Sunday, September 30, 2012

CARIDADE


"Não havia nenhum cheiro, não se ouvia qualquer ruído. Ninguém estava com eles no quarto. O facto de não poderem comunicar por meio de palavras era, sem dúvida, a causa de muita incompreensão. Mas por outro lado fazia com que existisse entre eles uma intimidade muito especial. Um dia, após uma manhã passada a trabalhar, Miss Barrett exclamou «Escrever, escrever, escrever...». Apesar de tudo, talvez se interrogasse se as palavras conseguem exprimir tudo. Será que as palavras têm algum significado? Não destruirão as palavras todos os símbolos que estão para além do alcance das palavras? Pelo menos uma vez parece ter chegado a esta conclusão. Estava deitada, pensativa, esquecera-se completamente de Flush e os pensamentos que a invadiam eram tão soturnos que as lágrimas lhe rolavam para a almofada. Repentinamente uma cabeça peluda encostou-se à dela; uns grandes olhos brilhantes fixaram-se nos dela e ela assustou-se. Era Flush ou Pã? Já não era uma inválida de Wimpole Street, mas sim uma ninfa grega num bosque sombrio da Arcádia? Teria aquele deus barbudo pousado os lábios nos seus? Por instantes sentiu-se transformada: «era uma ninfa e Flush era Pã». O sol queimava; o amor resplandecia: (...)"
Virginia Woolf, Flush - Uma Biografia, trad. Maria de Lourdes Guimarães, Lisboa: Relógio D'Água, 2011, pp. 35-36.

Saturday, September 29, 2012

PELO SÃO MIGUEL


"Diabo - Entra, entra no batel,
que para o Inferno hás-de ir.

Enforcado - E o Moniz há-de mentir?
Disse-me: - «Com São Miguel
irás comer pão e mel
como fores enforcado».
Ora, já passei meu fado
e já feito é o burel. (...)"
 
Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno, 3ª ed., intr. e notas de Gilberto Moura, Lisboa: Ulisseia, 1991, p. 90.

Friday, September 28, 2012

INTERIM


"Para se ser verdadeiramente medieval, não se pode ter corpo. Para se ser verdadeiramente moderno, não se pode ter alma. Para se ser verdadeiramente grego, não se pode ter roupas."
  Oscar Wilde, Poemas em Prosa, trad. Possidónio Cachapa, Lisboa: Cavalo de Ferro, 2002, p. 36.

Thursday, September 27, 2012

BOM VENTO


" - E com bom vento, poderá esperar agora uma feliz viagem?
- Ouso esperá-lo, sim; mas a esperança é enganadora: o vento e as ondas perturbam continuamente a rota do navegante e ele não ousa expulsar do espírito a ideia de uma tempestade."
Charlotte Brontë, Shirley, trad. Ana Ribeiro, Matosinhos: Book.it, 2011, p. 171.

Wednesday, September 26, 2012

A TAÇA


"Estreita é do prazer na vida a taça:
Largo, como o oceano é largo e fundo,
E como ele em venturas infecundo,
O cálix amargoso da desgraça.

E contudo nossa alma, quando passa
Incerta peregrina, pelo mundo,
Prazer só pede à vida, amor fecundo,
É com essa esperança que se abraça.

É lei de Deus este aspirar imenso...
E contudo a ilusão impôs à vida,
E manda buscar luz e dá-nos treva!

Ah! se Deus acendeu um foco intenso
De amor e dor em nós, na ardente lida,
Porque a miragem cria... ou porque a leva?"
  Antero de Quental, Sonetos Completos, Porto: Lello & Irmão, 1983, p. 70.

Tuesday, September 25, 2012

VENTOS


"A pequena lagarta
vê passar o outono
sem pressa de se tornar borboleta

A lua deita-se -
tudo o que resta é esta mesa
e os seus quatro cantos

Cai uma castanha...
Calam-se de súbito os insectos
entre as ervas

Crepúsculo:
as ervas parecem seguir
os rebanhos que recolhem

Vento de outono -
até as pedras do Monte Assama
voam

Apesar do outono
os ouriços das castanhas permanecem verdes
muito tempo ainda"
Matsuo Bashô, O Gosto Solitário do Orvalho seguido de O Caminho Estreito, versões e introd. Jorge Sousa Braga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p.p. 41; 43.

Sunday, September 23, 2012

TEMPOS DE SÍSIFO


"Deixo Sísifo no sopé da montanha! Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Esse universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A própria luta para atingir os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz."
 
Albert Camus, O mito de Sísifo, trad. Urbano Tavares Rodrigues, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 116.

Saturday, September 22, 2012

THE SHELTERING SKY


"Eu sou o deserto.
Todos os desertos são iguais, porque quando estamos acompanhados, podemos estar acompanhados de mil maneiras diferentes. Depende de quem está à nossa volta, ou aquilo que nos cerca. Mas a solidão é só uma, é sempre a mesma. Por isso, eu sou todos os desertos em toda a sua vastidão, pois a minha solidão é a solidão de todas as pessoas, de todos os seres vivos, de todas as pedras, de todas as perdas."
 
Afonso Cruz, A morte não ouve o pianista, Lisboa: Editora Objectiva/Alfaguara, 2012, p. 7 (apud Jesus Cristo bebia cerveja).

Friday, September 21, 2012

ENCERRAR


"No portão amontoam-se as vítimas
rostos nus e perfeitos
fechados na ignorância,
mãos paradoxais
agarradas a um ferro,
e lá fora o comboio que passa
soalheiro leve,
um estrondo de luz própria
sobre a minha margem ofendida."
  Alda Merini, A Terra Santa, trad. Clara Rowland, Lisboa: Cotovia, 2004, p. 25.

Wednesday, September 19, 2012

DEVORAÇÃO


"Perdera G.Z. de vista e não queria voltar a pensar nele. Havia outros que, por diversas razões, tinham arrancado pedaços da sua própria carne a fim de que o destino não os deixasse cair sem retorno no fundo do precipício. Outros... Talvez eu fosse um deles. Tínhamos enveredado por um caminho sem saber onde conduziria, sem saber quanto tempo demoraríamos, e depois, a meio do percurso, percebendo que estávamos perdidos, mas que era demasiado tarde para arrepiar caminho, tínhamos começado a retalhar pedaços da nossa própria carne, a fim de não sermos devorados pelas trevas."
  Ismaïl Kadaré, A Filha de Agamémnon, trad. Isabel St. Aubyn, Lisboa: Dom Quixote, 2008, p. 49.

Monday, September 17, 2012

FALA DO MIÚDO DE 13 ANOS


"- Tretas - As faces do Chefe, brancas mesmo no verão, faziam covinhas. - Eles nem sequer sabem definir perigo. Acham que perigo quer dizer algo físico, um arranhão que deita um pouco de sangue e os jornais fazem uma grande história com isso. Bom, o perigo não tem nada a ver com isso. O verdadeiro perigo é viver. Claro, aquilo a que chamamos viver é apenas o caos da existência, mas mais do que isso é o esforço de desmantelarmos tudo, a existência, até atingirmos um ponto onde o caos original é restaurado e buscar forças à incerteza e ao medo que o caos contém, para recriar a existência instante a instante. Não há trabalho mais perigoso do que este. Na existência-em-si não há o medo, ou a incerteza, mas é o viver que os cria. E a sociedade, basicamente, não tem qualquer sentido, é apenas um banho romano misto. E a escola, a escola é a sociedade em miniatura, é por isso que nos estão constantemente a dar ordens. Um punhado de homens cegos diz-nos o que temos de fazer, retalha-nos as nossas imensas capacidades."
 
Yukio Mishima, O Marinheiro que perdeu as graças do mar, trad. Carlos Leite, 3ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, pp. 53-54.

Saturday, September 15, 2012

OS PEIXES DIVERTEM-SE


"Certo dia, Soshi caminhava com um amigo pela margem de um rio. «Com que prazer se divertem os peixes na água!» exclamou Soshi. O amigo falou-lhe assim: «Tu não és peixe; como sabes que os peixes se divertem?!» «Tu não és eu,» responde Soshi, «como sabes que eu não sei que os peixes se divertem?»"
Kakuzo Okakura, O Livro do Chá, trad. Fernanda Mira Barros, Lisboa: Edições Cotovia/Biblioteca Editores Independentes, 2009, p. 43.

Friday, September 14, 2012

O GRANDE AVATAR


"O céu da humanidade moderna está de facto despedaçado na luta ciclópica pela riqueza e pelo poder. O mundo anda às cegas na sombra do egoísmo e da vulgaridade. O conhecimento compra-se com uma má consciência, a benevolência pratica-se por amor à utilidade. O Oriente e o Ocidente, como dois dragões lançados num mar fermentoso, esforçam-se em vão por voltar a merecer a jóia da vida. Precisamos novamente de uma Niuka que conserte a grandiosa devastação; aguardamos o grande Avatar. Entretanto, tomemos um gole de chá. O ardor da tarde ilumina os bambus, as fontes murmuram com gosto, o sussurro dos pinheiros escuta-se na nossa chaleira. Sonhemos com a evanescência, e demoremo-nos na bela tolice das coisas."
 
Kakuzo Okakura, O Livro do Chá, trad. Fernanda Mira Barros, Lisboa: Edições Cotovia/Biblioteca Editores Independentes, 2009, pp. 18-19.

Thursday, September 13, 2012

A FONTE (COMEMORANDO DO DIA DE L.)


"- A fonte que se diz ter dado aos homens a capacidade de ver aquilo que não acontece no futuro. Por mais que imaginemos o que irá suceder, o futuro nunca acontece como pensamos. Mesmo que apenas difira num pequeno pormenor. Adão bebeu desta fonte e passou esta característica aos homens, facto que veio a tornar a nossa vida muito mais interessante e misteriosa. Curiosamente, as coisas que imaginamos que irão ser o futuro, e jamais o serão, existem mesmo, mas num universo ao lado deste, coladinho a este. Deus fez muitos, como folhas de um livro, e não desperdiça imaginação nenhuma e tudo o que pensamos acaba por acontecer, mas noutro lado a que não temos acesso. Somos como aquelas pessoas que encontram uma porta, julgando ter a saída, que diz: proibida a entrada a estranhos."
 
Afonso Cruz, Jesus Cristo bebia cerveja, Lisboa: Editora Objectiva/Alfaguara, 2012, p. 219.

Wednesday, September 12, 2012

FORMA


"Partilhar o pão para que, podendo todos ver as suas necessidades básicas cumpridas, se possam dedicar a encontrar Deus. Há dois tipos de Deus: o que nasce da barriga vazia e o que nasce da barriga cheia. O primeiro é vazio, terroso, carnal, necessário para criar uma sensação de amparo e justiça num mundo em que não há nada disso. O segundo é um luxo, fruto de elucubrações. Não precisamos dele, mas ainda assim fazemo-lo existir. É feito de argumentos. Nasce de barrigas cheias. No primeiro acreditamos com o corpo, com o fígado, com o estômago, com os rins e com o sangue. No segundo, acreditamos com a cabeça. O primeiro tem mãos, unhas encardidas, barbas e relâmpagos na voz. O segundo não tem forma, nem corpo, nem nome."
  Afonso Cruz, Jesus Cristo bebia cerveja, Lisboa: Editorial Objectiva/Alfaguara, 2012, p. 127.

Monday, September 10, 2012

NATURA ABHORRET VACUUM


"A natureza abomina o vazio, ou dito numa língua morta: natura abhorret vacuum. Mas que ele existe, existe. Parece que o Nada, a existir, deixa de ser o Nada para ser alguma coisa. A natureza não gosta de espaços vazios e preenche-os como um burocrata preenche requerimentos. Não deixa buracos em lado nenhum. Mesmo os lugares mais rarefeitos, como o espaço sideral e a estupidez humana, são preenchidos por alguma coisa: luz, metais leves, preconceitos, partículas e subpartículas dos átomos, radiações, chavões e telenovelas. A natureza enche chouriços, não há espaços vazios nas suas tripas. Um homem olha à sua volta e não encontra nada que não esteja já ocupado. Assim pensam os homens com a razão e a lógica que se passeia nos interstícios dos seus cérebros cinzentos, nessas dobras confusas que se assemelham a um intestino redondo ou a uma noz. Mas os homens que pensam com os sentimentos, têm outra lógica a nadar-lhes nas veias e artérias. Esses acreditam no vazio porque o vêem a toda a hora dentro de si."

Afonso Cruz, Jesus Cristo bebia cerveja, Lisboa: Editora Objectiva/Alfaguara, 2012, pp.  137-138.

Sunday, September 9, 2012

ARGUMENTAÇÃO


" - O meu filho costumava usar um argumento curioso, que não perfilho mas partilho consigo, que sei que aprecia um bom copo ao fim da tarde: não faz sentido nenhum que o mar não seja doce e potável. Fazer da maior parte do planeta uma coisa intragável é hediondo, e só Deus poderia lembrar-se disso. É a prova de que existe. Se fosse a ciência ou a razão, o que fariam? Um mar estupidamente salgado ou uma coisa que se pudesse beber ao balcão de um bar?
- Ha, ha, ha, ridículo. É um argumento de uma estupidez aterradora. A complexidade não é o fruto da razão e há um motivo para o sal no mar. É muito fácil confundir as mentes ingénuas com argumentos desses.
- Concordo, mas continuo a ter pena de que o mar não seja potável."
  Afonso Cruz, Jesus Cristo bebia cerveja, Lisboa: Editora Objectiva/Alfaguara, 2012, pp. 37-38.

Friday, September 7, 2012

PECADO


"Que sabemos nós do pecado? Os geólogos dizem-nos que o solo que nos parece tão firme, tão estável não passa de uma ligeira película por cima de um oceano de fogo líquido, num frémito constante, como a pele que se forma sobre o leite prestes a ferver... que espessura tem o pecado? A que profundidade seria necessário escavar para se encontrar o abismo azul?..."
 
Georges Bernanos, Diário de Um Pároco de Aldeia, trad. João Gaspar Simões, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 68.

Wednesday, September 5, 2012

POUSO


"(Parábase)

Fracos humanos como folhas ligeiras, imponentes criaturas amassadas em lodo e privadas de asas, pobres mortais condenados a uma vida efémera e fugitiva como a sombra ou como um sonho ligeiro, escutai as aves, seres imortais, aéreos, isentos de velhice, ocupados em pensamentos eternos. Aprendereis connosco a conhecer os fenómenos celestes, a natureza das aves, a origem dos deuses e dos rios, do Erebo e do Caos e podereis depois dizer a Pródico."
  Aristófanes, As Aves, trad. A. Lobo Vilela, 3ª ed., Lisboa: Editorial Inquérito, s.d., p. 58.

Monday, September 3, 2012

FRITATA


"Frondoso - O céu maldiga o poeta
Que tão tristes versos faz!

Barrildo - De melhor não é capaz.

Mengo - A minha musa é discreta.
Que acontece ao biscoiteiro
Na ocasião em que deite
Massa de filhós no azeite
A ferver no seu caldeiro?...
Uns filhós saem inchados,
Uns tortos, outros direitos,
Uns canhotos e mal feitos,
Outros gordos e queimados.
Assim imagino eu
O poeta a versejar,
Muito ocupado a fritar
A massa que Deus lhe deu.
Vai deitando a versalhada
No caldeiro do papel,
Confiado em que saiba a mel
A cantiga ou a balada.
Quer fazer versos ao jeito
De a todos matar a fome;
E afinal só ele os come
E não lhe fazem proveito."
Lope de Vega, Fuenteovejuna, trad. António Lopes Ribeiro, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, Act. I, C. XVI, p. 59.

Sunday, September 2, 2012

QUARTO ANO


"A árvore foi a forma de te ver
E desci para abrir a casa.
De me teres visitado e avistado
Entre os ramos
Fizeste-me passagem
Da folha ao voo do pássaro
Do sol à doçura do fruto.
Para me encontrares me deste
A pequenez."
  Daniel Faria, Poesia, ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 166.

Saturday, September 1, 2012

OBJECTO-PÃO, LINGUAGEM- MONTRA


"Segundo Jackendoff (2002: 348) existem itens lexicais que não dispõem de estrutura espacial. Estão incluídos neste grupo conceitos abstractos (e.g. legitimidade, moral) e lógicos (e.g. e, se, não).
Jackendoff (2002: 348) propõe que itens lexicais referentes a sons, sabores, cheiros e sensações apresentam estrutura paralela à espacial, desenhada de acordo com os componentes específicos de cada um. Tratar-se-á, pois, de estruturas que permitem a conexão com a identificação e a categorização de objectos que não dispõem de dimensões espaciais, mas de outros tipos de dimensões proporcionadoras de traços de discrição desses objectos."
Alexandra Soares Rodrigues, Jackendoff e a Arquitectura Paralela - apresentação e discussão de um modelo de linguagem, Munique: LINCOM Europa, 2012, p. 127.