Wednesday, September 30, 2015

DERRAMA



"Esforçados eruditos
enumeraram os cento e quarenta e sete casos
de feridas de guerra. Isto na Ilíada. 
Ora soma tu os cento e seis golpes de lança, 
os dezassete sulcos de espada,
as doze setas lacerantes. 
os doze arremessos de funda. 
Nada existe para lá desse número. 
Tudo existe para lá desse número. 
A tua vida está fora do círculos. 
Nada de ti partindo, a ti chegando, 
será igual à sua soma."


Luís Quintais, Verso Antigo, Lisboa: Cotovia, 2001, p. 24. 

Monday, September 28, 2015

PENSAMENTO



" - Estou pensado, velho, que a vida é uma coisa muito triste. 
- Não sei para que Deus fez a pobreza...
- Os antigos não conheciam as terra longe, por isso não chegavam estas notícias tão tristes...
- É destino de cada um, velho...
- Destino não é só cair de rocha. Pode ser que nesta pedra em que estou sentado Nossenhor tenha fechado o meu destino..."

Baltasar Lopes, Chiquinho, Lisboa: Cotovia/BeI, 2008, p. 95. 

Sunday, September 27, 2015

A LUZ


"O Sol
brilhava agora
cheio de alegria
e sacudia
a luz
da sua imensa cabeleira
sobre o mundo."


Papiniano Carlos, A Menina Gotinha de Água, 2ª ed., Lisboa: Portugália Editora, 1969, p. 34. 

Saturday, September 26, 2015

TOTONE MENGA-MENGA



"Nhô Chic'Ana:
- As palavras de Totone Menga-Menga são como a escuma do mar que bate nas rochas. A escuma do mar que bate nas rochas é muito branca, porque não se sujou com a porquindade da terra da praia..."

Baltasar Lopes, Chiquinho, Lisboa: Cotovia/BeI, 2008, p. 30. 

Thursday, September 24, 2015

PARA ONDE?




" - Para onde?
- Para o seu amor da sabedoria, para o conhecimento dos objectos com que entra em contacto, a espécie de companhias que procura, uma vez que é aparentada com o divino, o imortal e o eterno, e para aquilo em que se tornaria, se se voltasse toda para coisas dessa natureza, e se, arrebatada por esse impulso, saísse do mar em que se encontra actualmente, arrancando seixos e conchas - as numerosas e selvagens excrescências de terra e pedra que, em consequência destes festins bem-aventurados, como lhes chamam, nasceram em volta dela no seu estado actual, porque é de terra que ela se banqueteia. Então ver-se-ia a sua verdadeira natureza, se é complexa ou simples, ou como é."


Platão, A República, X, 611e-612a, 8ª ed., trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa: FCG, 1996, p. 483. 

Wednesday, September 23, 2015

INFERNO DOS VIVOS


"E Polo: - O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar."

Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, trad. José Colaço Barreiros, 10ª ed., Lisboa: Teorema, 2006, p. 166. 

Monday, September 21, 2015

OURO



"Mas desde que a terra encobriu essa raça,
eles são divindades pela vontade de Zeus grande,
nobres, terrestres, guardiões dos humanos perecíveis;
eles vigiam as sentenças e as cruéis ações,
vestidos de bruma, vagando por toda a terra,
distribuidores de riquezas: obtiveram esse privilégio de reis."


Hesíodo, Os Trabalhos e os Dias, trad. Alessandro Rolim de Moura, Curitiba: Segesta Editora, 2012, 121-125, p. 75. 

Sunday, September 20, 2015

CANTINHO



"E muitas vezes ia comê-los para o Cantinho do Céu, um lugar que descobrira no bosque. Pusera-lhe este nome, porque era uma clareira que se abria no meio da espessura das árvores, como um oásis aberto ao firmamento. Era o lugar secreto de Berta, a Grande, e lá passava horas a fio a olhar para o céu, a brincar à descoberta de formas imaginárias nas nuvens, aquela parece uma cara, aqueloutra um peixe, aquela além um coelhinho, e partilhava com as nuvens a sua solidão."

Cuca Canals, Berta, a Grande (Berta la Larga), trad. Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Lisboa: Círculo de Leitores, 1997, pp. 33-34. 

Saturday, September 19, 2015

IMPRESSÃO



"No alto das Montanhas o silêncio é mais solene, os astros brilham com mais claridade, a tempestade ruge com mais fragor, o homem tem mais extensa visão da Terra e a sua alma parece ter mais alta visão do Céu, do que nas profundidades dos vales e na amplidão das planuras."

F. Gomes Teixeira, Santuários de Montanha (impressões de Viagens), Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1926, p. 16. 

Friday, September 18, 2015

PURITAS



"As Palavras Morrem; o Mundo é Eternamente Jovem. O artista viu o mundo com olhos de manhã, e, como Adão, deu a todas as coisas um nome. O lírio é belo, mas odiosa a palavra lírio usado e «violado». Por isso eu chamo ao lírio éoui: renasceu a pureza inicial."

"Declaração da Palavra Enquanto Tal", in Os Futuristas Russos, trad. Georgette Emília, Lisboa: Arcádia, 1973, p. 17. 

Thursday, September 17, 2015

CERRADO



"Cerrou-se a noite. Estirados, tendo a abóbada celeste por tecto e uma fogueira por manta, pois as tendas vinham na retaguarda, adormecemos naquele sono consequente da fadiga, e próprio de uma saúde sã e robusta, levando de um fôlego todas as horas do escuro. E só quando o Sol, com a sua auréola gloriosa, começou de espargir pelos espaços torrentes de luz, animando e enchendo de mil ruídos o âmbito enregelado, é que nós, descerrando as pálpebras, compreendemos que urgia levantar."

H. Capelo e R. Ivens, De Angola à Contracosta, vol. I, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 96. 

Wednesday, September 16, 2015

A HORA



"Sulcando donairoso pelo oeste dentro, avança o navio enquanto o Sol se oculta, e o cordão da terra pela popa começa a esbater-se no azul dos céus. Os últimos clarões desapareceram, amortalhou-se a abóbada no funéreo manto da noite, entrou a hora das cogitações."

H. Capelo e R. Ivens, De Angola à Contracosta, vol. I, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 46. 

Tuesday, September 15, 2015

ESPERA



"Levantou-se e tomou o caminho de casa. Na lama onde ia afundando os passos fermentavam as folhas caídas de outubro, oiro conspurcado que os vermes devoravam. Sentiu um arrepio à ideia do seu corpo num desamparo, numa miséria daquelas."

Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva, 18ª ed., Lisboa: Sá da Costa, 1980, p. 100. 

Monday, September 14, 2015

DESANOITECIA


"A terra mal desanoitecia ainda, mas viu-a por um segundo respirar o ar transfigurado das manhãs infantis. Tudo lhe pareceu cândido e perdido como outrora, quando na concha do céu a claridade nascia com a sua brancura de espuma. E pôs-se a imaginar nas ramadas das árvores o despertar das asas; na ausência humana o canto das últimas vindimadeiras; a paciência corpulenta dos bois nos chãos lavrados; na sua própria boca azedada de brandy a frialdade pura da água."

Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva, 18ª ed., Lisboa: Sá da Costa, 1980, p. 99. 

Sunday, September 13, 2015

ÁGUA MÚRMURA


"Escorria da bica uma água múrmura, coada pelo berço do areal. Bebiam todos dela, chapinhavam num daqueles regatos breves que as chuvadas de inverno faziam transbordar do tanque de pedra carcomida. Cantavam."

Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva, 18ª ed., Lisboa: Sá da Costa, 1980, p. 99. 

Saturday, September 12, 2015

CIDADE



"A arte floresce, a arte é soberana, a arte estende o seu cetro engrinaldado de rosas sobre a cidade, e sorri."

Thomas Mann, "Gladius Dei" in Contos, trad. Sara Seruya, Lisboa: Bertrand Editora, 2015, p. 231. 

Wednesday, September 9, 2015

TAPEÇARIA


"Se assumes um papel superior às tuas capacidades, não só o interpretas mal, como deixas de parte um outro em que poderias ser bem sucedido."

Epicteto, A Arte de Viver, trad. Carlos de Jesus, Lisboa: Edições Sílabo, 2007, p. 60. 

Monday, September 7, 2015

VER



"envolto num lençol de cal duas cintilações
sobre as pálpebras húmidas e um ardor perfura
a noite onde uma ponte atravessa um rio

O voo é demorado
ficaste a saber que nem deus é eterno
desfez-se no erro daquilo que criou perdeu-se
nas suas imperfeições e certezas

agora
pela janela do avião vês como tudo é mínimo
lá em baixo - quando a oriente da loucura
a mão cinzenta do inverno perdura no rosto
daqueles que sonolentos viajam dentro
deste pequeno túmulo de serenidade."


Al Berto, Horto de Incêndio, 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 21. 

Sunday, September 6, 2015

TROMPER



"Levantou-se bruscamente da cadeira:
- Nós sabemos que dizer a verdade não é só uma boa intenção. É uma coisa terrivelmente difícil. É um talento que é necessário praticar. É uma técnica. É um esforço. É preciso inteligência. É preciso capacidade de observação. E isso exige humildade e qualidades de introspecção. É simultaneamente uma ciência e uma arte. Porque é que não dizemos tudo a esses miúdos? Porque é que cada ser é prisioneiro da sua própria cólera e lança mentiras à cara dos outros?  Porque é que não se sabe automaticamente quão fácil é, não ser maldoso, mas enganarmo-nos? Por que é que Freddy não diz para consigo próprio: «Espera um momento. Talvez me engane». Mas, em vez disso, encontra os heróis, os heróis de músculos possantes, de nobre coração, armas na mão de cegos de uma lealdade inventada pelo autor. Desculpe-me."


Charlotte Amstrong, "O Inimigo", in Os Pássaros e outros contos de "suspense", trad. Adelino Cardoso, Lisboa: Ed. Hércules, s.d., p. 123. 

Saturday, September 5, 2015

AVISOS




"Talvez, pensava Nat comendo o seu lanche à beira da falésia, talvez os pássaros recebam uma mensagem no Outono, uma espécie de aviso. O Inverno chega. Muitos deles vão morrer. Acontece também que muita gente, pressentindo a morte prematura, se aturde no trabalho ou na loucura; assim fazem as aves."

Daphne Du Maurier, "Os Pássaros", in Os Pássaros e outros contos de "suspense", trad. Adelino Cardoso, Lisboa: Ed. Hércules, s.d., p. 9. 

Friday, September 4, 2015

NO VOO



"Observei-te sabendo já que eras um homem - a cabeça
De pelicano dobrado
O bico que te rasgava para fora

Adoeci como lâmpada que se funde
A coroa de espinhos sobre mim - a lembrança

Dobrei-me nas tuas asas
Nas chagas ainda quentes

No voo como gota de sangue no peito
Que vive. No coração

Que partes e distribuis com as mãos"


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 249. 

Wednesday, September 2, 2015

SÉTIMO ANO



"Senhor, era bom
Lavar as nossas lágrimas
De todo o sentimento...
Dos cansaços humanos, 
Daquela angústia vaga
E da alegria...
Senhor nós devíamos
Lavar as nossas lágrimas
Para serem na terra
Água perdida e irreconhecível."


Cristovam Pavia, in Verbo - Deus Como Interrogação na Poesia Portuguesa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, p. 147. 

Tuesday, September 1, 2015

NONA PORTA



"Viens. Le sentier s’enfonce aux gorges du Cyllène.
Voici l’antre et la source, et c’est là qu’il se plaît
A dormir sur un lit d’herbe et de serpolet
A l’ombre du grand pin où chante son haleine.

Attache à ce vieux tronc moussu la brebis pleine.
Sais-tu qu’avant un mois, avec son agnelet,
Elle lui donnera des fromages, du lait ?
Les Nymphes fileront un manteau de sa laine.

Sois-nous propice, Pan! ô Chèvre-pied, gardien
Des troupeaux que nourrit le mont Arcadien,
Je t’invoque… Il entend ! j’ai vu tressaillir l’arbre.

Partons. Le soleil plonge au couchant radieux.
Le don du pauvre, ami, vaut un autel de marbre,
Si d’un coeur simple et pur l’offrande est faite aux Dieux."


José-María Heredia, Les Trophées, Paris: Librairie Alphonse Lemerre, 1893, p. 42.