Thursday, December 31, 2009

SO LONG AGO, SO CLEAR



"Once, we did run
How we chased a million stars
And touched as only one can..."


http://www.youtube.com/watch?v=-utN5fDdXZM

PORQUE HOJE TERMINA MAIS UM ANO


"porque hoje termina mais um ano
com seus surdos rumores, pouca luz
e porque o tempo treme e é no inverno
e é no inverno que a arte nos ilude

e porque a arte é por de mais injusta
e o tempo transgrediu os seus limites
e ambos vivem só de se imitarem
digo que nunca errou a juventude

porque a arte é o princípio da morte e nem
(e nem sempre) teremos a coragem
a consciência ou o rigor bastantes
para tocá-los na sua ressonância"


Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessentas Anos, Porto: Edições Asa, 2002, p. 19.

Wednesday, December 30, 2009

AS VOZES DOS VELHOS BARDOS


"Jovem de deleite vem:
E vê romper madrugada,
Imagem da verdade nada.
Dúvida foi-se & as nuvens da razão.
Negras disputas & astuta tensão.
Loucura é infinito labirinto,
Enleadas raízes em rumo indistinto,
Já quanto foi lá ceder!
Nos ossos dos mortos p'la noite empeçados,
Afãs tão-só sentem saber;
Desejam guiar mas devem ser guiados."


William Blake, Canções de Inocência e de Experiência, mostrando os Dois Estados Contrários da Alma Humana, trad. Jorge Vaz de Carvalho, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 112.

Saturday, December 26, 2009

NO PRÓXIMO LADO DO ESPELHO



"Semelhante à sombra do homem,
assim chego à luz das chamas. Ardo
em dúvida, múltiplo e dividido,
e também ouço o barulho dos que medem
a dupla distância: da razão à loucura,
da cabeça aos pés.
Na verdade, os áridos olhos evitam o azul,
a cor uníssona,
e rendem ao túmulo solar o culto
da sua própria abertura.
Pródigos em sagrado
para que eu, receosamente, nomeie
os grandes braços da tempestade."


Nuno Júdice, "O Mecanismo Romântico da Fragmentação", in Obra Poética (1972-1985). Lisboa: Quetzal Editores, 1991, p. 159.

Thursday, December 24, 2009

MAY IT BE WHEN THE DARKNESS FALLS 2

MAY IT BE WHEN THE DARKNESS FALLS



"Não há senão dois extremos suficientemente perfurantes para entrarem assim na nossa alma, são eles a infelicidade e a beleza.
Seríamos frequentemente tentados a chorar lágrimas de sangue ao pensarmos quanto a infelicidade esmaga infelizes incapazes de fazerem uso dela. Mas considerando as coisas friamente, não se encontra aí desperdício mais lastimável do que a beleza do mundo. Quantas vezes a claridade das estrelas, o som das ondas do mar, o silêncio da hora que precede a alvorada se vêm propor debalde à atenção dos homens? Não conceder atenção à beleza do mundo é talvez um crime de ingratidão de tal modo grande que merece o castigo da infelicidade."


Simone Weil, Espera de Deus, trad. Manuel Maria Barreiros, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 143.

Wednesday, December 23, 2009

VIVE TU DAQUILO QUE É O DESGOSTO DO MUNDO



"No porto a corrente acrescenta
algas vermelhas que se elevam das vagas.
Eu não tinha de que viver,
tu não tinhas com que morrer de mim.

Recebi a tua ferida,
recebi de ti a terra. Vive
tu
daquilo que é o desgosto do mundo
e não conhece repouso, meu coração.

No porto não cessa de cantar a invisível
corrente,
as algas partilham o vento do olhar.
Em terra

a árvore está cheia de folhas
e não tem lugar para os frutos."


João Miguel Fernandes Jorge, a jornada de cristóvão de távora primeira parte, Lisboa: Editorial Presença, 1986, p. 18.

Tuesday, December 22, 2009

ONDE E QUANDO?


"Os profetas pleitearam este tempo,
os sinaleiros, os oradores no escuro,
rubricaram cada um dos nossos passos,
assinalaram da cidade amada e conhecida,
o reclamado, o que se deixa ao inimigo,
a porção de terra delida em vão pelo mar.

Onde e quando? A estas perguntas respondem
com a imagem de um império derrogado
pelas hordas de vândalos, hunos e visigodos
no assalto a Roma: rendida, abandonada,
pasto para as ervas e as correntes de ar,
quando uma existência de vinte e oito séculos
se perde entre os imperativos vagos da memória."


Paulo Teixeira, O Rapto de Europa, Lisboa: Caminho, 1993, p. 27.

Monday, December 21, 2009

EU ERA FELIZ E NINGUÉM ESTAVA MORTO


"Foi-se o sono e olho a água
Dos meus olhos estancados;
Lá fora, um rumor de aves
Evoca aromas molhados.

A luz alta fere as casas
Brancas de neve, fluídas;
Meu corpo é um prado seco
Onde caem estrelas húmidas.

Reflexos de sonhos idos
Limitam-me o pensamento;
Os ramos das árvores escondem
Silêncios desaparecidos."


Ruy Cinatty, Antologia Poética, ed. Joaquim Manuel Magalhães, Lisboa: Editorial Presença, 1986, p. 41.

Thursday, December 17, 2009

SE O AZUL VACILA


"Se o azul vacila
e a trama da vida parece desfazer-se
será que a palavra poderá ser
um nascimento fragrante
ou um sopro no sopro?

Com o seu hálito de segredo tranquilo
a casa espera as sílabas da água
e que se acenda o veludo de uma lâmpada
que oriente a primeira matéria
arrebatada pela dança.

Como a serpente de um olhar vazio
de um deus que a si se lesse
surge um sinal, um acorde que devasta,
uma inauguração sem começo.

Como captar essa inapreensível simplicidade,
esta nudez redonda e fulgurante?"


António Ramos Rosa, A Imagem e o Desejo, Lisboa: Universitária Editora, 1998, p. 10.

Wednesday, December 16, 2009

ONDE MORA A HABITANTE DE VIDRO?


"Onde mora
A habitante de vidro
De uma casa que a morte sabia
E que ao vê-la passar estremecia
Olivais, grandes campos de frio?
Pois no rosto da aranha descida
Com milénios de olhares facetados
Estavam escritos
Os múltiplos gritos
Do enorme silêncio da vida.

Onde mora
Essa estranha aliança?
Antiquíssimas fontes de esperança,
Com o destino vivido jamais.

(...)"


Natércia Freire, Liberdade Solar, Lisboa: Ed. Gráfica Portuguesa, s.dt., p. 34.

Tuesday, December 15, 2009

SOMBRAS SUMÉRIAS - DO LIVRO DE ENKIDU


"Tudo isto ilustrarei com exemplos. Por ouvir dizer sei somente o dia do meu aniversário e que tive tais progenitores e outras coisas semelhantes das quais nunca duvidei. Por experiência vaga sei que morrerei: afirmo isto porque vi morrerem outros semelhantes a mim ainda que nem todos tenham vivido o mesmo espaço de tempo nem morrido da mesma doença. Depois sei por experiência vaga que o azeite é um alimento próprio para nutrir a chama ao passo que a água é boa para a extinguir. Sei também que o cão é um animal que ladra e o homem um animal racional. E assim conheci quase tudo o que se liga ao uso da vida."


Bento de Espinosa, Tratado sobre a Reforma do Entendimento, trad. António Borges Coelho, Lisboa: Livros Horizonte, 1971, 20, p. 33.

Monday, December 14, 2009

HER RISE FROM OUT THE CHAMBER OF THE DEEP


"E quem já viu a lua, e quem não a viu
Erguer-se da sua profunda câmara,
Vermelha e imponente e nua, como se viesse do quarto
Do noivado consumado, viu-a erguer-se e lançar
Uma confissão de encantamento sobre as ondas.
Confundindo-as com a sua própria inscrição
De felicidade, até que a sua beleza suave vibre em nós,
Derramada e finalmente conhecida, e tenhamos a certeza
Que a beleza é o que existe para além do túmulo,
Essa experiência viva e perfeita que nunca se perde
No nada, e que o tempo virá obscurecer a lua
Mais cedo que a nossa total consumação
Nesta estranha vida que se extingue e que há-de desaparecer."


D. H. Lawrence, Os animais evangélicos e outros poemas, trad. Maria de Lourdes Guimarães. Lisboa: Relógio d'Água, 1994, p. 45.

Sunday, December 13, 2009

CENTO E UM


"Parecia que Alfreda tinha ouvido para além da boca fechada dele, porque se pôs de pé num salto. Mas era porque estava a ter uma das suas alucinações e viu uma pessoa a entrar na sala com o maior à-vontade. Era o professor Heschel, que lhe falou:
- Esqueci-me de dizer que a História é feita por extremistas como Beaumarchais, que fez da calúnia uma arma de combate. Ah! perdão, está com visitas. Nero não era o monstro que dizem, nem matou Popeia a pontapé. Ela era judia, percebe? Uma judia na cama de César só podia acabar mal. O que ela sabia sobre o incêndio de Roma nem se acredita e foi isso que a perdeu. Mas não foi Nero que a matou. Era um artista e os artistas não são capazes de fazer atrocidades dessas."


Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - A Alma dos Ricos, 6ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 267.

Wednesday, December 9, 2009

O DIA, PARTINDO-SE


"o dia fez-se morte ao lusco-fusco,
já se ouve mais distante o realejo
que cruzava agonias e desejo
em pobres melodias, já mais brusco

chega o inverno entre ulmeiros pálidos
e sobressalta o corpo às raparigas
que vão morrer. ó meu amor, não digas
outros silêncios, outros sinais inválidos

para salvá-las, só a canção podia
reanimar seu pobre coração,
dar-lhe em breves momentos algum rumo,

alguma esperança nessa melancolia,
enquanto o som pairasse, mas em vão:
partiu o dia, em cinza, frio e fumo."


Vasco Graça Moura, Antologia dos Sessentas Anos, Porto: Edições Asa, 2002, p. 74.

Tuesday, December 8, 2009

O QUE SE REMIRA E NÃO SE ENTENDE

(museu arqueológico, Istambul)


"É controvérsia de cegos pôr em dúvida os poderes da formosura - eloquência contemplada, cadeias de ouro puríssimo, tirania lícita que tudo arrasta após de si, e não sem viva espiritualidade, que então seria apenas a sombra do formoso. No material não há mais que vestígios do belo. O que se não sabe medir é formosura; o que se remira e não entende, que mata fazendo amar, é um composto da alma e do corpo tal que só vós o tendes; aquela flor de graças que imprime a cada acção um espírito; privilégio mudo, fonte de auroras, um mentir para as estrelas e uma verdade para o Sol; admiração dos pincéis, íman das liberdades."


D. Francisco de Portugal, Arte de Galantaria, introd. Joaquim Ferreira, Porto: Editorial Domingos Barreira, 1984, p. 18

Sunday, December 6, 2009

DA IDIOTIA - PEQUENA FÁBULA MORAL

"Chamam-me muitas vezes às casas aristocráticas para curar crianças idiotas. Em geral é impossível uma pessoa fazer-se entender pela criança idiota, e quando não encontro esse resquício que às vezes há nos idiotas, considero a cura desesperada e vou-me embora; faço-o por pena, porque os seus gritos chamam-me, como se na sua idiotia houvesse percebido ter passado ao seu lado a única pessoa que poderia curá-los...
Pude curar alguns desenredando aos poucos, com os meus dedos compridos, a grande teia que se lhes embrulhara na cabeça...
O último caso que curei foi o de um idiota que estava sempre à beira do grande tanque do palácio atirando constantemente pedras à água, saciando-o um pouco o ruído dos bochechos que a água fazia ao engolir as pedras...
Vi que o repreendiam e de imediato o afastavam do tanque, embora, com a malícia e a sagacidade dos idiotas, ele soubesse aproveitar a distracção de todos para voltar a atirar as pedras para lá.
- Manolín, esteja quieto... Manolín, não seja mau...
Há em toda a parte uma grande incompreensão do idiota, revelando-se com isso mais idiotas do que ele os que não conseguem compreendê-lo.
- Só pensa em atirar pedras para o tanque... Mal nos descuidados, recomeça logo.
- Pois muito bem, os senhores verão em breve - disse-lhes eu - que o único meio de o curarem
é deixarem-no encher com pedras esse tanque, para assim ver concluída a sua obra... Verão como a sua idiotia há-de rebentar no grande suspiro que cura os idiotas...
Fui-me dali e só depois de vários meses o conde, pai do idiota, me visitou, dizendo-me então:
- Não podes imaginar como lhe foi difícil encher o tanque de pedras... Deixou o jardim sem uma única pedra, e às vezes até apanhava terra para o encher melhor... Trabalhou como um desesperado, como um pedreiro que andasse de empreitada... Mas há uns dias sobressaiu no tanque, todo entulhado, uma espécie de pirâmide de pedras, e então o miúdo, sentando-se sobre o remate da sua obra, deu o suspiro que o senhor tinha anunciado, e recuperou o juízo... Nem imagina como é sensato desde então...
Após ter realizado a missão da sua idiotia, é como se já não precisasse de o ser..."



Ramón Gómez de la Serna, O Médico Inverosímil, trad. Júlio Henriques, Lisboa: Antígona, 1998, pp. 57-58.

Friday, December 4, 2009

PARA A INEXACTIDÃO


"Uma nobre dúvida se insinua eternamente - se este fim não será a Causa Última do Universo; e se a Natureza existe exteriormente. É uma justificação suficiente dessa Aparência a que chamamos o Mundo, que Deus ensine a mente humana, transformando-a, assim, no receptáculo de um certo número de sensações congruentes a que chamamos Sol e Lua, homem e mulher, casa e trabalho. Na minha extrema impotência em testar a autenticidade do relato dos meus sentidos, em saber se as impressões que me causam correspondem a objectos existentes, que diferença faz se Órion está lá no céu, ou se algum deus pinta a sua imagem no firmamento da alma? Se permanecem idênticos quer as relações entre as partes quer o fim do todo, que importa se a terra e o mar interagem e se há mundos que rodam e se misturam sem número ou fim - profundeza abrindo-se sob profundeza e galáxia equilibrando galáxia, através do espaço absoluto - ou se, sem relações de tempo e espaço, as mesmas aparências se inscrevem na fé inabalável do Homem? Quer a Natureza goze de uma existência substancial sem a mente, quer esteja apenas no seu apocalipse, ela é-me do mesmo modo útil e venerável. Seja o que for, para mim é ideal desde que não possa experimentar a exactidão dos meus sentidos."


Ralph Waldo Emerson, A Natureza, trad. Berta Bustorff Silva, Lisboa: Sinais de Fogo, 2001, pp. 67-68.

Wednesday, December 2, 2009

MAS ONDE TRANSCENDENTALISMO?


"Mas esta origem de todas as palavras que veiculam um conteúdo espiritual - facto bem assinalável na história da linguagem - é a nossa menor dívida à Natureza. Não são apenas as palavras que são emblemáticas. Todos os fenómenos naturais são símbolo de fenómenos espirituais. Cada aparência da Natureza corresponde a um estado de espírito, e esse estado de espírito só pode ser escrito se pressentirmos essa aparência natural como o seu retrato. Um homem enraivecido é um leão, um homem astuto é uma raposa, um homem firme é uma rocha, um homem culto é um archote. O cordeiro é inocente, a cobra um ódio subtil, as flores exprimem-nos doces afectos. A luz e as trevas são a nossa expressão familiar para a sabedoria e a ignorância. A distância visível atrás de nós e à nossa frente são, respectivamente, a imagem da memória e da esperança."



Ralph Waldo Emerson, A Natureza, trad. Berta Bustorff Silva, Lisboa: Sinais de Fogo, 2001, pp. 40-41.

Monday, November 30, 2009

TERMINAR NOVEMBRO COM HUMOR AND WIT



"O Mardel conta que a velha viscondessa de A., que teve uma vida dos diabos, costumava dizer aos filhos quando eles a arreliavam:
- Se os meninos não tomam juízo mando-os para casa de seus pais."


Raul Brandão, Memórias, Tomo II, Vol.I, ediç. José Carlos Seabra Pereira, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p. 88.

Sunday, November 29, 2009

VISÃO FILTRADA PARA AS ESTRELAS E AS NUVENS



"Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas."


Manuel Bandeira, "O Rio", in Antologia Poética, 18ª ed., Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 1987, p. 140.

Friday, November 27, 2009

A MORAL DO TRÁGICO, OS LIMITES DO SEXO



"Começou então um período de sofrimento tão violento que ninguém podia aproximar-se sem ser altamente contaminado; porque o sofrimento como carência atinge um grau que tem, por força, de procurar em seu redor terreno onde vaze o seu excedente, como o prazer também. É esta a moral do trágico, a cumplicidade do desejo e o seu discurso; os baluartes da sedução, não cedendo, inventam a histeria que toda a sociedade compartilha. Aqui é preciso esclarecer que a sociedade que produziu uma lei e uma forma de relação cooperante com os outros, relação de trabalho e de protecção mútua, observa o sexo como malefício. Sabe que não é possível desmistificar o sexo e que só o pode nomear pela tangente do burlesco e da formalidade mais severa. Doutro modo, seria arrastada pelas guelras, até às profundezas da área aquática e abissal em que o sexo se liquida. Um mundo que é sexualmente claro e demonstrado é um mundo em extinção. A natureza vinga-se quando é invocada sem competente temor. O medo é um protector, nunca um lacaio."


Agustina Bessa-Luís, A Corte do Norte, 2ª ed., Lisboa: Guimarães Editores, 1996, pp. 139-140.

Thursday, November 26, 2009

NOVA FONTE HELICÓNICA


"I

Ninguém duas vezes passa o rio
porque os rios se afastam para morrer
ou, correndo nós,
vivemos, disséssemos,
com os rios morrendo.

E com o nível posto
na baixa altura da nascente
incorressem os vivos e
corressem os mares que não
se ajuntam mais, na mesma igualdade
longínqua.

II

Dentro de dias morre
mais alguém
para o hermético triunfo
das paisagens.
Então os sítios vão
subindo
povoam-se e entreolham-se
desencantam-se.

A órbita apodrece
descrê-se o sol."


Luiza Neto Jorge, "Os Sítios Sitiados", in Poesia, org. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, pp. 149-150.

Sunday, November 22, 2009

LINGUAGEM DE PARAÍSO SACRO-PROFANO

Tiestes

Acredita-me, a grandeza seduz usando falsos nomes,
e não é razoável temer-se a vida dura. Enquanto estive no [trono
nunca cessei de ter medo, até receava a espada
que me pendia do flanco. Oh, como é bom
não ser obstáculo para ninguém, tomar as refeições em [segurança,
reclinado no chão! Nas cabanas não tem lugar o crime,
é seguro o alimento tomado numa mesa exígua.
O veneno bebe-se em taças de ouro: falo por experiência!
Sou livre de preferir o infortúnio à riqueza.
Ante a minha casa, alcandorada no cume
de alto monte, não treme a população humilde;
não tenho palácio enorme o esplendor do marfim
nem careço de guardas de corpo para proteger o sono;
não pesco com uma esquadra, não faço recuar o mar
lançando-lhe molhes, nem alimento um ávido ventre
à custa dos povos tributados; nenhum latifúndio
possuo para lá do país dos Getas ou dos Partos;
não sou incensado, nem, em detrimento de Júpiter,
em minha honra se ornamentam altares; não tenho jardins [suspensos
onde balance um bosque plantado, nem fumegantes lagos
aquecidos por grande multidão, não dedico o dia ao sono,
nem passo a noite acordado entregue a Baco!
Não causo medo a ninguém, a minha casa inerme está [segura,
na minha modéstia gozo de um profundo sossego.
O cúmulo do poder é passar sem ele!"


Séneca, Tiestes, trad. J. A. Segurado e Campos. Lisboa: Verbo, 1996, p. 78.

Saturday, November 21, 2009

OITO FORMAS DE METAFÍSICA


"A tragédia do filósofo consiste em saber encontrar a ideia por detrás dos sinais, comunicar a sua experiência e intuição metafísica com as velhas palavras destinadas a actuar sobre o mundo exterior ou descrevê-lo. E quanto mais original é o seu pensamento mais as palavras o traem. Uma nova filosofia é com frequência uma nova terminologia, e nem sempre por intenção vaidosa, mas por necessidade, e a ilusão, que têm todos os grandes, de criar a sua própria linguagem.
A admiração universal pelos poetas -, que, na maioria dos casos, coexiste com a incompreensão quase total - nasce da maravilha de ver capturadas em formas harmoniosas os fragmentos de sensibilidade e paixão que parecem, a todos, inexprimíveis. Mas os próprios poetas sabem bem, e confessam-no, que puderam dizer porventura uma de mil partes de todo o mundo rico e prodigioso que têm em si. (...)
O pouco que arrasta, com as redes desfiadas do idioma materno, assemelha-se a um punhado de conchas quebradas em relação à riqueza fabulosa do fundo. O maior mestre de palavras é aquele que reconhece a sua própria impotência para dizer tudo com elas."


Giovanni Papini, Relatório Sobre os Homens, trad. Eduardo Saló, Lisboa: Livros do Brasil, 1986, p. 225.

Thursday, November 19, 2009

CORTE NO INFINITO



"They enter as animals from the outer
Space of holly where spikes
Are not the thoughts I turn on, like a Yogi,
But greenness, darkness so pure
They freeze and are.

O God, I am not like you
In vacuous black,
Stars stuck all over, bright stupid confetti.
Eternity bores me,
I never wanted it."


Sylvia Plath, Ariel, trad. Maria Fernanda Borges. Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 146.

Tuesday, November 17, 2009

REDACÇÃO ORIENTAL SOBRE O OUTONO

"O Outono não se caracteriza apenas pela queda das folhas, mas também pelo declínio das forças vitais de todos os seres, incluindo o homem.

A Via Láctea torna-se mais nítida. Todavia é a lua a alma desta estação. Na sua remota proximidade adensa o mistério da nossa existência. O vento soa também de maneira diferente e nele podemos surpreender, por vezes, o murmúrio da própria morte.

Os gritos dos insectos ecoam por todo o lado. Mas são os crisântemos, com a beleza das suas folhas e das suas flores e o seu perfume forte e esotérico, a referência dominante da estação, logo a seguir à lua."


Matsuo Bashô, O Gosto Solitário do Orvalho seguido de O Caminho Estreito, versões e introd. Jorge Sousa Braga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 39.

Monday, November 16, 2009

NOVEMBRO, CONTEÚDOS OBSCUROS 3


A TIA



A certeza é gravidade. A certeza torna as coisas mesquinhas. Se tivéssemos a certeza de que a eternidade existia, ela tornava-se logo numa estação balnear e mais nada.



SÖREN


Imagina a eternidade como objecto de fantasia?




A TIA
Não a imagino: antecipo-a.




SÖREN



A profundidade da sua intuição corrige os erros da minha inteligência."



Agustina Bessa-Luís, Estados Eróticos Imediatos de Sören Kierkegaard, Lisboa: Guimarães Editores, 1992, p. 58.

Friday, November 13, 2009

NOVEMBRO, CONTEÚDOS OBSCUROS 2


"Deus não gosta da superstição. As demonstrações, nesta matéria, podem ser inúmeras.
Deus não gosta da superstição, mas pode muito bem servir-se dela, e mesmo da libertinagem, para os seus fins."


Philippe Sollers, Casanova, o admirável, trad. Maria Irene Bigotte de Carvalho, Lisboa: Editorial Notícias, 1999, p. 49.

Thursday, November 12, 2009

THE ANGEL STANDING IN THE SUN, PRIMEIRA MEDITAÇÃO A PROPÓSITO DE TURNER



"Como seres tradutores, os homens despertam para o mundo; como seres que passam, dão formas às suas linguagens metafóricas e metafísicas através das quais passam à expressão pontos de vista sobre a totalidade; como animais que mudam de elemento, desenvolvem a sua tensão característica num algures que vagueia na sua mente como uma terra de saudade e de procura; como sujeitos de insegurança no elemento, os homens desenvolvem-se em animais metafísicos problemáticos que ocasionalmente se extraviam na sua inclusão no mundo; como seres que se podem extraviar do seu elemento, esforçam-se em encontrar remédios para a certeza de se encontrarem fora do lugar e num elemento que não é o deles"

Peter Sloterdijk, O Estranhamento do Mundo, trad. Ana Nolasco, Lisboa: Relógio D'Água, 2008, p. 55.

Wednesday, November 11, 2009

LE SEIGNEUR EST MON SOUTIEN

"Quand Martin eut passé Milan, le diable se présenta devant lui sous une forme humaine et lui demanda oú il allait. Le saint répondit qu'il allait où le Seigneur l'appelait; alors le diable lui dit: «Partout où tu iras, tu rencontreras le diable pour te contrarier. » Martin lui répliqua: «Le Seigneur est mon soutien, et je craindrait point ce que l'homme pourra me faire», et à l'instant le diable s'évanouit."


Jacques de Voragine, La Légende Dorée, tom. II, trad. J.-B. M. Rose. Paris: Flammarion, 2001, p. 337.

Tuesday, November 10, 2009

O CÉU SOBRE BERLIM (2008)



"Nos fins de tarde de Inverno, em Berlim, a minha mãe levava-me, às vezes, às compras. Era uma Berlim escura e desconhecida que se estendia à minha frente à luz dos candeeiros. Ficávamos no Velho Ocidente, cujos arruamentos eram mais simples e modestos do que aqueles que mais tarde vieram a ser os preferidos. As varandas e as colunas já não se viam muito bem, mas havia luz nas fachadas. Fosse através das cortinas de musselina, das persianas ou até da camisa do candeeiro de sala, aquela luz pouco revelava acerca dos quartos iluminados. Não tinha nada a ver com nada, apenas consigo própria. Atraía-me e fazia-me pensar. Hoje, ao recordá-la, ainda exerce o mesmo efeito sobre mim. Transporta o meu pensamento para um dos meus postais ilustrados. Este mostrava uma praça de Berlim. As casas que a circundavam eram de um azul suave, o céu nocturno, onde se via a lua, era de um azul mais escuro. A lua e todas as janelas representadas no azul deste postal eram transparentes. Tinham de ser olhados diante de um candeeiro para que um clarão amarelo irrompesse das nuvens e das fileiras de janelas. Não conhecia a zona representada. A legenda dizia "Porta de Halle". Porta e átrio nela se reuniam, formando a gruta iluminada na qual encontro a recordação da cidade de Berlim no Inverno."

Walter Benjamin, Infância em Berlim por volta de 1900, trad. Cláudia de Miranda Rodrigues. Lisboa: Relógio D'Água, 1992, pp. 178-179.

Sunday, November 8, 2009

NOVEMBRO, CONTEÚDOS OBSCUROS 1


"O palácio encerrava tudo, como um grande túmulo ornamentado, talhado em pedra, em que ossos de gerações se deterioravam, onde se desfaziam vestidos fúnebres de mulheres e de homens de outros tempos, de seda cinzenta ou de pano negro. Encerrava em si o silêncio, como um preso religioso que apodrece desmaiado na palha pútrida, numa masmorra, de barba comprida, esfarrapado e coberto de bolor. E encerrava a memória, a memória dos mortos que se ocultavam nos recantos ocos dos quartos, como se ocultam os fungos, a humidade, os morcegos, a ratazanas e os insectos nas caves húmidas das casas muito velhas. Sentiam-se nos puxadores das portas o tremor de uma mão, a emoção dum momento passado quando a mão hesitava em puxar essa maçaneta. Todas as casas onde a paixão tocou com a sua força arrebatadora se enchem desse conteúdo obscuro."


Sandór Márai, As velas ardem até ao fim, trad. Mária Magdolna Demeter, 16ª ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2008, p. 23.

Thursday, November 5, 2009

NAVEGAÇÃO PELA NOITE SEM SONO


"Os primeiros vislumbres avistados por Colombo e que ele tomou por terra provinham de uma espécie marítima de pirilampos que põe os seus ovos entre o pôr do Sol e o nascer da Lua, pois a terra não podia estar ainda visível. Mas são bem dela essas luzes que agora adivinho, durante essa noite sem sono, passada no tombadilho à espera da América."


Claude Lévy-Strauss, Tristes Trópicos, trad. Gabinete Literário das Edições 70, Lisboa: Edições 70, 1993, p. 70.

Monday, November 2, 2009

DIA DOS VIVOS



"Não há bosque ou sombra
para os que escapam, nem vale deserto
para os que desejam ficar sozinhos.
Pertencemos a uma terra onde a
ninguém é possível perder-se."



João Miguel Fernandes Jorge, a jornada de cristóvão de távora segunda parte, Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 102.

Thursday, October 29, 2009

NA VÉSPERA DE ALL HALLOWS



"II

Nada existe duradoiro no mundo,
dizia; e por isto se rege a
nossa vida terrena, a dinastia
e as crenças que julgamos favoráveis
à verdade de sempre.
Porque
cada dia que passa vai trazendo
coisas novas e mostra a minha
necedade no dia passado. E
a maior inquietação transforma-
-se na tranquilidade."


João Miguel Fernandes Jorge, a jornada de cristóvão de távora segunda parte, Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 18.

Tuesday, October 27, 2009

FAZER DA MORTE O EDIFÍCIO



"Que façam só da morte o edifício
onde mergulham as raízes simples
dos prumos, o cristal que se distende
pelo centro das salas que cintilam,

e nesta superfície há-de ficar
o coração inerme, o leve indício
de corredores perdidos, ao colhermos
mais perto das paredes qualquer fruto

cujo sabor continha o que se oculta
em torno do que fora a leve mágoa
de só nele encontrarmos o sentido

de uma memória extrema, onde se apaga
o desígnio que fica ilimitado
nas bruscas praias dessa arquitectura."


Fernando Guimarães, Casa: o seu desenho, Lisboa: IN-CM, 1985, p.12.

Friday, October 23, 2009

BREVIÁRIO DA TRAGÉDIA


"Circunscrevo a mim a tragédia que é minha. Sofro-a, mas sofro-a de cara a cara, sem metafísica nem sociologia. Confesso-me vencido pela vida, porém não me confesso abatido por ela.
Tragédias, muitos as têm - todos, até, se entre elas contarmos as ocasionais. Mas o que a cada qual compete, como homem, não é falar na sua tragédia; e o que a cada qual compete, como artista, é, ou ser homem e calar-se sobre ela, escrevendo ou cantando de outras coisas, ou extrair dela, com firmeza e grandeza, uma lição universal."


Barão de Teive (Fernando Pessoa), A Educação do Estóico, ed. Richard Zenith, Lisboa: Assírio & Alvim, 1999, p. 57.

Tuesday, October 20, 2009

CAIM CAIM, FEZ O CÃO DAS LÁGRIMAS



"No dia seguinte, a mais velha disse à mais nova: «Deitei-me ontem com o meu pai; embriaguemo-lo também esta noite, e vai deitar-te com ele, a fim de mantermos a raça do nosso pai». Também naquela noite deram a beber vinho ao pai, e a mais nova deitou-se com ele, que de nada se apercebeu nem quando se deitou nem quando se levantou. E assim as filhas de Lot conceberam do próprio pai." (Gen 19, 34-35)


"Penetremos na igreja a ver esta farsada.
Uns entram para ver a casa iluminada,
Os dândis é por chique, os velhos por decoro;
Estas é para ouvir umas quadrilhas,
E os outros, que sei eu... para vender as filhas,
Para matar tempo ou arranjar namoro." (Guerra Junqueiro, A Velhice do Padre Eterno, Mem Martins: Publ. Europa-América, s.d., p. 85)


"Os judeus nunca acataram a má nova de que Jesus ben Nazaré, conhecido por nós, Gregos, por Rei ou Cristo, era realmente o messias que eles andavam há uma data de tempo à espera.
«O ponto é», dizia Santo enquanto eu o tratava depois de mais uma sessão com os seus antigos co-religiosos, «que nunca se sabe quando se converte alguém.»
No entanto, quando Santo começou a sua carreira, ele e Tiago concordaram mais ou menos em dividir a missão. Santo ocupar-se-ia da parte dos prepúcios enquanto Tiago, assistido por Pedro, O Calhau, venderia as boas novas sobre o Juízo Final aos judeus." (Gore Vidal, Em Directo do Calvário, trad. José Luís Luna, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994, p. 36)

"Uma noite bem passada, sim senhores, exclamou um deles lambendo os beiços, e outro confirmou, Estas sete valeram por catorze, é certo que uma não era grande coisa, mas no meio daquela confusão quase nem se notava, têm sorte estes gajos, se são bastante homens para elas, Melhor que não sejam, assim elas levarão mais vontade. Do fundo da camarata, a mulher do médico disse, Já não somos sete, Fugiu alguma, perguntou a rir um dos grupo, Não fugiu, morreu, Ó diabo, então vocês terão de trabalhar mais na próxima, Não se perdeu muito, não era grande coisa, disse a mulher do médico. Desconcertados, os mensageiros não atinaram como responder, o que tinham acabado de ouvir parecia-lhes indecente, algum deles terá mesmo chegado a pensar que no fim de contas as mulheres são todas umas cabras, que falta de respeito, falar de uma tipa nestes termos, só porque não tinha as mamas no lugar e era fraca de nádegas." (José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, 10ª ed., Lisboa: Caminho, 2006, p. 183)

"1
O escritor
é às vezes
um estupor
o escrito
é às vezes
mal dito
o prémio
nem sempre
é génio

2
O comunista
já não come
criancinhas
ao pequeno-almoço
lancha
na Versalhes
com velhinhas
o fascista
faz o mesmo

3
Falo do meu medo
do desemprego
de saúde mental
e de Natal
de Rei Mago
e de Saramago

4
Rezo
a oração
que a Maria Aliete Galhoz
me ensinou
olhei para o céu
vi uma cruz
capela de rosas
Menino Jesus
A osga diz cró" (Adília Lopes, "Florbela Espanca Espanca", in Caras Baratas - Antologia, selec. Elfriede Englemayer, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, pp. 206-207)

Sunday, October 18, 2009

O QUE FAZEM RUÍNAS 2


"Porque aqueles que nos dão o fogo celeste,
os deuses, também nos dão a dor sagrada.
Por isso esta fique. Filho da terra,
Pareço eu: feito para amar, para sofrer."


Friedrich Hölderlin, "Odes", in Poemas, selecç. e trad. Paulo Quintela, Lisboa: Relógio D'Água, 1991, p. 177.

Friday, October 16, 2009

UM AMAR ENTRE ZUMBIDOS E BARAFUNDA - PARA MARIA AGUSTINA



"Estrelas de um verde irisado e claro tremem nos altos. O vento treme, tremem as sarças sobre as quais as libélulas morreram ao fim do dia. É amargo partir, é amargo voltar. Nesta treva onde se movem ventos silenciosos, eu conheço a terra mais do que nunca estranha e amada, bloco de esquecida falésia, rasto perdido onde, como dedos de sal, aponta um humanismo esperançado, porém triste. Neste planalto onde vêm morrer as vozes dos lugares, das casas fumacentas, das encruzilhadas em que lentamente passam os gados, surpreende-se de súbito uma espécie de idílio desgraçado com o tempo, o mundo, as próprias estrelas esverdeadas. Um idílio patético e interminável, um amar entre zumbidos e barafunda, um estar sozinho no coração de toda a gente. É assim a vida e a morte. Um regresso de parte nenhuma, um encontro com a contradição. Então saúdo a terra escura, o vento escuro, a solidão e o medo."


Agustina Bessa-Luís, Embaixada a Calígula, Lisboa: Guimarães Editores, 2009, p. 335.

Thursday, October 15, 2009

NOS ANÉIS DE SATURNO


"soçobrando corro
ao encontro do horizonte
à luz das palavras
através de anos-sombra

o horizonte recua
perante o mundo
nenhuma queda livre no silêncio
por detrás assomam as palavras
chamam
pelo teu poema aos mortos"


Eva Christina Zeller, Sigo a Água, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 31.

Sunday, October 11, 2009

UND WIEVIEL BIS DER FLUSS GESCHÖPFT



"Para qualquer sítio abandonar o mundo
sem sair de nenhum lugar
o que cresce
o que murmura
o que tudo abala
só água e cada hora
que cai pela noite fora
o que está deitado só
nada já fundo e longe
enquanto as horas deslizam certas
transpondo a margem
para onde o olhar
transpondo as margens onde só
e tanto até o rio ficar esvaziado -
colhido
tudo experimente o homem
para cada viagem"


Eva Christina Zeller, Sigo a Água, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 51.

Saturday, October 10, 2009

PEQUENOS DELITOS

"i.x. Poucos dias depois da sua chegada a Capreias, estando só, acercou-se dele, de repente, um pescador que lhe ofereceu um grande ruivo; Tibério mandou que lhe esfregassem a cara com o peixe, tão assustado ficou com o facto de aquele pescador ter conseguido chegar até junto dele, pelas traseiras da ilha, escalando as rochas escarpadas. Como o pescador, no meio do suplício que lhe era inflingido, se regozijasse de não lhe ter oferecido também a corpulenta lagosta que apanhara, Tibério ordenou que lhe rasgassem igualmente a cara com ela. Castigou com a morte um soldado pretoriano que roubara um pavão num vergel. Durante uma viagem que fez, como a liteira em que seguia se enleasse numa moita, prostrou no solo o oficial encarregado de abrir caminho, um centurião das primeiras coortes, e por pouco o não matou à chicotada."


Suetónio, Os Doze Césares, trad. João Gaspar Simões, Lisboa: Biblioteca Editores Independentes, 2007, p. 197.

Thursday, October 8, 2009

O QUE FAZEM RUÍNAS 1

"- Acho que se afligem por serem medíocres e não gostarem de nada que fazem. Pelo menos, de não gostarem com entusiasmo, à maneira do tango. Mas a coisa melhor do mundo é ser-se medíocre e ter aos pés, não um homem, mas um saco de água quente.
- Isso explica porque há livros tão maus com imenso sucesso. As pessoas estão a ficar desavergonhadas e a cultura é uma treta que elas denunciam finalmente - disse Raul. - No século quinze - disse ele - no século quinze tinham-se criados para fazer versos e outros para fazer camas. Agora caiu-se nisto, não há bicho-careta que não se diga letrado e que escreva um livro com trezentas páginas. Faz parte do currículo. Nunca se lembrou de escrever, Camila?
- Nunca me lembrei matar de tédio as pessoas. Prefiro as armas de fogo.
- Honestamente, eu também."


Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - Os Espaços em Branco, 2ª edição, Lisboa: Guimarães Editores, 2003, p. 54.

Tuesday, October 6, 2009

A RAZÃO EM TEORIA

"Eu penetro, retomo, inspecciono, penduro, arranco o selo, a minha vida morta não guarda nada, e ainda por cima o nada nunca fez mal a ninguém, o que me força a voltar ao interior é esta ausência desoladora que passa e por instantes me submerge, mas nela vejo claro, muito claro, mesmo o nada sei o que é e posso dizer o que tem dentro.
Tinha razão, Van Gogh, podemos viver para o infinito, satisfazer-nos apenas com o infinito, na terra e nas esferas há infinito bastante para saciar mil grandes génios, e se Van Gogh não pôde satisfazer o seu desejo, que era irradiá-lo durante toda a vida, foi porque a sociedade lho proibiu.
Redonda e conscientemente proibiu."


Antonin Artaud, Van Gogh, o suicidado da sociedade, trad. Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 51.

Wednesday, September 30, 2009

JANELAS VELHAS



" Prometeu

Não penseis que me calo de orgulho ou de arrogância. Mas um cuidado me devora o coração, ao ver-me assim insultado. E, no entanto, quem, senão eu, deu a estes deuses novos, sem reservas, privilégios honoríficos? Mas sobre isso eu me calo, pois vos diria o que já sabeis. Ouvi, porém, as desgraças dos mortais e como eles são pueris antes de eu os tornar inteligentes e senhores da razão. Quero falar, mas não para censurar os homens, antes para expor em pormenor a benevolência do que lhes dei. A princípio, quando viam, viam falsidades; quando ouviam, não entendiam; e, como as formas dos sonhos, misturavam tudo ao acaso, durante a longa existência; e não sabiam construir casas soalheiras de tijolo, nem sabiam trabalhar a madeira; viviam em antros subterrâneos, como formigas ligeiras, nas profundidades sem sol das cavernas. E não tinham indício seguro do Inverno, nem da florida Primavera, nem do fecundo Verão; mas faziam tudo sem discernimento, até eu lhes ensinar o enigmático nascer e o ocaso dos astros. Também descobri para eles os números, a principal das invenções engenhosas, e a combinação das letras, memória de tudo quanto existe, obreira mãe das musas. E fui o primeiro a pôr sob jugo os animais, submetendo-os ao cabresto ou aos corpos dos homens, para que sucedessem aos mortais nos trabalhos mais pesados, e atrelei aos carros cavalos dóceis, ornamento do luxo excessivo. E nenhum outro senão eu inventou para os marinheiros os navios de asas de linho, que vogam sobre o mar. E eu, que descobri tudo isto para os mortais - infeliz - não tenho maneira de me libertar do sofrimento presente."


Ésquilo, Prometeu Agrilhoado, trad. Ana Paula Quintela Sottomayor, Lisboa: Edições 70, 2008, p. 54.

Sunday, September 27, 2009

COMO UM VASO DE PRATA ENTRE O SOL E A SOMBRA



"- Isso é o que pensa. Mas não falemos disso. Já não quer encontrar-se com Nossa Senhora?
- Quero, mas ela virá quando quiser. Não vou maçá-la. Senão S. José ainda me bate com a vara de arquitecto. Bate-me na cabeça com ela.
Era uma mulher linda, madura como um fruto vermelho e prateado. Não se dizia isso do rabi Yo'Hanan, que redigiu o Talmud de Jerusalém e era rico, o que o impedia de estudar o livro santo? Ele era tão belo, um dos mais belos homens do mundo, e o Talmud diz assim: «Pegai num vaso de prata completamente novo e enchei-o de grãos de romã vermelha e colocai-o entre a sombra e o sol. Tal era assim a beleza de Rabi Yo Hanan». Como um vaso de prata entre o sol e a sombra, uma imagem deliciosa para falar da pura beleza humana que o Espírito amou."


Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - A Alma dos Ricos, 6ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 209.

Wednesday, September 23, 2009

TEMPO E LOUCURA



"Será possível narrar o tempo, o tempo em si e por si, o tempo como tal? Claro que não, isso seria uma perfeita loucura! Uma história em que se lesse «o tempo passava, decorria, fluía», e assim sucessivamente, não poderia ser designada narrativa por ninguém em seu perfeito juízo. Era como se um louco mantivesse uma única nota musical, ou um só acorde, ao longo de uma hora, e quisesse convencer-nos de que se tratava de música."


Thomas Mann, A Montanha Mágica, trad. Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009: p. 611.

Monday, September 21, 2009

CONVITE À TRANSCENDÊNCIA

"- Nunca estive no mais perfeito juízo - disse Alfreda, como se não falasse com ele. - Não sei porque isso não há-de acontecer. Se Nossa Senhora foi rica e bem educada, é natural que atenda o meu pedido. É um convite que lhe faço e ofereço-lhe toda a comodidade. Em vez de me aparecer em cima duma árvore, abro-lhe as portas da minha casa onde podemos conversar à vontade. Acha que isto é maluqueira?
- Não acho nada - disse o Touro Azul. - Tem uma certa lógica, mas nada me garante que os milagres tenham alguma lógica."


Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - A Alma dos Ricos, 6ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 123.