Friday, September 30, 2022

APRENDER

 



"O que aprendi nessa tarde?
Que a minha vida dependia do que me fora inculcado e que, mesmo que um sentimento que em mim antecipadamente se formara - como o meu medo -, não tivesse fundamento, eu não conseguiria ver-me livre dele com subterfúgios. De tal modo os nossos preconceitos são o pensamento dos outros; mas se eu tomasse o risco de observar e de pensar por mim mesmo
- talvez me achasse só, e sem medo.
Para que Alguém me faça perder o norte, é necessário uma geografia pré-existente à minha própria vida; não me tendo nunca sido dado vê-la, não penso desviar-me. 
No entanto, posso errar."


Maria Gabriela Llansol, Contos do Mal Errante, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 192. 

Thursday, September 29, 2022

ESCORREITO

 


" - Ó Escorreito,
a nossa agulha
caiu na cova. 

- Caiu na cova, 
ó Escorreito, 
o nosso precioso machado. 

Temos de os resgatar,
ó Escorreito, 
temos de os resgatar

- a nossa agulha, 
o nosso precioso machado, 
ó Escorreito -, 

antes de voltar para casa, 
nossos feixes de lenha
à cabeça!..."


Zetho Cunha Gonçalves, Noite Vertical. Poemas reunidos (1979-2021), Lisboa: Maldoror, 2021, pp. 262-263. 

Tuesday, September 27, 2022

CONTEXTO

 



"Fê-los figuras, no contexto do que eu chamei o eterno retorno do mútuo. Por outras palavras, todos esses personagens, a maior parte sempre tendo ignorado o que era o afecto, o amor, a sintaxe do amante, 
foram convocados para um acto de recomeço, 
no contexto contemplativo da conversação amorosa."


Maria Gabriela Llansol, Lisboaleipzig 1 - o encontro inesperado do diverso, Lisboa: Rolim, 1994, p. 130. 

Monday, September 26, 2022

FÚLGIDO POENTE

 




"olha-me a paisagem
acolhe-me além da bruma, 
dos fogos

e da impaciência dos rios ásperos
sob as pontes rasgando nas margens 
a luz obstinada das mãos penadas, prematuras

mãos caridosas qu'embalam
estevas de sombras
no centro descentrado
do humano sem memória
atento à vida do coro
de relâmpagos que o medo não esperou
perfis circundantes

dividindo etéreos os caudais d'outro hemisfério
que distraem marés ignotas do lado de cá doendo
como imóveis frutos por erro às voltas
do fúlgido poente das palavras

a paisagem enfabula em secundário grau 
um libelo de unidade, um ego insolado, 
déspota vereda
à volta do tempo ameaçado"


Luís Filipe Pereira, Elogio da espera [61+43 poemas], Lisboa: Poética Editora, 2022, p. 119. 

Sunday, September 25, 2022

ÂNSIAS

 



"Pellerin lia todas as obras de estética para descobrir a verdadeira teoria do Belo, convencido de que, quando a tivesse encontrado, faria obras-primas. Rodeava-se de todos os auxiliares imagináveis, desenhos, gessos, modelos, gravuras; e procurava, ralava-se: acusava o tempo, os nervos, o ateliê, saía à  rua para achar inspiração, sobressaltava-se por tê-la captado, depois abandonava a obra e sonhava com uma outra que devia ser ainda mais bela. Assim atormentado pelas ânsias de glória e perdendo os dias em discussões, acreditando em mil ninharias, nos sistemas, nas críticas, na importância de um regulamento ou de uma reforma em matéria de arte, não tinha ainda, aos cinquenta anos, produzido mais do que alguns esboços. O seu forte orgulho impedia-o de sofrer qualquer desencorajamento, mas andava sempre irritado, nessa exaltação ao mesmo tempo factícia e natural, própria dos comediantes."


Gustave Flaubert, A Educação Sentimental, trad. João Costa, Lisboa: Relógio D'Água, 2008, p. 36. 

Saturday, September 24, 2022

TANQUE

 




"Mergulho nos tanques limpos da paisagem.
Contemplo a paisagem depois de ter mergulhado nos tanques. 

É assim que seguirei pela paisagem, 
molhando-a com a água dos tanques."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Turquesa, Lisboa:  INCM, 2019, p. 327. 

Friday, September 23, 2022

OUTONO

 


"O que aprendi nessa tarde?
Que a minha vida dependia do que me fora inculcado e que, mesmo que um sentimento que em mim antecipadamente se formara - como o meu medo -, não tivesse fundamento, eu não conseguiria ver-me livre dele com subterfúgios. De tal modo os nossos preconceitos são o pensamento dos outros; mas se eu tomasse o risco de observar e de pensar por mim mesmo
- talvez me achasse só, e sem medo."


Maria Gabriela Llansol, Contos do Mal Errante, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 192. 

Wednesday, September 21, 2022

MISERICÓRDIA

 


"Há uma história silenciosa dos intensos que, porque necessitados de misericórdia, não impuseram aos seus congéneres as cadeias da explicação, nem miragens para o desejo. Gostaria que sobrevivesse a afirmação que nós somos epifanias do mistério, e mistério que nos nossos balbuciamentos se desenrola."


Maria Gabriela Llansol, Lisboaleipzig 1 - o encontro inesperado do diverso, Lisboa: Rolim, 1994, p. 85. 

Tuesday, September 20, 2022

OS INSTRUMENTOS DA ESPERA

 



"quão inúteis
os instrumentos da espera

artificiais relhas

abrindo um enxame de brechas
cicatrizadas
expectantes

abrindo um traço
fibrilas crepusculares
intransitivas

de uma quase
estereofonia

abrindo com sílabas d'areia
o presságio
a mariposa

o fermento 
das agulhas
postergado"


Luís Filipe Pereira, Elogio da espera [61+43 poemas], Lisboa: Poética Editora, 2022, p. 20.  

Monday, September 19, 2022

SER ÁGUA

 



"Serei tão secreta
como o tecido da água

e tão leve

e tão através de mim deixando passar
toda a paisagem

e todo o alheio pecado
do gesto, da presença ou da palavra

que logo que a tua mão me prenda
me não acharás:

serei de água"


Glória de Sant'Anna, "32 Poemas de Intervalo", in Amaranto - Poesia 1951-1983, Lisboa: INCM, 1988, p. 200. 

Sunday, September 18, 2022

O QUE NOS LIGA

 



"A água é funda, a água é funda.
Não tem destino que se pressinta. 
(O que nos liga são as nossas mágoas
e nossas iras.)

A água é grave, a água é grave.
Não há remorso que a dilacere.
(O que nos liga são nossa fome
e nossa espera.)

A água é pura, a água é pura.
Não há segredo que a deteriore.
(O que nos liga são nossas ilhas 
e nossos mortos.)


Glória de Sant'Anna, "Poemas do Tempo Agreste", in Amaranto - Poesia 1951-1983, Lisboa: INCM, 1988, p. 110. 

SIRENA

 


"Vamos pela vida dentro dizendo umas palavras e nada, e mesmo que encontrássemos as rigorosamente justas e que jamais levantassem suspeita sobre o que querem de facto dizer, o que poderíamos viver nelas, dizendo-as? Nada na mesma. As palavras dizem o que dizem com o falso e o verdadeiro que têm dentro, e é bom viver com elas assim para lhes cozinharmos o gosto, sofrendo muitas vezes com a fritura delas, os frios que apanham, as navegações, mas nada, sempre nada, ou coisa pouca. Felicidade... e depois?"

Abel Neves, Sentimental, Porto: Edições Asa, 1999, p. 67. 

Friday, September 16, 2022

A PALAVRA

 



"Sentia-se de novo a respirar e era um homem livre, evidentemente e apesar de tudo. Para trás ficavam umas coisas, algumas delas sem explicação mas a vida não tem que ser explicada, tem que ser vivida, e o que importava agora era concentrar-se na palavra calma, visioná-la no céu de Lisboa e continuar a acreditar na sua respiração, sempre motivo de júbilo para quem entende que sem ela é que a vida se escoa tão depressa como estar a luz presente."


Abel Neves, Sentimental, Porto: Edições Asa, 1999, p. 12. 

Thursday, September 15, 2022

HARMONIA

 



"Ai, eu te digo  que a noite é inútil
para o instante que me contém
- só vejo as estrelas que se desfazem
pelo céu adeante.

E aí, eu te digo que as longas palavras
me são todas distantes
- só escuto o silêncio que por elas fica
pela vida adeante.

Estrelas e silêncios é o que me detém
ainda um momento
por isso te pareço já tão ausente
em qualquer tempo. 

Dá-me a tua mão - e saberás 
qual é a harmonia
que me destrói e me refaz
na exacta medida."


Glória de Sant'Anna, "32 Poemas de Intervalo", in Amaranto - Poesia 1951-1983, Lisboa: INCM, 1988, p. 191. 

Wednesday, September 14, 2022

IFIGÉNIA (para a memória da Divina Irene Pappás)

 



"Ifigénia levada em sacrifício, 
Entre os agudos gritos dos que a choram,
Serenamente caminha com a luz, 
E o seu rosto voltado para o vento,  
Como vitória à proa de um navio, 
Intacto destrói todo o desastre."


Sophia de Mello Breyner Andresen, "Coral", in  Obra Poética I, Lisboa: Editorial Caminho, 1992, p. 204. 

Monday, September 12, 2022

DOS SONHOS (para a memória de Vítor Manuel de Aguiar e Silva)

 



"Quando o sol da vida se me vai tornando cada vez mais oblíquo e frio, ainda sonho com aventuras, surpresas e emoções no mundo encantados dos cancioneiros manuscritos. Sonho com o fólio do cancioneiro que confirmasse a autoria camoniana do soneto O dia em que eu nasci moura e pereça, para sossego meu e para gozo de Vasco Graça Moura; sonho com o manuscrito que transcrevesse as duas oitavas eróticas roubadas pela censura à chamada écloga dos faunos; sono com o cancioneiro que me resolvesse dúvidas antigas sobre alguns sonetos em castelhano que figuram nas Rimas; sonho com o Parnaso, o Graal de todos os camonistas, escondido algures na Andaluzia - Sevilha, Antequera, Granada... -, que foi terra, desde finais do século XVI, de apaixonados leitores e admiradores de Camões!
      Se para tão longo estudo não fora tão curta a vida..."

Vítor Aguiar e Silva, A Lira Dourada e a Tuba Canora: Novos Ensaios Camonianos, Lisboa: Livros Cotovia, 2008, p. 22.

Sunday, September 11, 2022

DESLOCAÇÃO

 



"Incêndios brancos galgam as vertentes
há chapas de luz na clareira sombreada.

Procuro a distância, a quietude que existe
na verde deslocação azul da paisagem.
Procuro as alturas improváveis da mente. 

Tarde
chego ao vale encontrado    tarde de outono
ensinarei às crianças     aos seus olhos
o esquecimento perdido."


Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Turquesa, Lisboa:  INCM, 2019, p. 47. 

Saturday, September 10, 2022

SABEDORIA

 



" - E se não houver parentes?
- Ficamos a dever. Um morto tem que ser enterrado. É da sabedoria das nações.
- Tu o disseste. 
- Vestimo-nos de luto porque se morreu, mas não nos vestimos de branco porque se viveu."


Maria Gabriela Llansol, "a surpresa", in Cantileno, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, pp.  138-139. 

Thursday, September 8, 2022

DOS PRODÍGIOS (para a memória da Rainha Isabel II do Reino Unido)

 



"Tudo era agora silêncio. Avizinhava-se a meia-noite. A lua subia lenta sobre a planície. A sua claridade erguia na terra um castelo fantasma. Lá estava a grande casa com todas as janelas vestidas de prata. Paredes e substância, não as tinha. Tudo era fantasma. Tudo era silêncio. Tudo se iluminara, como para receber a visita de uma Rainha morta. Olhando o panorama a seus pés, Orlando viu no pátio negras e trémulas plumas, e archotes vacilantes, e sombras ajoelhadas. A Rainha apeava-se uma vez mais da sua carruagem. 
«Esta é a sua casa, Senhora», exclamou, inclinando-se numa profunda vénia. «Nada mudou. O falecido senhor meu pai acompanhar-vos-á.»"


Virginia Woolf, Orlando, uma biografia, trad. Ana Luísa Faria, Lisboa. Relógio D'Água, 1994, p. 240. 

Wednesday, September 7, 2022

DO AMOR

 



"Então o amor tornou-a tão corajosa e livre que
não teme homem nem diabo, nem 
anjo nem santo, nem o próprio Deus em tudo
o que faz ou deixa de fazer, trabalhando ou descansando;
e ela sente que o amor está acordado dentro
dela e trabalhando tanto no
descanso do corpo como em muitos trabalhos: ela percebe 
bem e sente que o amor não reside no
trabalho nem no sofrimento de quem em cujo interior
ele reina."


Beatriz de Nazaré, Sete maneiras de amor sagrado, VI, 52-61, trad. Arie Pos, Porto: Edições Afrontamento, 2018, p. 71. 

Tuesday, September 6, 2022

IMPERTURBÁVEL

 



"Quando uma porta se fecha, volta-lhe as costas - implacável, irredutível. À tua frente,  dez portas entreabertas: frinchas e gelosias, deixando passar a claridade em suas cambiantes, promessas, tentações. 
Carrega os teus olhos com toda a força do teu Ser. Com a tua verdade inconteste, afronta o Sol e seus astros menores: o erro, a hipocrisia, o amor, a delicadeza e a paixão serão os mesmos - com outros rostos.
Quando uma porta se fecha, volta-lhe as costas - não é outro o secreto mistério dos pássaros, a despudorada leveza: imperturbável, feliz e cantante."


Zetho Cunha Gonçalves, Noite Vertical. Poemas reunidos (1979-2021), Lisboa: Maldoror, 2021, p. 173. 

Monday, September 5, 2022

AVISTAR

 



" - Nesta desolação, os deuses consolam-se com o que criaram no primeiro dia - notou Alexandre (a luz, a chama rara do círio que a corrente de ar desordenava).
- No segundo dia, se não me engano, a terra enxuta - prosseguiu. Vivente.  - Estava a terra enxuta no seio da madeira desvirginada do tabuado. 
- E nada do terceiro dia.
- O que era, Arlette? - perguntou Horácio. 
- Árvores. Verdura. Mas aqui a verdura é escassa. É para o gado. 
- De facto, não comemos hortaliça na pensão. 
- No quarto dia: o sol e a lua.
- Não deram ontem esparregado ao jantar?
- Estão mal. Nem o sol, nem a lua se vêem.
- E no quinto dia, quem se lembra? - insistiu Vicente.
- Eu - disse Arlette. - As aves, os peixes, os animais viventes. 
- Os deuses continuam a estar mal. Esses também não se vêem. 
- Avistam-se, quando abrem a porta de par em par."


Maria Gabriela Llansol, "O Estorvo", in Cantileno, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 98. 

Sunday, September 4, 2022

ILUMINADO

 



"Passou algo pelas feições de Joseph, que pareceram alterar-se de repente. 
- Deus dá coragem - disse ele -, Deus dá tudo. Tu não fazes parte dos trocistas, tu nunca te sentaste no banco de que se fala no salmo I, mas ainda não crês em mim. Amas o Senhor em paz, mas eu tenho a fúria de Deus. Só posso amar com violência porque sou um homem de desejo. É por isso que estou mais exposto a perder a graça divina e de certo modo mais perto do Inferno do que tu nunca hás-de estar. Eu não sabes o que é o Inferno, mas eu, por mim, sei-o, porque sei o que é o fogo. O fogo é a minha pátria. Fui atirado, um dia, em criança, ao braseiro da presença de Deus, sei o que é a queimadura no coração dos Apóstolos em Emmaus, e a queimadura no coração de Wesley, naquela noite de 24 de Maio. Porque Deus é fogo, David, e é-o de tal maneira que o horror da sua não presença ainda se exprime por meio de fogo, de fogo negro...
- Que é que tu dizes?- perguntou David. - Falas como um iluminado."


Julien Green, Moïra, trad. António de Sousa, Lisboa: Editora Ulisseia, 1973, p. 232. 

Saturday, September 3, 2022

RAMPA

 



"Os meus mortos deram-me versos, assombros- um rio
acampado na memória.
(Os pássaros tomam o ar do seu canto - vento, 
vento espantado.)
          E se troveja, 
cobrem-se de colchas e de toalhas os espelhos
da casa;
colocam-se três montículos de cinza fresca
nos cantos interiores das portas, 
e um fio de sorte, em sal grosso, ao longo do peitoril
das janelas voltadas a nascente - que se fecham, 
flor do mato, 
sem luz eléctrica nem água canalizada;
sem pára-raios.
         Sem pára-raios, 
desmembram os relâmpagos, faísca
sobre faísca, 
as árvores antigas da terra - que rodeiam, 
estremecem - amuleto e feitiço, 
como se Deus se soletrasse
na pedra inaugural do meu rosto."


Zetho Cunha Gonçalves, Noite Vertical. Poemas reunidos (1979-2021), Lisboa: Maldoror, 2021, p. 101. 

Friday, September 2, 2022

DÉCIMO QUARTO ANO

 


"E assim como o peixe que nada na
amplidão do mar e descansa na profundidade
e a ave que voa corajosamente
na vastidão e na altura do
céu, assim ela sente o seu espírito movimentar-se
livremente na amplidão e na profundidade, 
e na vastidão e na altura
do amor."


Beatriz de Nazaré, Sete maneiras de amor sagrado, VI, 35-42, trad. Arie Pos, Porto: Edições Afrontamento, 2018, p. 71. 

Thursday, September 1, 2022

ENTRADA

 


"Estava uma vez perguntando-me por que razão será Nosso Senhor tão amigo desta virtude da humildade e deu-se-me - creio que de repente, sem ter de discorrer - que é por Deus ser a suma verdade e porque ser humilde é andar na verdade; ora, é bem verdade que, de nosso, não temos senão a nossa miséria e o sermos nada; quem isto não entenda, anda em mentira e quem melhor o entende mais agrada à suma Verdade, por nela andar. Queira Deus, irmãs, fazer-nos a mercê de nunca sairmos deste conhecimento próprio, amen."

Santa Teresa de Ávila, "Moradas Sextas", cap. X, in Moradas do Castelo Interior, trad. Manuel de Lucena, Lisboa: Assírio & Alvim, 1988, p. 161.