez arrancar os olhos ao seu sobrinho Bernard. Mas quanto a assar os da sua espécie, nada foi mais comum entre os homens. Os dois abades diziam que mais de vinte mil tinham sido assados por alimentarem certas opiniões, que seriam difíceis de explicar para um frango e que não importam por aí além.

A Franga - Seria, aparentemente, para os comer que os assavam.

O Frango - Não ouso assegurá-lo, mas lembro-me bem de ter ouvido claramente que há muitos países, entre os quais o dos judeus, onde os homens são alguma vezes comidos uns pelos outros.

A Franga - É adequado a uma espécie tão perversa que se devore a si mesma e seria justo que a terra fosse purgada desta raça. Mas eu que sou pacífica, eu que nunca fiz mal, eu que dei mesmo de comer a esses monstros ao dar-lhes os meus ovos, serei mutilada, cegada, degolada e assada! Tratam-nos assim no resto do mundo?"

Voltaire, Diálogo do Frango e da Franga, trad. Susana Pires, s. l.: Arbor Litterae, 2010, pp. 11-12

Thursday, July 1, 2010

EM JULHO REINA O GORGULHO


"Joe Bell pousou desdenhosamente os martinis frescos diante de nós.
- Tente nunca se apaixonar por um animal selvagem, Mr. Bell - aconselhou Holly. - Foi aí que o Doc errou. Estava sempre a trazer animais selvagens lá para casa. Um falcão com uma asa partida. Uma vez apareceu com um lince adulto a coxear. Mas não podemos confiar o coração a um animal selvagem: quanto mais lhe damos, mais forte fica até ter força suficiente para largar a correr para a floresta. Ou voar para uma árvore. E depois para uma árvore mais alta. E depois para o céu. É o que lhe vai acontecer, Mr. Bell, se se apaixonar por um animal selvagem. Acaba a olhar para o céu."


Truman Capote, Breakfast at Tiffany's (Boneca de Luxo), trad. Margarida Vale de Gato, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009, p. 80.