Wednesday, November 29, 2017

ROSTO



"A ausência medida neste rosto humano, 
a boca desampara segredo de um desejo
que o olhar nega; noites rasuradas, 

aflitas e sem partilha, no pendor torpe
que as coisas desejaram, por fora do lugar
comporem outra ordem que tememos."


José Alberto Oliveira, O Que Vai Acontecer?, Lisboa: Assírio & Alvim, 1997, p. 68. 

Tuesday, November 28, 2017

CIMA


"Se a nossa constituição correspondesse exactamente ao nosso desejo, deixaria de haver desejo e é tão belo ter desejos. Porque é que um céu nunca está debaixo, mas sempre acima e nós, e porque é que nos alegramos em poder olhá-lo de baixo para cima?" 
Robert Walser, Histórias de imagens, trad. Pedro Sepúlveda, Lisboa: Cotovia, 2011, p. 68. 

Monday, November 27, 2017

NO BOSQUE DE DIAZ


"Num bosque pintado por Diaz, mãe e filho estavam quietos. Encontravam-se possivelmente a uma hora da aldeia. Povos estranhos falavam uma língua primitiva. A mãe disse ao filho: «Acho que não te devia agarrar assim às minhas saias. Como se eu estivesse aqui o tempo todo só para ti. Menino imprudente, o que é que pensas? Pequenote, queres fazer com que os grandes estejam dependentes de ti. Ó, que irreflectido. É necessário que algum pensamento ente na tua cabecinha adormecida e para que isso aconteça deixo-te agora sozinho. Irás parar imediatamente de te agarrar a mim com as tuas mãozinhas, meu ingrato, maçador. Tenho razões para estar zangado contigo e acho mesmo que estou. Chegou a hora de falarmos a sério, senão serás toda a vida uma criança desamparada, para sempre dependente da mãe. Para que descubras o amor verdadeiro por mim, tens de estar entregue a ti próprio, tens de te dirigir a pessoas estranhas e servi-las. Irás ouvir somente palavras duras, durante um ano, dois anos e mais ainda. Só aí irás perceber o que signifiquei para ti. Se ficar sempre junto a ti, serei para ti uma desconhecida. Pois é, meu menino, não te esforças, não sabes sequer o que é o esforço, nem sequer o que é o afecto, ó meu ingrato. Teres-me sempre por perto torna-te verdadeiro preguiçoso no pensamento. Depois não pensas sequer minuto e é isso mesmo que é a preguiça de pensar. Deves trabalhar, meu menino, e acabarás por ser bem-sucedido, se quiseres terás mesmo de querer. Tão certo como eu estar aqui contigo no bosque de Diaz é o facto de teres de ganhar a tua vida de forma amarga, para que não embruteças interiormente. Muitas crianças tornam-se brutas por terem sido mimadas, por nunca terem aprendido a pensar, a serem gratas. Tornam-se senhoras e senhores somente belos e finos exteriormente, permanecendo interiormente egoístas. Para te salvaguardar da crueldade, para que não te entregues a fins disparatados, trato-te de uma forma dura, pois de uma educação demasiado cuidadosa nascem pessoas inconscientes e descuidadas.» Quando o menino ouviu estas palavras, abriu os olhos assustados, tremia, e as próprias filhas do bosque de Diaz tremiam, enquanto os troncos imponentes permaneciam firmes. A folhagem do chão rumorejava:«O que é descrito neste breve ensaio é aparentemente muito simples, mas há tempos em que tudo o que é simples e de fácil compreensão permanece totalmente alheio à razão humana e por isso só é compreendido com grande dificuldade.» Assim rumorejava a folhagem. A mãe partira. O filho estava ali sozinho. Cabia-lhe agora entregar-se à tarefa de se orientar no mundo, que é também um bosque, aprender a não se ter a si em grande conta, eliminar da sua alma todo o tipo de presunção, para que assim agrade."

Robert Walser, Histórias de imagens, trad. Pedro Sepúlveda, Lisboa: Cotovia, 2011, pp. 55; 57. 

Sunday, November 26, 2017

QUE OS CRIOU


"Primeiramente procurei descobrir em geral os princípios ou primeiras causas de tudo o que há ou que pode haver no mundo, sem nada considerar para este efeito senão Deus, que o criou, sem os tirar senão de certos germes de verdade que estão naturalmente em nossas almas."

René Descartes, Discurso do Método, trad. Fernando Melro, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 84. 

Saturday, November 25, 2017

DIVINIZAR


"Tentar divinizar o homem é o primeiro sintoma da Amnésia. O homem é o contraste do divino. As múmias foram saqueadas e a esfinge refugiou-se-me no cérebro e espreita colossal plos meus olhos abertos. Ao menos salve-se a esfinge! As ameias desdentadas tisnaram-se no grito da última posição. E eu por ter a esfinge perto de mim fui mais um grão de areia a tapar a esfinge no deserto. Formulasse-se a abstenção total de dimensões prà forma humana que jamais a loucura ganharia aos repelões de regressionismo."

José de Almada Negreiros, K4 - o quadrado azul, Lisboa: A Bela E o Monstro Edições, 2011, p. 23. 

Friday, November 24, 2017

VALER-SE



"Fez-se então o ar mais denso, como cheio de um incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais, 
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»
Disse o corvo, «Nunca mais»."

Edgar Allan Poe, O Corvo, trad. Fernando Pessoa, Lisboa: Relógio D' Água, 2009, p. 28. 

Thursday, November 23, 2017

DISCURSO


"Ora, por estes mesmos dois meios podemos conhecer também a diferença entre os homens e os animais. É, de facto, coisa mui notável que não haja homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem exceptuar os próprios insensatos, que não sejam capazes de pôr em conjunto diversas palavras e de com elas compor um discurso pelo qual dêem a entender os seus pensamentos."

René Descartes, Discurso do Método, trad. Fernando Melro, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 75. 

Wednesday, November 22, 2017

ENGANO



"Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, quis supor não existir coisa alguma que fosse tal como eles a fazem imaginar."

René Descartes, Discurso do Método, trad. Fernando Melro, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 51. 

Tuesday, November 21, 2017

ESTÓRIA


"Há uma história da sua infância que conta como Poe, depois de ter sido levado a passear por perto de uma cabana de troncos rodeada de sepulturas, terá desatado a chorar e a gritar: «Eles vão começar a correr atrás de nós e arrastar-me para debaixo da terra!"

Peter Ackroyd, Poe - uma vida abreviada, trad. Alberto Simões, Lisboa: Edições Saída de Emergência, 2009, p. 24. 

Monday, November 20, 2017

ALICERCES


"E acreditei firmemente que, por este meio, conseguiria conduzir muito melhor a minha vida do que se a construísse sobre velhos alicerces e me apoiasse apenas nos princípios de que me convencera durante a juventude sem nunca ter analisado se eram verdadeiros."

René Descartes, Discurso do Método, trad. Fernando Melro, Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 31. 

Sunday, November 19, 2017

CONTENTO



"O Salomão Sáraga fez-nos uma sábia dissertação sobre a prosa rítmica dos livros hebraicos e declarou que, como semita puro, não pudera jamais fazer versos - mas comporia, para o caso memorável, um salmo penitenciário sobre a vaidade da pescada cozida e das caldeiradas humanas."

José Calvet de Magalhães, Eça de Queiroz - A Vida Privada, 2.ª ed., Lisboa: Ed. Bizâncio, 2000, p. 60. 

Saturday, November 18, 2017

A VIDA


"Que disparate, aborrecermo-nos por causa do que não existe, do que não sabemos se alguma vez existirá, tendo um presente tão fácil e tão bonito para gozarmos!"

Benito Pérez Galdós, Tristana, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Teorema, 1993, p. 100. 

Friday, November 17, 2017

PITORESCO



"Ruskin emite a ideia de que o belo pitoresco, uma vez que se deve ao acaso, não pode ser preservado. De resto, o que confere beleza a uma paisagem não é a conservação de uma arquitectura própria, mas a sua não restauração e o seu estado de degradação."

Orhan Pamuk, Istambul - Memórias de Uma Cidade, 2.ª ed., trad. Filipe Guerra, Lisboa: Editorial Presença, 2008, p. 262. 

Wednesday, November 15, 2017

EXIGÊNCIA


"Quem vai exigir do mundo
O que lhe falta e ele sonha?
Prà frente ou p'ra trás olhando, 
O dia dos dias falha.
Esforço e boa vontade andam
Atrás da vida, a arrastar, 
E o que há anos precisavas
Só hoje ele te quer dar."

J. W. Goethe, Poesia, trad. João Barrento, Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p. 160.

Tuesday, November 14, 2017

CONDIÇÕES


"Muita desgraça, muita pobreza, muita doença se alojava naquelas covas do Pago. E os deuses passeavam na crista das ondas, sorridentes, irradiantes de beleza, e os deuses esvoaçavam, despreocupados, pelo céu azul, satisfeitos por terem criado esta terra, por terem criado, das pedras lançadas por Deucalião e Pirra, os homens e as mulheres - e terem destinado todos, homens e mulheres, a serem impiedosamente atormentados no torno do sofrimento incessante."

I. M. Panajotopulos, Os Sete Adormecidos, trad. Maria do Carmo Lemos, Lisboa: Guimarães Editores, 1965, p. 81. 

Sunday, November 12, 2017

CAUDAL


"Professava os princípios mais erróneos e dissolutos, e reforçava-os com apreciações históricas em que o engenhoso não eliminava o sacrílego. Defendia que nas relações de homem e mulher não há outra lei senão a anarquia, se a anarquia é lei; que o soberano amor nunca deve sujeitar-se a outra coisa que não seja o seu próprio cânone intrínseco, e que as limitações externas da sua soberania não servem mais que para fazer decair a raça, para empobrecer o caudal sanguíneo da Humanidade."

Benito Pérez Galdós, Tristana, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Teorema, 1993, pp. 23-24. 

Saturday, November 11, 2017

AUSÊNCIA


"O mais célebre «homem bom» da nossa História é um «mestre particular das águas e das florestas», chamado Jean de la Fontaine. Assim o tinham apelidado os seus amigos Molière, Racine e Boileau. Segundo os cronistas, este nome fora-lhes ditado por uma mistura de ternura e irritação: era impossível manter uma conversa longa com ele. Subitamente, largava tudo e fechava a loja, desaparecia para terras longínquas, campestres e libertinas de onde nada, nem as músicas mais fortes, o faziam regressar. Esta ausência conferia-lhe um ar de tolo que desencadeava a troça. Relataram-nos mil ataques desta doença de aborrecimento a que chamam distração. Um dia, saiu de repente de um sonho onde o tinha levado uma palavrosa conferência de um teólogo sobre Santo Agostinho para perguntar ao orador se, francamente, não preferia Rabelais."

Érik Orsenna, O Jardineiro do Rei-Sol - Retrato de um Homem Feliz, trad. Alice Mattirolo e Cristina Castel-Branco, Lisboa: Livros Horizonte, 2003, pp. 105-106. 

Friday, November 10, 2017

CONVITE


"O seu rosto não convidava ao amor, embora fosse muito bela, elegante e sem qualquer defeito, pois a sentiam arrancada ao tempo pela raiz, tal como a mandrágora quando é tirada da terra; a semente que a gerara não era menos maléfica do que essa que acompanha o condenado à forca."


Valentine Penrose, Erzsébeth Báthory, a condessa sanguinária, trad. Helder Moura Pereira, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 15. 

Thursday, November 9, 2017

VAMPYR


"Sentindo-se defendida, pôde debruçar-se sobre o lago de todos os poderes: o sangue. Era uma vertigem que lhe chegava vinda de tempos imemoriais. Já estava contida no antigo brasão, com as mandíbulas do lobo e o dragão alado mordendo a própria cauda e encerrando-as num círculo, tudo fazendo murchar com o seu bafo."

Valentine Penrose, Erzsébeth Báthory, a condessa sanguinária, trad. Helder Moura Pereira, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 104. 

Tuesday, November 7, 2017

POETAS


"Lembro-me perfeitamente da primeira vez que Gertrude Stein me levou a visitar Guillaume Apollinaire. Era um pequeno apartamento de solteiro na Rue des Martyrs. A sala estava apinhada de jovens cavalheiros de baixa estatura. Quem são todos estes homúnculos?, perguntei a Fernande. São poetas, respondeu ela. Fiquei estarrecida. Nunca tinha visto poetas. Um poeta, sim, mas poetas não."


Gertrude Stein, A Autobiografia de Alice B. Toklas, trad. Margarida Periquito, Lisboa: Relógio d' Água, 2017, p. 69. 

Sunday, November 5, 2017

INABALÁVEIS


"Muito de admirar era também que certas casas arruinadas, solares antigos, paredes salitrosas de conventos, rebotalhos de barbacãs da guerra dos afonsinhos, permanecessem de pé, inabaláveis como velhinhos recursos e cobertos de musgo, cuja resistência a todas as doenças causa o espanto dos médicos e a mal rebuçada arrelia dos herdeiros."
João de Araújo Correia, " Milagre", in Contos Bárbaros, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 16. 

Saturday, November 4, 2017

INTIMATIVO



"A alusão era direta mas eu fingi-me desentendido:
- Os monumentos estão fechados - insisti, oferecendo ainda uma certa resistência. 
- Claro que estão fechados - concordou, desdenhoso. - Que idade tem o senhor?
- Vinte e sete. 
- Vinte e sete? Então que lhe importam, a si, os monumentos? Os túmulos também estão fechados, e isso certamente não lhe dá cuidado... Mas as ruas não estão fechadas... - Apontou para o céu: - A Lua também não está fechada... A vida, senhor, não encerra à hora das catedrais... Venha! - acrescentou, intimativo."


Domingos Monteiro, " A mais linda mulher de Espanha", in Histórias Castelhanas, Lisboa: Editorial Verbo, 1971, p. 60. 

Friday, November 3, 2017

INTERDITO


"Ia para lá vaguear, na época das férias, deitar uma olhadela a essas moradias estranhas onde luziam móveis. Casas? Canteira? Não se sabia bem. Tinha entrado uma vez num desses nichos, abandonado pelo proprietário. A luz do dia iluminava tenuamente o fundo da casa. As paredes eram frias e rugosas como os flancos de uma fossa e o silêncio era tenebroso. De noite devia ouvir-se o caminhar miúdo das toupeiras, dentro da terra, e talvez, de tempos a tempos, caíssem do teto vermes, retorcendo-se. Uma porta desconjuntada abria, nas traseiras, sobre um subterrâneo que emitia um sopro bolorento. Para lá, ficava sem dúvida o mundo interdito das galerias, dos corredores, das passagens multiplicadas até ao infinito do coração do rochedo. O grande medo começava ali, nessa soleira onde inchavam os cogumelos cinzentos. Por todo o lado a terra cheirava, cheirava... ao perfume de Madeleine."

Boileau-Narcejac, Vertigo - A Mulher que Viveu Duas Vezes, trad. Miguel Freitas da Costa, Alfragide: Asa, 2017, p. 40. 

Thursday, November 2, 2017

SAIR


"E se, de todo este vazio, bebido como uma taça de céu negro, sair algo que esse céu tivesse absorvido e nele tivesse desaparecido? Que coisa será essa e como será?"

Valentine Penrose, Erzsébeth Báthory, a condessa sanguinária, trad. Helder Moura Pereira, Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 253.