Friday, September 30, 2016

ANGELOS


"E os anjos fenestram o céu
para nos verem:

apaixonados, em vós penhoraram o coração,
a túnica branca do martírio e a capa antiga
do tempo caindo-lhes sobre o dorso, 

para vos verem:
arrombam os tapumes, a abrir as varandas
de onde, debruçados, estenderam os braços
a alumbrar com velas a noite mais escura, 

onde passais, batendo a uma e outra porta, 
com a face enegrecida, de um reino perdido
a um país sem nome, 

para vos verem:

entontecidos pelo fumo, cegos, 
afeiçoados à memória de uma tulha que ardeu. 
Para vos verem 
guarnecerem de janelas o horizonte
pela tarde, 

asas recolhidas num véu de luto, 
cantam em ovação os impérios abolidos
e com um sopro extinguem o incêndio;

esperam a hora de retirar as secundinas
e assistiram, as daias, ao partejar de um novo dia."


Paulo Teixeira, Patmos, Lisboa: Caminho, 1994, pp. 53-54. 

Thursday, September 29, 2016

REFÚGIO


"Pelo contrário, os Ocidentais, sempre à espreita do progresso, agitam-se incessantemente na procura de uma condição melhor que a actual. Sempre em busca de uma claridade mais viva, afadigaram-se, passando da vela ao candeeiro de petróleo, do petróleo ao bico de gás, do gás à iluminação eléctrica, para cercar o menor recanto, o último refúgio da sombra."

Junichiro Tanizaki, Elogio da Sombra, trad. Margarida Gil Moreira, Lisboa: Relógio d'Água, 1999, p. 49. 

Wednesday, September 28, 2016

LOGOI



"Diversões de criança, as ideias humanas."


Heraclito, Fragmentos Contextualizados, trad. Alexandre Costa. Lisboa: IN-CM, 2005, p. 150. 

Tuesday, September 27, 2016

LEMBRANÇA



"Comprazemo-nos nessa claridade ténue, feita de luz exterior de aparência incerta, retida na superfície das paredes de cor crepuscular, e que conserva com dificuldade uma última réstia de vida. Para nós, essa claridade numa parede, ou antes essa penumbra, vale por todos os ornamentos do mundo e vê-la não nos cansa nunca."


Junichiro Tanizaki, Elogio da Sombra, trad. Margarida Gil Moreira, Lisboa: Relógio d'Água, 1999, p. 32. 

Monday, September 26, 2016

APURADO



" - Vivia num bosque um chacal chamado, Mahachaturaka, o qual, certa vez, encontrou um elefante que morrera de morte natural. Começou a dar voltas em torno dele, mas por parte alguma era capaz de rasgar-lhe a dura pele. Chegou entretanto àquele sítio um leão que por ali andava, e, ao vê-lo, o chacal prosternou-se, dizendo:
«- Senhor, sou o seu copeiro e estou a guardar-lhe este elefante. Coma-o o senhor.»
«- Nunca como animais mortos por outro - respondeu o leão. - Faço-te presente dele. 
Ao ouvir isto, o chacal disse:
«-Tal procedimento é próprio de um senhor, pois foi dito:

110. O nobre, ainda que se encontre em situação apurada, nunca abandona as suas virtudes, graças à sua nobreza imaculada. A concha, ainda que seja pasto do fogo, nunca perde a sua brancura."


Anónimo, Panchatantra, trad. L. Pereira Gil, Lisboa: edição Amigos do Livro, s.d., Livro IV, conto XV, pp. 311-312. 

Sunday, September 25, 2016

ASAS


"Todos os bebés eram larvares, seres por inventar asas. Por semelhança às canas de bambu e aos leques, a menina haveria de arranjar maneira de parecer voar. Poderia ter por olhos duas pedras translúcidas que transparecessem os interiores dos corpos, igual ao que acontecia nas lendárias louças dos palácios imperiais. Talvez visse através de um amadurecimento dos olhos. Os seus olhos poderiam ser como frutos que só se tornariam maduros com o fim do tempo quente. Seriam olhos em mutação. Era preciso esperar. Aqueles que nasciam obrigavam a esperar."

Valter Hugo Mãe, Homens imprudentemente poéticos, Porto: Porto Editora, 2016, p. 45. 

Saturday, September 24, 2016

INTERROGAR



"O Segundo Guerreiro - Como não interrogar, como há-de estar calmo o meu coração nesta hora? Sei eu onde estou e quanto tempo tenho ainda de velar? Esta escuridão sobre os muros, onde a pedra se esboroa e rola, será talvez o meu túmulo amanhã, e talvez que o vento que me açoita as faces já me não encontre amanhã - como não devo eu, enquanto vivo, interrogar sobre a minha vida? A chama palpita e enrosca-se antes que a mecha se extinga na sombra; como não há-de a vida sobressaltar-se em indagações antes de extinguir-se na morte? Talvez que já seja a morte que assim se interroga em mim e não a vida."


Stefan Zweig, Jeremias, 5ª ed., trad. Cândido de Carvalho, Porto: Civilização, 1964, p. 92. 

Thursday, September 22, 2016

BALBUCIO



"A débil linha, o que te prende
à escrita, a tinta sobre o papel, 
o delta que os dias descrevem. 
O que dirás ainda do outono?
Cada estação despede-se, é vê-la 
fugir como se não quisesse voltar. 
Da tua célebre memória, a de
elefante, haverias de roubar a cinza
do que balbucia no outono. Haverias
de roubar o seu perfil, a sua substância, 
o que não esquece. Da tua célebre memória, 
haverias de recuperar a cinza
sobre a árvore, a débil linha
que te prende."


Luís Quintais, Verso Antigo, Lisboa: Cotovia, 2001, p. 48. 

Wednesday, September 21, 2016

TROPEÇOS



"Toda a ternura do mundo acaba por tropeçar no próprio mundo, os cavalos também são treinados para não se afastarem demasiado (...)"

Camilo José Cela, A Cruz de Santo André, trad. José Carlos González, Lisboa: Bibliotex Editor/Difel, 2003, p. 21. 

Tuesday, September 20, 2016

SEM TEMPO



"Era o júbilo integral. Uma alegria unânime que cantava como a melhor música do samba.Sem os fermentos da ambição que atormentavam a natureza humana; sem os cuidados da previdência, numa vida de cada dia; sem imaginação que elaborasse pressentimentos mofinos; sobretudo, sem tempo para pensar em ser triste - essa gente miserabilíssima tinha a fortuna de não e conhecer. As próprias dores físicas eram discretas, sem choro alto."

José Américo de Almeida, Bagaceira, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 55. 

Monday, September 19, 2016

SENTIMENTALIDADES



"Lúcio sorria-se de sua tristeza inveterada perante tanta explosão de prazer que dissimulava a penúria permanente. Chegava a saber que os sofrimentos morais eram uma ilusão dos sentidos. Só havia uma condição de felicidade: não saber sofrer. Feliz era o animal que se encolhia à chicotada e a esquecia, quando deixava de doer. Feliz era a sensibilidade que não ia além da casca grossa. E bendizia a ignorância que ignorava até a dor. Invejava essa vivacidade inconsciente. Acostumado a cultivar as sentimentalidades malsãs, como um mendigo que vive de sua ferida aberta, ouvia casquinadas cavas, oriundas, talvez, das cavernas do estômago e não sabia rir de estômago cheio."


José Américo de Almeida, Bagaceira, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 55. 

Sunday, September 18, 2016

BOSQUEJO


"O que prefiro é estar só, para ninguém me aborrecer. Porque todos voltam sempre com as mesmas coisas; isto vai mal, ou isto vai bem. Um acha-o assim, o outro acha-o de maneira diferente; e também se ocupam sempre do que lhes não interessa pessoalmente. Antigamente teria feito, certamente, como eles, mas agora tudo isso está longe de mim. Para mim, as pessoas falam de mais. Têm preocupações, finalidades e desejos que não posso partilhar com eles; às vezes estou sentado com um deles no jardinzinho do café e procuro explicar-lhe que o essencial, em suma, é poder estar ali sentado tranquilamente."

Erich Maria Remarque, A oeste nada de novo, trad. Mário C. Pires, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1971, p. 122. 

Friday, September 16, 2016

DE CHUVA


"Pintava uma nuvem de chuva. Corria tudo besta, escogotado, com a boca aberta, como se fosse aparar a água com a boca. Era urubú até dizer basta. A urubusada vinha apus do resto da carniça. Dê por vista uma nuvem de chuva."

José Américo de Almeida, Bagaceira, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p.  34. 

Thursday, September 15, 2016

DISTÂNCIA



"Mas aqui, nas trincheiras, perdeu-se essa recordação. Já se não ergue dentro de nós; estamos mortos e ela permaneceu lá longe, no horizonte; é uma espécie de aparição, um reflexo misterioso que nos visita, que tememos e que amamos sem esperança. É forte e o nosso desejo é igualmente forte, mas é inacessível e nós sabemo-lo. É tão vão como a esperança de se ser general."

Erich Maria Remarque, A oeste nada de novo, trad. Mário C. Pires, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1971, p. 91. 

Wednesday, September 14, 2016

CÓLERAS



"Terra, com as tuas cóleras de terreno, os teus buracos e as tuas profunduras onde nos podemos achatar e acocorar, ó terra, nas convulsões do horror, quando a destruição se solta, e nos uivos de morte das explosões, és tu que nos dás a possante contracorrente da vida salva."

Erich Maria Remarque, A oeste nada de novo, trad. Mário C. Pires, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1971, p. 45. 

Tuesday, September 13, 2016

DISTÂNCIA


" - Mas a razão está mais longe. Olha, quando ensinas um cão a comer batatas e depois lhe apresentas um bocado de carne, não tenhas dúvidas de que ele se deitará a esta, porque lhe está na natureza; se dás a um homem um pouco de autoridade é a mesma coisa; precipita-se logo. Isto está nele, pois o homem, na origem, não passa de um reles animal e só mais tarde, talvez, é que recebe umas tinturas de decência, como a manteiga nas torradas."

Erich Maria Remarque, A oeste nada de novo, trad. Mário C. Pires, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1971, p. 37.

Monday, September 12, 2016

DOMESTICAÇÃO


"A nossa instrução militar durou dez semanas, e esse tempo foi o bastante para nos transformar de uma maneira mais radical que dez anos de escola. Soubemos que um botão bem reluzente é mais importante que quatro tomos de Schopenhauer. Ao princípio espantados, depois irritados e por fim indiferentes, reconhecemos que não é o espírito que deve preponderar, mas sim a escova do calçado, que não é o pensamento, mas o «sistema», que não é a liberdade, mas a domesticação. Tornámo-nos soldados com entusiasmo e boa vontade, mas fizeram tudo para nos desgostar. Ao cabo de três semanas compreendíamos muito bem que um carteiro com divisas podia ter mais direitos sobre nós do que outrora os nossos pais, os nossos educadores e todos os génios da cultura, desde Platão até Goethe. Com os nossos olhos jovens e bem abertos vimos que a noção clássica de pátria tal como no-la haviam ensinado os nossos mestres, chegava aqui, na presente ocasião, a uma privação da personalidade que nunca teríamos ousado pedir aos mais humildes criados."

Erich Maria Remarque, A oeste nada de novo, trad. Mário C. Pires, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1971, pp. 21-22. 

Saturday, September 10, 2016

PARA A MEMÓRIA DO DIVINO JOSÉ RODRIGUES



"Talvez nem seja um tordo. Um pássaro 
cantava. Seria o último
desse verão. A própria luz

não ajudava: não era barco 
de manhã nem brisa ao fim da tarde. 
Talvez o anjo do poema

pudesse em seu lugar subir aos ramos
e cantar. Mas os anjos 
são tão distraídos! Deles não há

nada a esperar, a não ser fogo
de palha. Talvez nem seja um tordo.
O seu canto, só vibração do ar."



Eugénio de Andrade, "Os Lugares do Lume", in Poesia, 2ª ed. revista. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 572. 

Friday, September 9, 2016

TRABALHEIRAS


"Vivia ele, desse jeito, entre trabalheiras e ócios, como o homem-máquina destas terras que ou se agita resistentemente ou, quando pára, pára mesmo, como um motor parado."

José Américo de Almeida, Bagaceira, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 7. 

Thursday, September 8, 2016

DEGRAUS


" - O negócio é o seguinte: o passado aconteceu, foi bom, mas não volta mais. Agora a gente tá noutra. Você está na beira de uma escada e tem muitos degraus pra subir. Cada degrau é uma tremenda vitória que tem que ser muito comemorada. Olhar pra trás não adianta. Aconteceu."

Marcelo Rubens Paiva, Feliz Ano Velho, 49.ª ed., São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 214. 

Wednesday, September 7, 2016

CIRCUM


"1 Ele disse:
 2 Senhor, há muitos à volta da entrada, 
 3 mas nenhum lá dentro do poço."

O Evangelho Segundo Tomé, trad. Cristina Proença, rev. José Augusto Martins Ramos, 2ª ed., Lisboa: Estampa, 2001, p. 74. 

Monday, September 5, 2016

NECESSIDADE



"Jeremias - É necessário aquecer a minha casa no abismo e a minha vida na morte? É necessário semear para o apodrecimento e cantar louvores à ruína total? Digo-te, minha mãe, que feliz é quem, de hora em diante, não prende o seu coração àquilo que vive, porque quem respira este dia já bebe a taça da morte."


Stefan Zweig, Jeremias, 5ª ed., trad. Cândido de Carvalho, Porto: Civilização, 1964, p. 14. 

Sunday, September 4, 2016

VIRTUDE


"Cabe añadir que la segunda generación es superior a la primera, la tercera a la segunda y la cuarta a la tercera es decir, que la virtud de este Árbol se multiplica por diez cada vez que se transplanta y puede alcanzar tal grado de perfección que, por su calor muy penetrante y su mucha pureza, puede hacer de la luna y del mercurio vulgares algo totalmente parecido al oro metálico natural."


Anónimo, Instrucción de Un Padre a Su Hijo Acerca del Árbol Solar, trad. Santiago Jubany i Closas, Barcelona: Indigo, 1997, p. 37. 

Saturday, September 3, 2016

SOLAR



"Por tanto, al igual que los campesinos, quitaremos de nuestra tierra toda impureza y superfluidad. A continuación la haremos más esponjosa según el Arte y la Naturaleza, lavándola, regándola y desecándola. Hecho esto, la engrasaremos con su grasa natural y después de haber recibido el rocío del cielo, que le comunicamos a la manera de los Sabios, estará tan bien preparada que quedará dispuesta para recibir la semilla metálica de nuestra Piedra, es decir, del Oro vivo de los Sabios que, a su devido tiempo, producirá el Árbol Solar."


Anónimo, Instrucción de Un Padre a Su Hijo Acerca del Árbol Solar, trad. Santiago Jubany i Closas, Barcelona: Indigo, 1997, p. 36. 

Friday, September 2, 2016

OITAVO ANO


"Que deusa, que deus
se entregou ao espaço 
para que sintamos melhor
a claridade da sua face?

Seu ser dissolvido
enche este vale de pureza
com os redemoinhos
da sua imensa natureza. 

Está amando e dormindo.
Seguros quanto ao Sésamo que abre, 
entramos no seu corpo
e descansamos na sua alma."


Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos, trad. Maria Gabriela Llansol, Lisboa: Relógio d'Água, 1996, p. 219. 

Thursday, September 1, 2016

POÇA



"Quando por algum motivo
a roda de água se rompe, 
outra máquina se escuta:
agora, de dentro do homem;

outra máquina de dentro, 
imediata, a reveza, 
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa. 

Então se sente que o som
da máquina, ora interior, 
nada possui de passivo, 
de roda de água: é motor;

se descobre nele o afogo 
de quem, ao fazer, se esforça, 
e que ele, dentro, afinal, 
revela vontade própria, 

incapaz, agora, dentro, 
de ainda disfarçar que nasce
daquela bomba motor
(coração, noutra linguagem)

que, sem nenhum coração, 
vive a esgotar, gota a gota, 
o que o homem, de reserva, 
possa ter na íntima poça."


João Cabral de Melo Neto, "Serial", in Poesia Completa - 1940-1980, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, pp. 197-198.