Wednesday, December 31, 2014

FINDA




"«A noite
impôs ao céu
uma servidão
de inúmeras
estrelas»,
e a via láctea
aprende
como nasce
um cometa 
dilacerante, 
«que o meu corpo
se despedace
nas pontas
das estrelas»,"



Carlos de Oliveira, "Micropaisagens", in Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 275. 

FIRMAMENTO



"Nunca, di, llegaste a ver
una nube que hasta el cielo
sube amenazando el suelo,
y entre el dudar e el temer
irse a otra parte a verter, 
cesando la confusión, 
y no en su misma región?"


Luis Velez de Guevara, Reinar Después de Morir, Madrid: Editorial Libra, 1970, p. 176. 

OS MANTOS DO FRIO



"Traz-me o frio
Traz-me os mantos do frio
Os horrores necessários do frio
O comércio que eu recusei a vida inteira
Mas que é o único possível neste mundo
Traz-me as túnicas os sabres as cotas de malha
Do frio que eu neguei quarenta e nove vezes
Às dez da noite na Estação das Neves Eternas
Traz-me o frio
O deus mutilado do frio
Em que hei-de transformar-me lentamente
De pálpebras cerradas sangue pisado
Sem compaixão nenhuma 
Sem amor nenhum de espécie alguma
Fortaleza inviolável
Castelo sepulcral definitivo
E altíssimo
Inacessibilíssimo
Sol inteiro consumido
No gelo
Sem uma lágrima
Uma única lágrima"


Alberto de Lacerda, Oferenda - I, Lisboa: IN-CM, 1984, p. 312. 

AS MÉDULAS 2



"Esta substância?
outra? a erosão do mundo?
estrelas, focos tensos, 
sobre o gás
que brilha, ao acaso, 
no rigor das órbitas; escolho
três sílabas fulgentes:
a palavra esplendor; 
escrevo-a, irradiando
a noite; ou sendo
o aro dela; e esses três ímanes
repelem, chamam
num jogo frio a pedra, 
a luz; incompreensíveis."



Carlos de Oliveira, "Entre Duas Memórias", in Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 313. 

Tuesday, December 30, 2014

AS MÉDULAS 1



"Para haver rio 
tem de haver
árvores duríssimas; sabor
de metal nos ramos; equilíbrio
no fogo; antes, depois
das trocas primitivas;
redes coando
como filtros
a consistência a transferir-se, 
a seiva neutra
donde nasce o álamo
de pedra; e a noite, 
pedra também, mas rarefeita
na sua lactescência."



Carlos de Oliveira, "Entre Duas Memórias", in Trabalho Poético, Lisboa: Círculo de Leitores, 2001, p. 312. 

Friday, December 26, 2014

LUTAR (para a memória de Sílvia Leão)




"Lutava contra o sol aquela faixa
estreita de sombra, negra de silêncio, 
onde passava o nosso olhar ausente. 

Lutava contra o sol, réstea da noite, 
o que resiste à luz, dentro da terra:
a mágoa de perder o que é da treva, 
pontos de incerta luz sobre o vazio. 

Lutava contra a luz o que é da terra."


Luís Filipe Castro Mendes, Poesia Reunida (1985-1999), Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 282. 

Thursday, December 25, 2014

A LUZ



"Disse. E a só luz do entendimento
meu corpo iluminou já sem palavras.
Disse a razão que pensa o pensamento
e a sem razão brutal que sobrenada
às almas e paixões quando escurece
e a morte lê no céu sua alvorada. 
Disse o terror da terra e a alegria
que há em passar do mundo ao puro dia."


Luís Filipe Castro Mendes, Poesia Reunida (1985-1999), Lisboa: Quetzal, 1999, p. 115. 

Wednesday, December 24, 2014

A NOITE (VIGÍLIA)



"A noite não é nada, 
Como se diz a um doente.
Se a alma é estiolada,
Sabe lá o que sente!

Ser o avesso do dia, 
Bem na intenção de Deus, 
Que verbo nos põe na boca?
Que «não» jogado a que lago
Põe toda a luz em fuga
E o candeeiro na mesa?
A pedra divina toca
Nossa pouca certeza
E logo a noite se enruga. 

Acudam aos acordados:
São os que a noite não quer;
Dêem-lhes dia logo.
Sonhar é como ter fogo:
Só quando a estrela der."


Vitorino Nemésio, Poesia (1935-1940), Lisboa: Bertrand Editora, 1986, p. 221. 

RECORDAÇÃO




"A recordação é uma cadeira de balanço
embalando sozinha..."


Mário Quintana, "Preparativos de Viagem", in Poesia Completa, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 769. 

Monday, December 22, 2014

VAGO




"Oh tu: sombra perdida numa reminiscência
de céus selados na minha memória; tu, que
um passado desejo despertas na maturação
dos bosques - de onde se elevam os fluídos
húmidos do crepúsculo - e que ao ameno
Sul emprestas o amargo traço de um rosto noc-
turno: dar-me-ás esse véu de palavras
mortas sob as argilas negras do inverno?
Esse cansado impulso de ser num vestígio
de voz - sudário sopro de que vago murmúrio?"


Nuno Júdice, "Lira de Líquen", in Obra Poética (1972-1985), Lisboa: Quetzal Editores, 1991, p. 274. 

Sunday, December 21, 2014

ANIVERSÁRIO


"D. JOÃO - Há outono, há todo o outono em mim. E passam asas sobre folhas secas."

António Patrício, D. João e a Máscara, Livraria Sam Carlos, 1972, p. 59.

Saturday, December 20, 2014

CORPO



"HELENA - Há piedade em mim. E há doçura. Há carícias de nuvem no meu corpo. Vem a mim todo ferido, todo em sangue. Oh! Venha a mim o teu desejo em sangue...

D. JOÃO - Tens uma voz de ave-maria, tu. A volúpia que reza: coisa turva, coisa turva e profunda a voz da carne."


António Patrício, D. João e a Máscara, Lisboa: Livraria Sam Carlos, 1972, p. 59. 

Friday, December 19, 2014

IR NA VIDA


"Vamos na vida, como o cavaleiro de Dürer, entre o Diabo e a Morte. Só se vive na consciência, e a consciência só apreende morte. Quer isto dizer que toda a vida consciente é vida morta? Não, de certo: mas lento e lento, um naufragar contínuo, naufrágio de marujo-poeta, em que se prolongam sempre os horizontes. Sabia-o bem Antero, que o sentido da vida é o sentido da morte. E os que, como nós, rezavam os Sonetos no colégio, souberam-no de cor, como os simples dizem orações, bem antes de em desespero o aprenderem. Quanto ao Diabo, o outro camarada da gravura, esse, como eu o vejo, é a ausência de lei, a arritmia: o contingente, o acaso, o acidental."

António Patrício, D. João e a Máscara, Lisboa: Livraria Sam Carlos, 1972, p. 11. 

Wednesday, December 17, 2014

ROMANTICISMO


"- Nada más ridículo en Vetusta que el romanticismo. Y le llamaba romántico todo lo que no fuese vulgar, pedestre, prosaico, callejero, Visita era el papa de aquel dogma anti-romántico. Mirar a la luna medio minuto seguido era romanticismo puro; contemplar en silencio la puesta del sol... ídem; respirar com delicia el ambiente embalsamado del campo a la hora de la brisa... ídem; decir algo de las estrellas... ídem; encontrar expresión amorosa en las miradas, sin necesidad de ponerse la habla... ídem; tener lastima de los niños pobres... ídem; comer poco... oh! esto era el colmo del romanticismo. 
- La de Páez no come garbanzos - decía Visita - porque eso no es romántico."

Leopoldo Alas "Clarín", La Regenta, 4ª ed., Barcelona: Editorial Optima, 1998, p. 341. 

Tuesday, December 16, 2014

VOADOR



"uma herança de mastros de navios
partindo com a água dos
muitos mortos deixados
a tormento
do amor que esses conhecem

um mar no bolso áspero das rochas
o tapete da fala
voador"


António Franco Alexandre, Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 132. 

Monday, December 15, 2014

INSTANTE




"A oeste são os planaltos, a vida selvagem
que um véu de água recolhe, 
um horizonte de coisas por dizer, por acontecer
mas a verdade mais abstracta é a mais prática:
let him look at the stars. tão longe
do seu próprio quarto como da multidão. 

porisso os selvagens, que não têm mais
que o necessário, 
conversam em figuras. 
esta dependência imediata da linguagem 
esta radical correspondência das coisas visíveis
nunca perde o poder de afectar-nos. 

devemos ir sós, vivos e sós. i must
be myself. 
tudo quanto Adão teve, o céu a terra a sua casa, 
tudo podes e tens. 
keep thy state; come not into their confusion.
constrói, sim, o teu reino, o teu mundo: natureza."



António Franco Alexandre, Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 291. 

Sunday, December 14, 2014

CUMULUS



"En los últimos términos del Ocaso columbraba un anfiteatro de montañas que parecían escala de gigantes para ascender al cielo; nubes y cumbres se confundían, y se mandaban reflejados sus colores. En lo más alto de aquel cumulus de piedra azulada Ana divisó su punto; sabía que era un santuario."

Leopoldo Alas "Clarín", La Regenta, 4ª ed., Barcelona: Editorial Optima, 1998, p. 81. 

Saturday, December 13, 2014

LUZIA



"Não ousava aperceber-me da própria beleza dessa região do universo. A menos que fosse para rebuscar o segredo dessa beleza, a impostura sob que se esconde para vitimar quem nela confia. Recusando-a, descobria a poesia. «Todavia, tanta beleza é feita para mim. Registo-a e sei que é em meu torno assim tão evidente para salientar a minha desgraça.»"

Jean Genet, Diário de um Ladrão, trad. Maria Helena Albarran, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 71. 

Thursday, December 11, 2014

MARÉ




"Assim, invertendo a maré, eis que vos consagrava a minha piedade"



Jean Genet, Diário de um Ladrão, trad. Maria Helena Albarran, Mem Martins: s.d., p. 70.

Wednesday, December 10, 2014

DECADENTES



"Estamos decadentes enquanto exibirmos os estigmas dessa decadência, e mesmo que vele dentro de nós a consciência da impostura, de pouco serve. Só recorrendo ao orgulho imposto pela miséria, nós provocávamos a piedade cultivando os defeitos mais repulsivos. Transformávamo-nos numa reprovação à vossa felicidade."

Jean Genet, Diário de um Ladrão, trad. Maria Helena Albarran, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 52. 

Tuesday, December 9, 2014

A VIOLÊNCIA



"Chamo violência a uma audácia em repouso apaixonada pelos perigos. Distinguimo-la num olhar, no modo de andar, num sorriso, e é em vós que ela gera a ressaca. Perturba-nos. Esta violência é uma calma que nos enerva."

Jean Genet, Diário de um Ladrão, trad. Maria Helena Albarran, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 14. 

Monday, December 8, 2014

PROCURAR A LUZ




"Abrir os olhos, procurar a luz, 
De coração erguido no alto, em chama, 
Que tudo neste mundo se reduz
A ver os astros cintilar na lama!

Amar o sol da glória e a voz da fama
Que em clamorosos gritos se traduz!
Com misericórdia, amar quem nos não ama, 
E deixar que nos preguem numa cruz!

Sobre um sonho desfeito erguer a torre
Doutro sonho mais alto e, se esse morre, 
Mais outro e outro ainda, toda a vida!

Que importa que nos vençam desenganos, 
Se pudermos contar os nossos anos
Assim como degraus duma subida?"


Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 162. 

Sunday, December 7, 2014

PAIXÃO


"La hipocresía de doña Camila llegaba al punto de ternerla en el temperamento, pues siendo su aspecto el de una estatua anafrodita, el de un ser sin sexo, su pasión principal era la lujuria, satisfecha a la inglesa; una luxuria que pudiera llamarse metodista, si no fuera una profanación."

Leopoldo Alas "Clarín", La Regenta, 4ª ed., Barcelona: Editorial Optima, 1998, pp. 67-68. 

Saturday, December 6, 2014

HISTÓRIA


"A história é este modo de experiência comum onde as experiências se equivalem e onde os signos de qualquer uma delas são capazes de exprimir todas as outras. A era da história tem a sua poética, resumida na célebre fórmula de Novalis: «tudo fala»"

Jacques Rancière, A Fábula Cinematográfica, trad. Luís Lima, Lisboa: Orfeu Negro, 2014, p. 291. 

Friday, December 5, 2014

FATIGADAS




"Habitamos um corpo em perigo. 
Com um pouco de sorte
estas folhas fatigadas pela chuva irão permanecer
(dezembro vai começar
os trabalhos do inverno e
o sol menos quente: assim
as memórias.) 
Deixemos em paz os jardins a mão no bolso esquerdo
não tarda a esquecer. 
Dormir é deixar a saliva viajar pelos teus livros
naturalmente
saberei julgar à maneira de um canteiro
negligente
trabalhando sobre a pedra. 
Que procuras? ( a missa acabou
dezembro vai começar e 
o sol menos quente.
Podemos partir para a guerra?) podemos partir?"


João Miguel Fernandes Jorge, "Vinte e Nove Poemas", in  Obra Poética, vol. 3, 2ª ed., Lisboa: Presença, 1988, p. 58. 

Thursday, December 4, 2014

MEMO


"Uma memória não é um conjunto de lembranças de uma consciência. Se assim fosse, a própria ideia de memória colectiva seria vazia de sentido. Uma memória é um certo conjunto, um certo arranjo de signos, de vestígios, de monumentos."

Jacques Rancière, A Fábula Cinematográfica, trad. Luís Lima, Lisboa: Orfeu Negro, 2014, p. 255. 

Wednesday, December 3, 2014

RAZÃO OFUSCADA




"te doy 
mi razón ofuscada
que se empeña en buscar lo nuevo
en otros rostros otras voces otra luz
y olvida así que lo único realmente nuevo
es justamente el reflejo tan antiguo
del mundo en tu mirada 
y que nada fuera de eso
merece tan siquiera 
la molestia de nombrarlo"


Luis Maria Marina, Nueve poemas a Sofía, s.l.: Olifante. Ediciones de Poesía, 2014, pp. 20-21.

Tuesday, December 2, 2014

EMBALAR




"Como, ao embalar-se nas folhagens de ouro, 
ao manso vento, minha alma
livre, me diz que sou tudo!"


Juan Ramón Jiménez, Antologia Poética, trad. José Bento, Lisboa: Relógio d'Água, 1992, p. 103. 

Monday, December 1, 2014

LEVANTAR




"Eis que me levanto à altura das raízes
(há tantos buracos no vento
quantas folhas há na árvore)
preciso de falar pra ouvir o que tu dizes
tu, o outro de mim, na solidão dos países
do meu sótão"


António Barahona, Rizoma, Lisboa: Guimarães Editores, 1983, p. 22.