Tuesday, May 31, 2011

DO ESTÚPIDO


"A estupidez pode definir-se como a lentidão mental nas palavras e nos actos. Eis o perfil do estúpido. Acaba de fazer uma conta com pedrinhas e, quando chegou ao resultado, pergunta ao vizinho: « Quanto dá?» Tem de se defender num processo; na hora de se apresentar, esquece-se e abala para o campo. Está a assistir a uma peça de teatro: adormece e fica lá sozinho. Comeu demais; levanta-se de noite para ir à retrete e é mordido pelo cão do vizinho. Arruma por suas mãos qualquer coisa que acabou de receber, e depois anda à procura dela sem conseguir encontrá-la. Ao ser-lhe comunicada a morte de um amigo para ele poder ir ao funeral, toma um ar pesaroso, lágrima ao canto do olho, e sai-se com esta: «Deus lhe dê boa sorte!» É menino para, quando lhe pagam uma dívida, arranjar testemunhas. Em pleno Inverno, ralha com o criado por não lhe ter comprado pepinos. Obriga os filhos a praticarem luta ou atletismo até não poderem mais. No campo, é ele próprio quem faz a sopa; mas deita sal na panela duas vezes e põe-na intragável. Se chove, ele exclama «Que céu maravilhoso!», enquanto os outros acham que está negro como breu. Quando lhe perguntam: «Quantos funerais, nas tuas contas, saíram pela porta sagrada?» Ele responde: «Só os queria em dinheiro, para mim e para ti!»"
Teofrasto, Os Caracteres, trad. Maria de Fátima Silva, Lisboa: Relógio D'Água, 1999, p.64.

Monday, May 30, 2011

OS ANJOS DOS MUROS


"Ó dia de sol e morte

As flores eram venenosas
As moscas eram negras
O azul tenebroso

Tanta luz impiedosa
Sobre o luto da terra"

António Dacosta, A Cal dos Muros, Lisboa: Assírio & Alvim 1994, p. 89.

Sunday, May 29, 2011

ESPERTEZAS


"Uma Galinha que havia pacientemente chocado uma postura de ovos de víbora foi abordada por uma Andorinha, que lhe disse:
- Bem néscia és ao dares vida a criaturas que te recompensarão destruindo-te.
- Também eu sou um tanto destrutiva - disse a Galinha, engolindo calmamente um dos pequenos répteis -, e não é néscio quem se alimenta das delícias da época."
Ambrose Bierce, Esopo emendado & outras fábulas fantásticas, trad. Fernando Gonçalves, Lisboa: Antígona, 1996, p. 96.

Saturday, May 28, 2011

DA PERFEIÇÃO DO SER-NUVEM (HOMENAGEM DOS 15 ANOS)


"Para descrever as nuvens
muito teria de apressar-me,
pois numa fracção de segundo
deixariam de ser estas e começam a ser outras.

É sua propriedade
não se repetir
nas formas, tonalidades, poses e configurações.

Sem o peso de qualquer lembrança,
pairam sem dificuldade sobre os factos.

Mas nem testemunhá-los podem,
pois logo se dissipam em todas as direcções.

Comparada com as nuvens,
a vida afigura-se firme,
quase duradoura, eterna.

Perante as nuvens
até uma pedra parece nossa irmã,
na qual se confia,
mas elas, enfim, umas levianas primas afastadas.

As pessoas que existam, caso queiram,
e depois morram uma por uma,
as nuvens não têm nada a ver com
coisas
tão estranhas.

Sobre toda a tua vida
e sobre a minha, ainda não toda,
desfilam com pompa, como desfilavam.

Não têm a obrigação de morrer connosco.
Não precisam do nosso olhar para navegar."

Wislawa Szymborska, Instante, trad. Elzbieta Milewska e Sérgio Neves, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2006, pp. 21-23.

Thursday, May 26, 2011

OPTO ANTES POR UM BATENTE


"Não há flores na campa do Narciso
não há flores na campa da Margarida    porque morreu a florista
não há quem os regue com o sal das lágrimas
não há quem os lave com a água dos olhos
não há quem afaste os cardos com esse ancinho ancião que coçava as costas dos finados

a Rosinha morreu
a Rosinha morreu e a irmã mais velha chora de secura a sua lápide
o seu jazigo de suores frios

e todas as flores estão secas    mortas    salgadas
e nada podem fazer pelos mortos que estão moribundos

a florista morreu e o cemitério está vivo

os mortos levantam-se para consolar as flores"

João Negreiros, o cheiro da sombra das flores, 2ª edição, Porto: Papiro Editora, 2009, p. 45.

Wednesday, May 25, 2011

SEGUINDO COM OS PROBLEMAS DA HABITAÇÃO


"Evil has no home,
only evil has no home,
not even the home of demoniacal hell.
Hell is the home of souls lost in darkness,
even as heaven is the home of souls lost in light.
And like Persephone or Attis
there are souls that are at home in both homes.
Not like grey Dante, colour-blind
to the scarlet and purple flowers at the doors of hell.

But evil,
evil has no dewlling-place,
the grey vulture, the grey hyena, corpse-eaters
they dwell in the outskirt fringes of nowhere
where the grey twilight of evil sets in.

And men that sit in machines
among spinning wheels, in an apotheosis of wheels
sit in the grey mist of movement whice moves not
and going which goes not
and doing which does not
and being which is not:
that is, they sit and are evil, in evil,
grey evil, which has no path, and shows neither ligth nor dark
and has no home, no home anywhere."


D. H. Lawrence, The Complete Poems, London: Wordsworth Editions, 2002, p. 598.

Tuesday, May 24, 2011

BUROCRACIA NAS OBRAS PÚBLICAS


"Quem quer fazer huu castello, deve o edeficar em terra de paz, porque quanto homem fezesse em comarca de guerra em huu dia, em outro seeria derrubado. E porem, ante que começemos de edeficar nosso castello, compre esguardar e aprender como devemos daver paz, e como devemos a vyver pera nossa saude. Eu digo que homem deve daver paz primeiro com Deus; des y com seus mayores; terçeira com seus prouximos; quarta conssygo meesmo. E, se algua destas pazes falleçe, mall se pode edeficar castello que dure."
Castelo Perigoso, ed. crítica de Elsa Maria Branco da Silva, Lisboa: Edições Colibri, 2001, p. 94.

Monday, May 23, 2011

RETÓRICA DOS LIMIARES E DOS INTERIORES


"- Pecador que dormes a sono solto, como Jonas no meio do temporal, desperta! Porque tardas tu tanto? Olha para o chão, infeliz!... Não lobrigas o gólfão do Inferno às escâncaras para te engolir...? Não? É porque és cego! Não ouves tão-pouco estalar por baixo dos pés a tábua estreita e carcomida, lançada deste mundo para o outro como cais para a barca? É porque, além de cego, és surdo! Ah, que se limpasses as escamas dos olhos e a cera dos ouvidos, verias os condenados aos tombos nos caldeirões de azeite a ferver, rechinar nas grelhas, serem espichados nos dentes dos gadanhos e forcados como postas de estrume das estrumeiras, e ouvirias os risos macabros dos demónios, as blasfémias e ranger de dentes dos réprobos!
A esta altura do rapto, de fundo tão realisticamente negro esverdinhado a fósforo, a igreja inteira ululava como nau que vai ao fundo. Eram favas contadas como nos demais anos."
Aquilino Ribeiro, A Casa Roubada, Lisboa: Bertrand Editora, 1985, p. 105.

Sunday, May 22, 2011

RETÓRICA ALEGRE


"Afastei dos olhos o papelucho tarjado de negro para decifrar melhor os caracteres rendilhados. Já então Maria Adélia coçava o nariz para sofrear não sei que despropositada vontade de rir. Mas logo percebi porquê. O papel dizia:

                                      MIQUELINA ALVES DOS SANTOS

Narciso dos Santos participa a extinção da sua unidade adâmica, por a metade feminina sua mulher haver terminado a missão cármica determinada por Deus, e que o seu corpo sairá hoje, às dezoito horas, da rua dos Heróis de Quionga, número trezentos e vinte, segundo andar direito, para ser entregue à mãe Eva, no cemitério do Alto de S. João. Também o participam seu filho, irmãos, cunhadas e mais família.

O homem, de mãos enervadas, esperava um comentário. A Olinda, mais sisuda, falou por nós:
- Foi uma bonita homenagem. "

Fernando Namora, Retalhos da Vida de um Médico, 2ª ed., Lisboa: Círculo de Leitores, 1977, pp. 426-427.

Friday, May 20, 2011

ANFIBOLOGIA NOS CHARCOS 3


"Ver descer com Plotino o espírito do sol
é um verso que ocorre perante o contingente.
Oiço a rã o tentilhão insectos e o meu ouvido
tem o som interior próprio dos instrumentos.
Tudo o que está na paisagem à hora do poente
é o que sei de há muito mas subitamente
o cão negro aproxima-se pela primeira vez."

Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve, Lisboa: Teorema, 1991, p. 447.

Thursday, May 19, 2011

ANFIBOLOGIA NOS CHARCOS 2


"Quero banhar-me nas águas límpidas
Quero banhar-me nas águas puras
Sou a mais baixa das criaturas
               Me sinto sórdido

Confiei às feras as minhas lágrimas
Rolei de borco pelas calçadas
Cobri meu rosto de bofetadas
               Meu Deus valei-me

Vozes da infância contai a história
Da vida boa que nunca veio
E eu caia ouvindo-a no calmo seio
               Da eternidade.
Manuel Bandeira, Antologia Poética, 18ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987, p. 94.

Wednesday, May 18, 2011

ANFIBOLOGIA NOS CHARCOS 1


"No lodo de que sou feito
Cantam as rãs dia e noite,
Todos os juncos hesitam.
Sobre cinéreas bagas
Chove maçada e amor,
Que uns pernaltas já tristes aproveitam,
Picam em meu coração
Como se fosse numa flor."

Vitorino Nemésio, "Eu, comovido, a oeste", in Poesia (1935-1940), Lisboa: Livraria Bertrand, 1986, p. 185.

Tuesday, May 17, 2011

SERES DE OURO (SOL CHEIO)


"Zierau - A verdadeira razão ensina-nos a ser felizes, a cobrir de flores o caminho à nossa frente.

O Príncipe - Só que as flores murcham e morrem.

Mestre Beza - Exactamente, exactamente.

Zierau - Aí, há que colher novas flores.

O Príncipe - Mas quando o solo já as não produz. Porque tudo depende dele.

Zierau - Perdemo-nos em alegorias.

O Príncipe - Que, contudo, são fáceis de decifrar. Ampliar o espírito e o coração, caro senhor...

Zierau - Quereis dizer não amar, não desfrutar do prazer.

O Príncipe - O desfrute e o amor são a única felicidade do mundo, só que tem que ser o nosso estado interior a dar-lhes a afinação.

Mestre Beza - Ai! O amor, o amor, uma religião muito pura que nos vai pejando os bordéis.

Zierau - Por mim, desejaria que pudéssemos começar por ensinar a juventude a amar, e em breve estariam vazios os bordéis.

O Príncipe - O que talvez só tornasse o mundo pior ainda. O amor é fogo, e sempre é melhor ateá-lo à palha do que às espigas de trigo. Enquanto não se tiverem tomado outras providências...

Zierau - Quando voltar a idade do ouro.

O Príncipe - Essa só existe na cabeça dos poetas, graças a Deus. Nem consigo imaginar como me sentiria em tal situação. Havíamos de estar para ali sentados como um Midas, olhando fixamente para tudo, incapazes de sentir qualquer prazer. A idade do ouro de nada nos servirá enquanto nós próprios não nos transformarmos também em ouro; e quando formos de ouro, então também poderemos fazer as pazes com os tempos de bronze e de chumbo."

Jakob Lenz, O Novo Menoza ou História do Príncipe Tandi de Cumba, trad. José Miranda Justo, Lisboa: Cotovia, 2001, 1º acto, cen.6,  pp. 40-41.

Monday, May 16, 2011

DA PÁTRIA


"A terra está uma pobre das estradas:
A noite ficou sem estrelas,
Toda consentimento
Ao lento germinar das pessoas caladas.
O céu gastou a face
De pura atenção ao mar,
E o mar redes e velas,
Seu sal e apartamento,
Como se agora anuísse e se entregasse.
Tudo baixou.
Um tom certamente agudo e amplo, um sinal dado,
Nunca mais foi ouvido;
E quem tinha, por exemplo, um amor ou um cuidado
Ganhou um nada
- Coisa de duas lágrimas
No seu olhar perdido.

A terra já nem vale as sementes que tem:
Deitou-se em cima delas
Com a força da aurora,
E nem chegou a amanhecer capazmente
Nos campos e nas janelas
Como a terra de outrora.

Nem sei o que a terra tem."

Vitorino Nemésio, "Eu, comovido a oeste", in Poesia (1935-1940), Lisboa: Livraria Bertrand, 1986, p. 214.

Sunday, May 15, 2011

FLORES CRIMINAIS


" - Foram as outras flores que o mataram - disse Chloé. - Principalmente uma flor de baunilheiro que me trouxeram nos últimos dias.
- É estranho - disse o professor. - Não julgava que o baunilheiro conseguisse produzir efeito. Acreditaria mais no genebreiro ou na acácia. A medicina, como sabe, é uma brincadeira de patetas - concluiu.
- Realmente é - disse ela."
Boris Vian, A Espuma dos Dias, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Relógio D'Água, 2001, p. 158.

Friday, May 13, 2011

DA POLÍTICA 2



"- Acho uma boa notícia, Dr. Linhares. O socialismo já mordeu a isca, já está a enganar-se a si próprio.
- Porquê? - perguntou o Dr. Linhares.
- Lembra-se dos versos do Sá Carneiro, de que eu nunca gostei por serem menos respeitosos para os meus Clientes: "... A um morto nada se recusa / E eu quero por força ir de... luxo"?
- Não é de luxo... "Eu quero por força ir de burro".
- Sim eu sei. Mas diga-me lá se hoje um burro ajaezado à andaluza não é um artigo de luxo?
- Luxo e bem luxo!
- Pois verá então o meu querido Amigo, que todos, à boa maneira capitalista, preferirão ir de burro ajaezado à andaluza."
Afonso Botelho, Como o sr. Jacob enganou o socialismo, Lisboa: Edições do Templo, 1978. pp. 238-239.

DA POLÍTICA 1


"- Jacob! Mas eu não percebo nada de política! - lamentou-se ela antes de aceitar tal incumbência.
- Não se torna necessário, pelo menos por enquanto, Idinha.
- Jacob! Mas se me perguntam alguma coisa !?
- Tu perguntas antes deles, Idinha!
- Jacob! Mas que pergunto eu ?!
- Aquilo que te disser que perguntes, Idinha!
- Jacob! Mas... Está bem.
- Antes de mais, vou explicar-te o que é um partido: 1º Um partido não representa toda a política, mas uma parte da política, como a palavra o diz; 2º Dessa parte, que deve ser sensivelmente um décimo da política nacional, imaginando que há dez partidos legalizados, só te cabe metade, visto que vais actuar apenas na secção feminina; 3º Como os partidos devem querer imitar o governo, vão criar uma infinidade de comissões. Dividindo o vigésimo que te cabia pelo número de comissões, deve dar uma ridicularia de política.
- Vigésimo !?
- Não é desses, Idinha! Melhor será sintetizar o que tens de fazer de imediato na tua carreira política: averiguares quem é o malandro que me persegue lá dentro do Partido.
- Ah! Assim já percebo, Jacob!
- Idinha - disse com a solenidade das grandes ocasiões -, governar um país é como quem governa uma casa; fazer política num partido é como quem namora para casar: tudo se pode oferecer, mas nada se deve dar."
Afonso Botelho, Como o sr. Jacob enganou o socialismo, Lisboa: Edições do Templo, 1978, pp. 69-70.

Wednesday, May 11, 2011

CACHER


"Na Primavera, as torres a andorinha procura,
 Ruínas, onde ninguém vive, mas a vida perdura;
Em Abril, a toutinegra busca, ó minha bem-amada,
A floresta sombria e fresca, a espessa ramada,
O musgo e, nos ramos nodosos, os amenos tectos
Que com as folhagens dos bosques são cobertos.
Assim faz a ave. Nós procuramos na cidade
O beco deserto, um abrigo, a tranquilidade,
Os umbrais sem olhares oblíquos, traiçoeiros,
A rua de janelas fechadas; nos lameiros,
Buscamos os atalhos do pastor e do poeta;
Nos bosques, a clareira desconhecida e quieta
Onde o silêncio abafa um longínquo rumor.
A ave esconde seu ninho; nós escondemos o amor."


Victor Hugo, Poemas, trad. Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 39.

Tuesday, May 10, 2011

COSMOGONIA


"é uma fala reduzida, quase silêncio:

quando as primeiras nuvens habitaram o céu,
os animais reuniram-se nas margens dos rios
e esperaram até que a água reflectisse o rosto
da mãe fundamental que os iria ensinar
a sobreviver às chuvas

o mistério não pede que o expliques
o mistério pede que sejas misterioso"

Vasco Gato, Imo, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2003, p. 90.

Sunday, May 8, 2011

JETTATURA


"- Concordo - disse - que este preconceito exista, que está muito espalhado, que é sincero no seu receio do mau-olhado e que não procure brincar com a simplicidade de uma pobre estrangeira; mas dê-me alguma razão física desta ideia supersticiosa, porque deve julgar-me como um ser inteiramente destituído de poesia, sou muito incrédula: o fantástico, o misterioso, o oculto, o inexplicável têm pouca influência em mim.
- Não negará, miss Alicia - continuou o conde - o poder do olhar humano, que a luz do céu combina com o reflexo da alma; a pupila é uma lente que concentra os raios da vida e a electricidade intelectual que irradia por esta estreita abertura; o olhar de uma mulher não atravessa o coração mais duro? O olhar de um herói não magnetiza todo o Exército? O olhar do médico não domina o doido como um duche frio? O olhar de uma mãe não faz recuar os leões?
- Advoga a sua causa com eloquência - respondeu "miss" Ward, sacudindo a linda cabeça. - Perdoe-me se me ficam dúvidas.
- E o pássaro que, palpitando com horror e soltando pios lastimosos, desce do cimo de uma árvore, de onde poderia voar, para se lançar na goela de uma serpente que o fascina, obedece a um preconceito? Terá ouvido, nos ninhos, algumas comadres emplumadas a contarem histórias de jettatura?"
Theophile Gautier, "Jettatura", in A Morta Apaixonada, trad. Pedro Reis, Lisboa: Amigos do Livro Editores, s.d., pp. 154-155.

Saturday, May 7, 2011

FRAQUEZA DO HOMEM


"Entretanto, cheio de ardor, lancei-me só no tormentoso oceano do mundo, do qual não conhecia nem os portos de abrigo nem os escolhos. Visitei primeiro os povos que já não existem. Fui instalar-me sobre as ruínas de Roma e da Grécia, países de forte e engenhosa memória, onde os palácios jazem sepultados no pó e os mausoléus dos reis ocultos por silvedos. Força da natureza e fraqueza do homem: uma haste de erva desloca muitas vezes e perfura o mais duro mármore desses túmulos que todos esses mortos tão poderosos jamais lograram levantar!
Por vezes, uma alta coluna mantinha-se isolada numa área desértica, tal como um poderoso pensamento germina de quando em quando numa alma que os anos e a desdita devastaram.
Reflectia sobre esses monumentos em todas as circunstâncias e a todas as horas do dia. Ora era o mesmo Sol que vira lançar os fundamentos dessas cidades e que se escondia agora perante os meus olhos, majestosamente, entre as suas ruínas, ora era a Lua que erguendo-se entre duas urnas cinerárias meio arruinadas me patenteava a visão dos seus pálidos túmulos. Muitas vezes, aos revérberos desse astro que despertara os sonhos, julguei ver o génio das recordações sentado pensativamente a meu lado.
Cansei-me, porém, de cavar nestas sepulturas, onde muitas vezes só lograva remover poeira criminosa."
René de Chateaubriand, René, trad. Vergílio Godinho, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, pp. 96-97.

Friday, May 6, 2011

POSSÍVEL AUTO-RETRATO ?



"Foi bem melhor que o caso se passasse assim e que eu tenha guardado esta deliciosa recordação. Diz-se que não se deve voltar aos primeiros amores nem ir ver a rosa que se admirou na véspera.
E depois eu não sou já tão jovem nem tão bonito rapaz, para que as damas das tapeçarias desçam da parede em minha honra."
Theophile Gautier, "Onfala", in A Morta Apaixonada, trad. Pedro Reis, Lisboa: Amigos do Livro Editores, s.d., p. 57.

Thursday, May 5, 2011

À PORTA



"Qual é o fim de tudo? a vida ou a tumba?
A onda que nos sustém? ou a que nos afunda?
Qual a longínqua meta de tanto passo cruzado?
É o berço que embala o homem ou é o seu fado?
Seremos aqui na terra, nas alegrias, nos ais,
Reis predestinados ou simples presas fatais?

Ó Senhor, responde, responde-nos, ó Deus forte,
Se condenaste o homem apenas à sua sorte,
Se já no presépio o calvário se anuncia
E se os ninhos sedosos, dourados pela manhã fria,
Onde as crias vêm ao mundo por entre as flores,
São feitos para as aves ou para os seus predadores."
Victor Hugo, Poemas, trad. Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 21.

Wednesday, May 4, 2011

CLARIMUNDA


"Uma ligeira respiração misturou-se à minha respiração, e a boca de Clarimunda respondeu à paixão da minha; os seus olhos abriram-se e retomaram um pouco de brilho, deu um suspiro e descruzou os seus braços, passou-os por detrás do meu pescoço.
- Ah! És tu, Romualdo - disse numa voz langorosa e suave como as últimas vibrações de uma harpa - que fazes agora? Esperei-te tanto tempo que morri; mas agora nós somos noivos, poderei ver-te e ir a tua casa. Adeus Romualdo, adeus! Amo-te; é tudo o que queria dizer-te, e restituo-te a vida que tu despertaste em mim durante o minuto que durou o teu beijo; até breve.
A sua cabeça descaiu para trás, mas ela segurava-me sempre com os seus braços, como para me agarrar. Um turbilhão de ventos furiosos abriu a janela e entrou no quarto; a última pétala da rosa branca vacilou algum tempo, como uma folha na ponta do caule, depois desprendeu-se, voou pelo caixilho aberto, levando com ela a alma de Clarimunda. A lamparina apagou-se, e eu caí desmaiado sobre o peito da bela morta."
Theophile Gautier, A Morta Apaixonada, trad. Pedro Reis, Lisboa: Amigos do Livro Editores, s.d., p. 28.

Tuesday, May 3, 2011

TRANSFORMAR O QUE ESTÁ MORTO


(museu arqueológico, Istambul)

"- Mas é tão simples. Dá ordem de marcha para sul. Têm de obedecer. Tu és o Imperador.
- Teria sido o Imperador. Matavam-me primeiro.
- Mas a própria Cibele disse-nos que tens de completar a tua obra. Afinal és Alexandre.
Com estas palavras ferveu-me o sangue: - Não, não sou Alexandre. Alexandre morreu, sou Juliano. E estou quase a morrer neste maldito lugar...
- Não. Não! Os deuses...
- ... enganaram-nos! Os deuses riem-se de nós! Elevam-nos por desporto e derrubam-nos logo a seguir. Não há mais gratidão no céu do que na terra.
- Juliano...
- Dizes que eu nasci para grandes coisas. Muito bem, fi-las. Venci os Persas. Venci os Germanos. Salvei a Gália. Para quê? Para atrasar o fim deste mundo por um ano ou dois? Certamente que não vai durar mais tempo.
- Nasceste para restaurar o culto dos verdadeiros deuses.
- Então por que deixam que eu fracasse?
- Ainda és Imperador!
Apanhei uma mão-cheia de terra calcinada no chão da tenda. - Isto é tudo quanto me deixaram. Cinzas.
- Viverás...
- Estarei tão morto como Alexandre dentro de pouco tempo, mas quando me for levarei Roma comigo. Pois nada de bom virá a seguir. Os Godos e os galileus herdarão o Estado e, como abutres e vermes, transformarão o que está morto em ossos descarnados, até que não existe sequer a sombra dum deus sobre a terra."
Gore Vidal, Juliano, trad. Carlos Leite, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990, pp. 405-406.

Monday, May 2, 2011

NO TÚMULO DE ALEXANDRE


(museu arqueológico, Istambul)

"Tenho sempre uma biografia de Alexandre à beira da cama. É notável como muitos de nós temos usado os feitos deste jovem como padrão de medida de nós próprios. Júlio César chorou no túmulo de Alexandre porque, sendo já mais velho do que o jovem era quando morreu, ainda não tinha começado a conquista do mundo. Octávio Augusto abriu o túmulo de Alexandre e olhou durante muito tempo para a cara da múmia. O corpo estava bem conservado, conta-nos ele na sua autobiografia, afirmando que reconheceu Alexandre pelos seus retratos. Mirrado e escuro na morte, o rosto tinha tal expressão de fúria que, apesar de todos os séculos que separavam o político vivo do deus morto, o frio Octávio soube, pela primeita vez, o que era o medo e ordenou que o sarcófago fosse selado. Alguns anos mais tarde foi reaberto por Calígula, esse animal, que roubou o escudo e a couraça do túmulo e se vestiu como Alexandre, mas aí toda a semelhança acabava. Todos os seus predecessores desejavam igualar esse rapaz morto. Nenhum o conseguiu. Mas eu consegui-lo-ei!"
Gore Vidal, Juliano, trad. Carlos Leite, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990, p. 347.

Sunday, May 1, 2011

É ISSO, A FELICIDADE.


"CESÓNIA, apavorada

A felicidade é, portanto, essa liberdade espantosa?

CALÍGULA, apertando-lhe a pouco e pouco o pescoço

Podes ter a certeza, Cesónia. Sem ela, eu teria sido um homem satisfeito. Graças a ela conquistei a divina clarividência do solitário. (Exalta-se cada vez mais, estrangulando Cesónia a pouco e pouco, enquanto ela se abandona sem resistir, com as mãos abertas para a frente; e fala-lhe, debruçado sobre o ouvido.) Vivo, mato, exerço o poder delirante do destruidor, ao pé do qual o do criador parece uma macaquice. É isso ser feliz. É isso a felicidade, essa insuportável libertação, esse desprezo universal, o sangue, o ódio em meu redor, esse isolamento sem par do homem que põe toda a sua vida diante de si, a alegria desmedida do assassino impune, essa lógica implacável que rebenta as vidas humanas (ri), que te destrói, Cesónia, para perfazer, enfim, a solidão eterna que desejo."
Albert Camus, Calígula, trad. Raul de Carvalho, Lisboa: Livros do Brasil, s.d., p. 162.