Thursday, June 30, 2011

DUNA


"Aqui as coisas se transformam.

Do reino não lembramos muito e
quem dirá se era verdade?

Do mar o que existe é incolor.
Peixes. Objectos perdidos.

O sol é barco movendo-se
pelo caminho mais curto.

O corpo a imagem contraída no mundo,
verdadeira e falsa.

Um animal acaba de chegar."

João Miguel Fernandes Jorge, "Sob Sobre Voz", in Obra Poética, vol. I, 2ª edição, Lisboa: Editorial Presença, 1987, p. 38.

Wednesday, June 29, 2011

O AUTOMÓVEL NÃO TINHA SEGURO


"É no momento que encerra a beleza de um gesto
que se prolonga a vida -

Na carne afeiçoada à mão apagam-se os sinais
de antigas fogueiras: o dilúvio do amor
veio lavar as cicatrizes deste mundo; e as pregas
de um rochedo que desafia o génio das marés
não lembram mais do que uma colcha amarrotada.

Agora, pode pintar-se o retrato do vento
no esquadro da janela. O tempo não se mexe.
A vida, por um instante, é enorme."

Maria do Rosário Pedreira, O Canto do Vento nos Ciprestes, 3ª edição, Lisboa: Gótica, 2007, p. 16.

Tuesday, June 28, 2011

COISAS DE NADA


"O dia bebeu-nos
Como a um vinho sossegado:
Deu-nos
Então um sono pesado.

O dia fez-se no horizonte
Como um rapaz se faz homem
Sentindo suor na fronte
Pulso duro
E uma mulher perturbada.
Exemplo do dia escuro
Tomem
Todas as coisas de nada."

Vitorino Nemésio, "eu, comovido a oeste", in Poesia (1935-1940, Lisboa: Livraria Bertrand, 1986, p. 228.

Sunday, June 26, 2011

A PRIMITIVE GESTURE?


"O corpo é a figura, ou antes, o material da Figura. Sobretudo há que não confundir o material da figura com a estrutura material espacializante que se lhe opõe. O corpo é Figura e não estrutura. Inversamente, a Figura, sendo corpo, não é rosto e nem sequer tem rosto. Tem uma cabeça, porque a cabeça é parte integrante do corpo. Pode mesmo reduzir-se à cabeça."
Gilles Deleuze, Francis Bacon - Lógica da Sensação, trad. José Miranda Justo, Lisboa: Orfeu Negro, p. 59.

Saturday, June 25, 2011

O QUE SE PROLONGA NA DISTÂNCIA


"O silêncio continua o caminho
quando não é possível a viagem.

Tem campos
que se prolongam na distância.
No seu dorso encontro
o que nenhuma frase alcançaria.

Os poemas ficam sempre antes
do lugar desejado.
Não seguem até ao fim
do instante que permitem.

O mundo começa no seu limite,
depois de cada palavra.
E a poesia outra vez isolada
tornou-se no sinal da despedida."

Joel Henriques, A Claridade, s.l.: Editora Casa do Sul, 2008, p. 31.

Friday, June 24, 2011

A POSSE DO LUGAR


"Encontrar. Perder. Será que o leitor reflectiu bem sobre o que é a perda? Não é apenas a negação desse generoso instante que vem preencher uma espera de que nem o próprio leitor suspeitava. Porque entre esse instante e a perda há sempre aquilo a que se chama - muito desajeitadamente, concordo - a posse.
Ora, a perda, por mais cruel que seja, não pode nada contra a posse, completa-a, se assim quiserem; afirma-a; no fundo, é apenas uma segunda aquisição, completamente interior desta vez e muito mais intensa."

Rainer Maria Rilke, in Balthus/Rilke, Mitsou - Quarenta desenhos de Balthus, trad. Manuel Alberto, Lisboa: Relógio D'Água, 2002, p. 17.

Thursday, June 23, 2011

CÓDIGO


"A humanidade padece de imprecisão."

Elias Canetti, Auto-de-Fé, trad. Luís de Almeida Campos, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2011, p. 336.

CERVOS DO MONTE VOLVIAM A ÁGUA



"A própria beleza exprime o horrível como o constrangimento que irradia da forma; o conceito de esplendoroso exprime esta experiência. A irresistibilidade do belo, sublimado pelo sexo, atinge as mais elevadas obras de arte, é exercida pela sua pureza, pela sua distância da materialidade e do efeito. Semelhante constrangimento torna-se conteúdo. O que sujeitava a expressão, o carácter formal da beleza, com toda a ambivalência do triunfo, transforma-se em expressão, na qual o aspecto ameaçador da dominação da natureza se une com a nostalgia do que é dominado e se ilumina com tal dominação. Mas, é a expressão do sofrimento na subjugação e no seu ponto de fuga: a morte. A afinidade de toda a beleza com a morte tem o seu lugar na ideia da forma pura, que a arte impõe à diversidade do ser vivo, que nela se extingue. Na beleza imperturbada, o que lhe resiste seria totalmente pacificado e semelhante reconciliação estética é mortal para o extra-estético. É a tristeza da arte."
Theodor W. Adorno, Teoria Estética, trad. Artur Morão, Lisboa; Edições 70, 2006, p. 67.

Wednesday, June 22, 2011

O QUE DEIXARMOS NA VIDA


"PSICOPOMPO - Importa saber o que recordas, agora que deixaste a vida.

FLORBELA - O olhar dos animais! Que beleza e que inocência! E só agora o sei. Foi a  sensação mais dolorosa e meiga que encontrei à superfície da Terra.  Acredito nas coisas pequenas e modestas; creio na glória dos humildes. As grandes figurações estão por dentro frias e inertes. Há mais calor numa andorinha que num homem público, e mais luz na vela duma choupana que na lâmpada eléctrica duma academia."
António Cândido Franco, A Primeira Morte de Florbela Espanca - drama mágico, Évora: Editora Licorne/Centro de Estudos em Letras, 2009, p. 48.

Tuesday, June 21, 2011

A CAÇA


"Quem observar os movimentos de um fotógrafo munido de aparelho (ou de aparelho munido de fotógrafo) estará a observar um movimento de caça. O antiquíssimo gesto do caçador paleolítico que persegue a caça na tundra, com a diferença de que o fotógrafo não se movimenta na pradaria aberta, mas na floresta densa da cultura. O seu gesto é, pois, estruturado por essa taiga artificial, qualquer fenomenologia do gesto fotográfico deve levar em consideração os obstáculos contra os quais o gesto choca: reconstituir a condição cultural do gesto.
A selva consiste em objectos culturais, portanto objectos que têm intenções determinadas. Estes objectos intencionalmente produzidos vedam ao fotógrafo a visão da caça. E cada fotógrafo é vedado à sua maneira. Os caminhos tortuosos do fotógrafo visam driblar as intenções escondidas nos objectos. Ao fotografar, avança contra as intenções da sua cultura. Por isso, fotografar é um gesto diferente, conforme ocorra na selva de uma cidade ocidental ou de uma cidade subdesenvolvida, numa sala de estar ou num campo cultivado. Decifrar fotografias implicaria, entre outras coisas, o deciframento das condições culturais dribladas."
Vilém Flusser, Ensaio Sobre a Fotografia, trad. Arlindo Machado, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 49.

Monday, June 20, 2011

ESCREVER DIREITO POR LINHAS TORTAS



"ANJO - Calai-vos!

SATANÁS - Calar-me... mas por quê? Que significou, afinal,  o momento em que na cruz Ele ergueu os olhos ao céu e expirou dizendo, Pai, porque me abandonaste, senão o instante em que o Pai me entregou o seu filho?

ANJO - Agora me queixo eu. Guardai para os vossos o enxofre da doutrina malévola. Advogai aqui o que entre nós está acordado.

SATANÁS - Perdoai. É que há mistérios que transcendem o entendimento...

SÃO PEDRO - Deus escreve direito por linhas tortas!

FLORBELA - Que farsa! Estou cansada da morte. Quem me dera morrer na Morte."

António Cândido Franco, A Primeira Morte de Florbela Espanca - drama mágico, Évora: Editora Licorne /Centro de Estudo em Letras, 2009, p. 30.

Sunday, June 19, 2011

THE END OF ALL KNOWLEDGE


"Man knows nothing
till he knows how not-to-know.

And the greatest of teachers will tell you:
The end of all knowledge is oblivion,
sweet, dark oblivion, when I cease
even from myself, and am consummated."
D. H. Lawrence, The Complete Poems, London: Wordsworth Editions, 2002, p. 612.

CLARIDADE (em memória de Cecília Bento)


"No dia em que habitarei a terra,
a ausência será maior
do que neste momento,
em que pronuncio a cinza das palavras.

O rumor leve e unânime do vento,
as folhas que se agitam nas árvores
serão suficientes
para a evidência do nada.

Viverei na encosta do instante,
sem que a sua abundância me sacie.

No dia repleto, o sabor dos frutos
recordará o presente.
Talvez estenda
também os braços incompletos."

Joel Henriques, A Claridade, s. l.: Editora Casa do Sul, 2008, p. 61.

Thursday, June 16, 2011

FACES DO MUNDO


"Ver as coisas até ao fundo...
E se as coisas não tiverem fundo?

Ah, que bela a superfície!
Talvez a superfície seja a essência
E o mais que a superfície seja o mais que tudo
E o mais que tudo não é nada.

/Ó face do mundo, só tu, de todas as faces,
És a própria alma que reflectes/"

Fernando Pessoa, Poemas Completos de Alberto Caeiro, recolha, transcr. e notas de Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Editorial Presença, 1994, p. 149.

Wednesday, June 15, 2011

PARA ESCAPAR AO TEMPO


"A cegueira é uma arma contra o tempo e o espaço. A nossa existência não é mais do que uma imensa e única cegueira, exceptuando o pouco que os nossos sentidos mesquinhos - mesquinhos tanto por natureza como por alcance - nos transmitem. O princípio dominante no cosmos é a cegueira. Permite uma justaposição das coisas que seria impossível se estas pudessem ver-se umas às outras. Permite fazer fissuras no tempo quando uma pessoa não está à sua altura. Que é, por exemplo, um esporo enquistado senão um pedaço de vida que se envolve numa capa de cegueira até eclodir? Para escapar ao tempo, que é um continuum, há apenas um meio: não vê-lo de vez em quando. Assim o reduzimos àqueles fragmentos que nos são conhecidos."
Elias Canetti, Auto-de-Fé, trad. Luís de Almeida Campos, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2011, p. 74.

Tuesday, June 14, 2011

MORRER DE VIDA


"Estais mortos.
Que estanha maneira de estar mortos. Quem quer que seja diria que não o estais. Mas, na verdade, estais mortos.

Flutuais nadamente por trás dessa membrana que, pêndulo do zénite ao nadir, vem e vai de crepúsculo a crepúsculo, vibrando diante da sonora caixa de uma ferida que não vos dói. Digo-vos, pois, que a vida está no espelho, e que sois o original, a morte.

Enquanto a onda vai, enquanto a onda vem, quão impunemente se está morto. Só quando as águas se quebram, nas margens enfrentadas e se dobram e dobram, então transfigurais-vos e, julgando morrer, descobris a sexta corda que já não é vossa.

Estais mortos, não tendo nunca antes vivido. Quem quer que seja diria que, não sendo agora, fostes em outro tempo. Mas, em verdade, vós sois os cadáveres de uma vida que nunca foi. Triste destino. O não ter sido senão morto sempre. O ser folha seca sem ter sido verde jamais. Orfandade de orfandades.

E contudo, os mortos não são, não podem ser cadáveres de uma vida que ainda não viveram. Morreram sempre de vida.

Estais mortos."
César Vallejo, Antologia Poética, trad. José Bento, 2ª ed. aumentada, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 70.

Sunday, June 12, 2011

PELA VIDA, PARA A DONA Q.


"A vida é um milagre.
Cada flor,
Com a sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.

- Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."
Manuel Bandeira, Antologia Poética, 18ª ed., Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 1987, p. 168.

Thursday, June 9, 2011

NÃO TE ESQUEÇAS

(Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa)

"- Não podes recordar-te de uma única coisa?
- Posso, sim. Já te disse que posso.
- Então lembra-te.
- Gosto do Allie - disse eu. - E gosto de fazer exactamente o que estou a fazer agora, aqui sentado contigo, a conversar, a pensar...
- O Allie já morreu! Andas sempre a dizer a mesma coisa. Se uma pessoa já morreu, e está no Céu, e tudo o mais...
- Eu sei que ele já morreu! Ou julgas que não sei? Mas parece-me que posso continuar a gostar dele, ou não? Lá porque uma pessoa morre, nunca mais pensamos nela, hem? E, ainda para cúmulo, quando uma pessoa que morreu é cem vezes melhor que as pessoas que estão vivas."
J. D. Salinger, The Catcher in the Rye [Uma Agulha no Palheiro], trad. João Palma-Ferreira, Lisboa; Livros do Brasil, 2000, p. 194.

A CAIXA 7


"Finalmente despi-me e meti-me na cama. Tive vontade de rezar, mas não consegui. Nem sempre consigo rezar quando me apetece. Em primeiro lugar, porque sou uma espécie de ateu. Gosto de Jesus, mas não me interesso pela Bíblia. Os discípulos, por exemplo! Se querem saber a verdade, só me chateiam. Foram estupendos quando Jesus morreu, mas enquanto Ele vivia não lhe serviram para nada. Deixaram-No perder-se. Gosto das outras coisas, mas dos discípulos não gosto. Para ser franco, depois de Jesus, a personagem da Bíblia de que eu mais gosto é daquele lunático que vivia nos túmulos e passava a vida a cortar-se com pedras. Gosto dez vezes mais desse pobre diabo do que dos discípulos. Costumava discutir o assunto em Whooton com um tipo chamado Arthur Childs. Esse Childs era quacre e andava sempre a ler a Bíblia. Era um óptimo rapaz e eu gostava dele, mas não podíamos concordar com certas coisas, especialmente com o que ambos pensávamos dos discípulos. Dizia-me que se eu não gostava dos discípulos também não gostava de Jesus. Dizia isso porque Jesus tinha arranjado os discípulos, e, por conseguinte, devíamos gostar deles. Eu dizia-lhes que se eu não gostava dos discípulos também não gostava de Jesus. Dizia isso porque Jesus tinha arranjado os discípulos, e, por conseguinte, devíamos gostar deles. Eu dizia-lhe que sabia muito bem que fora Jesus quem arranjara os discípulos, mas arranjara-os ao acaso. Com certeza que ele não tinha tempo para pensar em toda a gente. E dizia-lhe que isto não era nenhuma blasfémia. Jesus não era culpado de não ter tempo. Certa vez perguntei ao Childs se pensava que Judas, o que traiu Jesus, tinha ido para o Inferno depois de se ter suicidado. Childs disse que sim, que fora para o Inferno. Ora é com isso que eu não posso concordar. Disse-lhe que era capaz de apostar mil dólares em como Jesus nunca o mandaria para o Inferno. E digo-vos que apostava mesmo, se tivesse os mil dólares. Acho que os outros discípulos eram capazes de mandar Judas para o Inferno. Mas aposto que Jesus nunca o faria."
J. D. Salinger, The Catcher in the Rye [Uma Agulha no Palheiro], trad. João Palma-Ferreira, Lisboa; Livros do Brasil, 2000, pp., 118-119.

Wednesday, June 8, 2011

A CAIXA 6


"A poesia não é um tema importante (há quinze dias
que o mundo deixou de ter sentido).
O que interessa afinal são os breves modos
da morte, a mosca que teimosamente
caiu no rude prato da nossa sopa.

Porque é sobre nós que deixa de haver mundo
para podermos celebrar o vazio
- ou outra coisa qualquer."

Manuel de Freitas, Todos contentes e eu também, Porto: Campo das Letras, 2000, p. 74.

A CAIXA 5


"Se quiseres ter a magnífica solidão das estrelas e das flores,
rompe com todos os homens e todas as mulheres.
Não caminhes junto de ninguém.
Não te debruces sobre nenhuma dor.
Não participes em nenhuma festa."

Omar Khayyam, Rubaiyat, trad. Fernando Castro, 3ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1999, p. 54.

Tuesday, June 7, 2011

A CAIXA 4


"Ó casas relativas, deformadas
pelos ares e gostos insalubres
ou bons. E mesmo, piores. Silenciadas,
alegres, agitadas ou estúpidas.

Vejo-vos em fantasmas umas vezes
e outras vos ostentais reincidentes,
que doces prostitutas pareceis
vistas assim do beco com essas lentes.

Dá-se que uma mulher em negro sobre-
vém e apunhala os prédios alvadios
eretos ao luar, luar salobre
como vaga de mar lambendo rios.

Assombram-se os quartéis. Mas as meninas
ainda debruçadas nas janelas
esperam pelas noites assassinas
em que uns gangsters venham indeléveis.

E no entanto, afinal, sob esse sol
de outubro, as casas ficam dissolvidas:
nem mansão de fantasmas e nem molde
das moradas casuais que há nessa ante-ilha.

Todavia, vejamos, há meninos
nascidos, e há uns tantos moribundos
a olhar as mãos, e os dedos superfinos
das próprias mãos, não muito, mas imundas.

E agora penetramos: Camarinhas,
halls, salas e outras peças sem suores,
algumas sujidades tuas, minhas,
e vasos para mijo tão conformes.

Encolhem-se de pejo, ficam rubras,
atrás dos reposteiros, doces lares
com cheiros de comidas e ossos-bucos
e alguns mirrados numes tutelares.

Gozemos as visitas dos sofás,
perplexas, muitas vezes, com os tremores
de terra ou sufocadas pelo gás,
senão por transcendentes cobertores.

Serão pelas memórias de família,
pelos vultos das pátrias (ó que tempos!)
pelos falsos demônios em vigília
mais cavilosos que os genuinos demos.
(...)"

Jorge de Lima, "Invenção de Orfeu", in Antologia Poética, selecç. Paulo Mendes Campos, Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1969, pp. 134-136.

Monday, June 6, 2011

A CAIXA 3


"Isto não é bonito
isto não é legível
isto não é para crianças

isto não é linguagem cifrada
isto não dignifica o povo

isto é o lado de dentro
da tua porta de fora, isto
deves conhecer: a tua mão
colada ao trinco

no capacho debaixo dos pés
o jornal o semanário o mensário
o anuário

está calor e está a nevar
está a morrer em paz, a letra
comeu tudo, nada
é mentira, nada é passado, nada
foi digerido - "

Gerrit Kouwenaar, "Isto Não", in Uma Migalha na Saia do Universo - antologia da Poesia Neerlandesa do Século XX, selecç. Gerrit Komrij, trad. Fernando Venâncio, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 89.

Sunday, June 5, 2011

A CAIXA 2


"Quando for grande quero ser árvore
só crescer para o Sol
ter raios a dourar-me a casca
seiva a jorrar-me o de dentro
as raízes é que podiam andar
andar debaixo até casa da toupeira
espreitar-lhe a televisão porque ela não pode   é ceguinha

se ela tivesse um cão
daqueles que fala em Braille
contava-lhe ele a novela
assim     conto eu
pena não saber falar
mas o que conta é a intenção
pena não saber voar
fica p'ra outra encarnação
pena não saber cantar
e o verde vai-se com o Verão
pena
pena
que queria ser um pássaro    p'ra me arrancar uma da asa   e te escrever."

João Negreiros, o cheiro da sombra das flores, 2ª edição, Porto: Papiro Editora, 2009, p. 59.

Saturday, June 4, 2011

A CAIXA 1


"o céu era cinzento,
as colinas estranhamente
jaziam sem alento.

Os homens faziam algo,
pondo a terra de avessa,
como quem cava um tesouro,
mas calmos e sem pressa.

Tudo era decerto assim
no resto do planeta,
o mundo e a humana flora
têm uma liga secreta.

Isso andava eu a observar
com receio, mas contente,
e os meus pés sempre a andar
por baixo, como boa gente."

Herman Gorter, "As Árvores Estavam Quietas", in Uma Migalha na Saia do Universo - antologia da Poesia Neerlandesa do Século XX, selecç. Gerrit Komrij,  trad. Fernando Venâncio, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 31.

Friday, June 3, 2011

JUGENDSTIL


"Figura e voz de todos os destinos
É de ti que se formam as sementes
O céu a noite e o ar que respiro
Quem te vê o corpo em si anula
E do nome de que não tens memória
Só na pedra se guarda o segredo"
António Dacosta, A Cal dos Muros, Lisboa: Assírio & Alvim, 1994, p. 91.

Thursday, June 2, 2011

PRÉ-HUMANOS


"Só uma vez me explicou seriamente o que significava aquele pomar dos mortos - tivemos de nos encontrar várias vezes, e ela percebeu que aquele bosque me aterrorizava. Na Cólquida, disse, só as mulheres eram enterradas, os cadáveres dos homens eram pendurados das árvores até que os pássaros os limpassem, deixando apenas os esqueletos, que depois eram depositados, por famílias, em necrópoles nas cavernas rochosas, era um método limpo e digno, não entendia o que me perturbava tanto nisso. Tudo, mais ou menos, mas em especial a ideia dos pássaros a debicarem um cadáver humano e a comê-lo como qualquer outra carne morta. Fiz-lhe notar que o morto devia ser enterrado ou deposto no seu túmulo de rocha fisicamente intacto, para poder fazer a sua jornada pelo Hades e chegar ao Além. Ela contrapunha que os mortos já não tinham alma, que ela escapa incólume e é venerada na Cólquida em lugares próprios. Para que se desse o seu renascimento num outro corpo, a deusa voltava a juntar os corpos destroçados dos mortos. Estas eram as crenças da Cólquida. E observava-me atentamente enquanto ia falando. E o importante não seria, afinal, perguntou por fim, saber que sentido se atribui a uma acção? Esta ideia era-me estranha, não tinha dúvidas, e não as tenho hoje, de que só há uma maneira correcta de venerar os nossos mortos, todas as outras são inaceitáveis. Mas não sei por que razão ela me perguntou depois se entre nós, nas terras do Sol poente, se faziam sacrifícios humanos. Claro que não!, disse eu, chocado. Ela inclinou a cabeça e olhou-me, inquisidora. Não? Nem mesmo em casos extremos? Eu continuei a dizer que não, e ela concluiu, pensativa: Então é assim? Talvez tenham razão."
Christa Wolf, Medeia.Vozes, trad. João Barrrento, Lisboa: Cotovia, 1996, pp. 55-56.

Wednesday, June 1, 2011

POR BEM (EM CRUZ DE SANTO ANDRÉ)


"«Acha correcto andar a vasculhar o passado?»
«Não creio que esteja a vasculhar o passado. Como poderemos compreendê-lo, se não escavarmos um pouco? É que o presente tem tanta tendência a calcá-lo aos pés!»
«Oh! Eu gosto do passado, mas não gosto de críticos!» - respondeu-me a minha anfitriã, com a sua dura complacência.
«Nem eu, mas gosto das descobertas deles.»
«Não se trata de mentiras, na maior parte das vezes?»
«Mentiras são as coisas que eles por vezes descobrem» - retorqui, sorrindo-me da mansa impertinência. «Por vezes, são eles quem põem a verdade a descoberto.»
«A verdade a Deus pertence, não aos homens; bem faríamos em não andarmos a chafurdar nessas coisas. Quem poderá julgar a verdade? Quem poderá dizer seja o que for?»
«Tudo isso é uma terrível incógnita, bem sei» - admiti - «Mas se desistirmos de procurar, que será de todas essas belas coisas? Que será das obras a que me referi, das obras dos grandes poetas e filósofos? Não passarão de acervos de palavras ocas, se não houver nada por que medi-las.»
«Parece um alfaiate a falar» - disse Miss Bordereau, caprichosa, intrigante;"

Henry James, Os Manuscritos de Jeffrey Aspern, trad. Manuel Resende, Lisboa: Relógio D'Água, s.d. p. 88.