Wednesday, December 31, 2008

PASSEMOS OS SÉCULOS SEM ROSTO



"imagino que sobre nós virá um céu
de espuma e que, de sol em sol,
uma nova língua nos fará dizer
o que a poeira da nossa boca adiada
soterrou já para lá da mão possível
onde cinzentos abandonamos a flor.

dizes: põe nos meus os teus dedos
e passemos os séculos sem rosto,
apaguemos de nossas casas o barulho
do tempo que ardeu sem luz.
sim, cria comigo esse silêncio
que nos faz nus e em nós acende
o lume das árvores de fruto.

diz-me que há ainda versos por escrever,
que sobra no mundo um dizer ainda puro."


Vasco Gato, Um Mover de Mão. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 9.

Monday, December 29, 2008

A PARTE DA FORÇA

"O delírio é um anjo embriagado. Bebe até cair; bebe até cair das nuvens. Foi a desgraça de Satã"


Teixeira de Pascoaes, O Pobre Tolo, Lisboa: Bertrand, 1973, p. 173.

Saturday, December 27, 2008

VISTA DE SERRÚBIA

"Estou aqui sentado - ali o mar,
as palmeiras.
O leite fresco, o pão na mesa.
O gesto sempre igual
da luz, o mesmo olhar da ave.
Existe uma secreta harmonia
entre a luz e o mar,
a mesma provavelmente
entre a palmeira e a ave,
o leite e o pão.
E com a palavra, o seu
voo a prumo,
com a palavra qual é a relação?"


Eugénio de Andrade, "O Sal da Língua" in Poesia, 2ª ed., Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 2005, pp 514-515.

Friday, December 26, 2008

I AM SLOW AS THE WORLD


"Possuo a lentidão do mundo. Espero pacientemente
Que o meu tempo se escoe, o sol e as estrelas observando-me atentamente.
A preocupação da lua é mais íntima:
Passa e volta a passar luminosa como uma enfermeira.
Será que lamenta o que está prestes a acontecer? Não me parece.
É apenas o espanto perante a fertilidade."


Sylvia Plath, Três Mulheres, trad. Ana Gabriela Macedo. Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 19.

Wednesday, December 24, 2008

MIRABILMENTE IL TEMPO SI DISPLIEGA

"(...)
Não bastará um Natal inteiro
para trocarmos as fábulas mais suaves:
as túnicas de urtiga, os sete mares,
a dança sobre as espadas.

«Admiravelmente o tempo se desprega...»
reconduzirá no tempo esse mínimo
escorrer, uma mulher, um átomo de fogo:
nós que vivemos sem fim."


Cristina Campo, O Passo do Adeus, trad. José Tolentino Mendonça. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 45.

Sunday, December 21, 2008

WINTER'S BEGINING


"A minha história é como o canto do gaulês guerreiro quando sobre a pira inflamada, junto à penha druídica, fazia, aos deuses do seu povo, religiosa oblata duma rude existência."


Álvaro do Carvalhal, "A Febre do Jogo", in Contos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 53

Sunday, December 14, 2008

POR PASSOS SEM ESPERANÇA ME LEVA SEMPRE O DESEJO

"Levanta o meu pensamento
No desejo tanta altura,
Que não se acha na ventura
Aquela glória que intento,
Senão em sombra e figura.

Porém como não descansa
Em contínuo imaginar,
Traz-me o cuidado em balança,
E é forçoso caminhar
por passos sem esperança.

Entre cuidado e cuidado
Me perco em qualquer extremo
Sempre igualmente arriscado:
Desespero quando temo.
E espero desconfiado.

Com temor e amor pelejo
Neste duvidoso enleio,
E pela mor parte vejo
Que donde nasce o receio
Me leva sempre o desejo."


Francisco Rodrigues Lobo, Poesias, selecç. Afonso Lopes Vieira, 2ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1955, pp. 164-165.

Sunday, December 7, 2008

ROUPA VELHA



"Assiste àquilo que eu desejo que ela veja, uma história ao vivo, um desenho que poderia estar pendurado nas cordas da sua roupa. O vento a empurrar uma mulher em cima de uma concha, uma visão que vem da espuma, enquanto outra lhe estende um manto vermelho. O que marca a linha do seu corpo são os cabelos, as mãos que procuram esconder o amor. São outras mulheres que dançam com os dedos entrelaçados, entre as árvores. É isto que eu quero que se contemple da sua janela, a Primavera que se despe e entra num sono profundo, uma rua onde não existe a guerra, onde os tanques não destroem os alicerces das casas, um espaço único, sem pó, nem sangue, com a luz a entrar pelas escadas. Enquanto jovens mancebos, em fila, lançam flechas contra os ciprestres."

Jaime Rocha, Anotação do mal, Lisboa: Sextante Editora, 2007, pp. 28-29.

Wednesday, December 3, 2008

"FAST FOOD" PODE LEVAR A DOENÇA DE ALZHEIMER



"O filósofo dizia que só os homens faziam o importante, enquanto os animais só dispunham de acções insignificantes.
Foi então que chegou o tigre e devorou o filósofo, comprovando com os dentes a teoria anteriormente apresentada."


Gonçalo M. Tavares, O Senhor Brecht. Lisboa: Ed. Caminho, 2004, p. 39.

Tuesday, December 2, 2008

HOW COMES IT THEN THAT THOU ART OUT OF HELL?



"Fausto -Como é que então estás aqui, fora do Inferno?

Mefistófeles - Mas isto é o Inferno; não estou fora dele.
Pois pensas que eu, que vi a face de Deus
E provei as eternas delícias do Céu,
Não me atormento com dez mil infernos
Só por estar privado da sempiterna felicidade?
Oh, Fausto, deixa essas perguntas vãs,
Que se me arrasa a alma de terror."


Christopher Marlowe, Doutor Fausto, trad. João Ferreira Duarte e Valdemar Ferreira. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2003, cena 3; I, 3, p. 49.