Thursday, June 1, 2023

INFÂNCIA




"Com o massacre da minha infância ficou
perdida a minha alegria primeira. Secou a 
raiz que havia de prender ao ventre de
todos os sorrisos. Tudo o que de feliz eu fui
depois disso, nasceu de artifícios inventados
à força. Na verdade, nunca saí daqui, da terra
onde a minha esperança se decompõe."


Virgínia do Carmo, Poemas simples para corações inteiros, Poética Edições, 2017, p. 39.

Wednesday, May 31, 2023

FORTUNA

 



"Lá no alto da montanha, inclinada por sobre a encosta ao invés de se erguer no planalto, encontra-se a casa da Fortuna, sendo que aquela parece estar sempre prestes a se desmoronar."

Guillaume de Lorris e Jean de Meun, O Romance da Rosa, trad. Lucília Mateus Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2001, IV, p. 101. 

Tuesday, May 30, 2023

OLHAVAM

 



"quando  aqueles que chegavam
olhavam os que partiam
os que partiam choravam
os que ficavam sorriam"


Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação, Lisboa: Assírio & Alvim/BI, 2008, p. 75. 

Sunday, May 28, 2023

GRANDEZA DE DEUS

 



"O mundo está pleno da grandeza de Deus.
    Seu fulgor inflama, qual lâmina fulgurante;
    Une-se numa grandeza, qual óleo derramado
Exangue. Porque não reconhecemos hoje o seu poder?
Gerações trilharam o mundo, trilharam, trilharam;
    E tudo secou com o comércio, tudo definhou na labuta;
    E traz em si a mácula do homem e do seu odor: o solo
Está exangue agora, e nem o nosso palmilhar pode sentir.

E apesar de tudo isto, a natureza persiste;
    Ali, no mais fundo das coisas, vive o mais querido frescor;
E embora as derradeiras luzes se extingam no Oeste
    Ó, a manhã, na orla leste tocada pelo sol, emerge -
Porque o Espírito Santo por sobre o arco
    Do mundo cisma com seu cálido peito e com ah! Brilhantes asas."



Gerard Manley Hopkins, Poesia e Prosa Escolhidas, trad. Mário Avelar, Prior Velho: Paulinas Editora, 2016, p. 35. 

ANIVERSÁRIOS

 



"Atravessei, aspergida de luz, o braço de mar
que divide tudo o que existe. De um lado, eu,
do outro, o fim da terra. De onda em onda me fiz
tão pouco e depurada ancorei nas travessas cruas
desse extremo insular.

Conheci nesse dia a respiração ofegante das árvores.
E lágrimas de flor.

O choro do vento sacrificado a derramar-se,
avulso, lembrou-me a agonia de uma borboleta.

Sei que não há pássaros verdes no fim do mundo.
Mas nunca um lugar foi tanto céu."


Virgínia do Carmo, A menina que aprendeu a matar centopeias e outros poemas, Lisboa: Poética Edições, 2023, p. 52. 

Saturday, May 27, 2023

PERMANÊNCIA

 



"Nunca antes me sentira tão feliz. É certo que é possível uma pessoa curar-se, bastando-lhe para isso beijar uma flor tão encantadora e perfumada. Nunca me sentirei tão amargurado ao ponto de a lembrança de uma coisa destas não me encher de alegria e de felicidade. Ainda assim, tenho passado por muitas atribulações e conhecido muitas noites sem dormir desde o momento em que beijei aquela rosa. O mar nunca se mostrará tão calmo ao ponto de não ser perturbado por um pouco de vento. Quanto ao Amor, trata-se de uma coisa muito inconstante, que por vezes se acalma, por vezes provoca dor. A verdade é que o Amor raramente permanece inalterável."


Guillaume de Lorris e Jean de Meun, O Romance da Rosa, trad. Lucília Mateus Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2001, III, pp. 59-60. 

Friday, May 26, 2023

SOB PÁLPEBRAS

 



"Às vezes a minha casa é apenas o espaço ínfimo
Entre o que sinto e o que não sei. 

Às vezes moro sob as pálpebras. 

Às vezes durmo sobre sombras
molhadas de mar. 

Às vezes é aí a minha casa."


Virgínia do Carmo, A menina que aprendeu a matar centopeias e outros poemas, Lisboa: Poética Edições, 2023, p. 34. 

Thursday, May 25, 2023

ALEGRIA (para a memória de Tina Turner)

 


"A Alegria cantava bem e de forma agradável, e ninguém teria sido capaz de fazer com que os refrões soassem melhor ou com maior clareza. Cantar era uma actividade que lhe assentava às mil maravilhas, já que a sua voz era bem límpida e pura, e ela estava longe de se mostrar desajeitada, antes sabendo bem como mover o corpo enquanto dançava, bem como bater os pés e mostrar-se cheia de graça. Sempre e em toda a parte, era seu hábito ser a primeira a cantar, já que o canto era a sua ocupação favorita."

 

Guillaume de Lorris e Jean de Meun, O Romance da Rosa, trad. Lucília Mateus Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2001, II, p. 19. 

Wednesday, May 24, 2023

O TEMPO

 


"O tempo, que não se pode deter e que avança sempre, sem nunca se virar, à semelhança da água que desce da montanha e que não deixa uma só gota que seja percorrer o caminho inverso. O tempo, que a tudo resiste, até mesmo ao ferro e às substâncias mais duras, pois tudo corrompe e devora. O tempo, que tudo muda, que tudo alimenta e faz crescer, mas que também tudo desgasta e apodrece. O tempo, que fez os nossos antepassados envelhecer, que procede da mesma maneira com os reis e os imperadores, e que acabará por nos envelhecer a todos, a menos que a morte nos reclame primeiro."

Guillaume de Lorris e Jean de Meun, O Romance da Rosa, trad. Lucília Mateus Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2001, I, p. 14. 

Tuesday, May 23, 2023

QUIETAÇÃO

 


"Devora-nos uma impaciência insuportável; tudo o que ouvimos nos aflige; as conversas sobre assuntos indiferentes, irritam-nos; se nos tentam alentar com esperanças, revoltamo-nos contra elas; se procuram preparar-nos para um desengano, prevenindo-o, repelimos com energia a ideia dele. O silêncio não nos é mais agradável; as apreensões ganham corpo no meio dele; falam dos pressentimentos do mal. Tentamos sorrir, gela-se-nos o sorriso nos lábios. A quietação é-nos tão intolerante como o movimento. Ansiamos sair da incerteza, e de cada indivíduo que chega, trememos de saber a nova fatal. Vai mais longe o efeito moral deste estado de espírito; chegamos quase a querer mal a todos quantos estão assistindo naquele momento à decisão lenta da sorte. O nosso egoísmo, exacerbado em tais momentos,  irrita-se com a ideia de que os nossos amigos tenham coração para assistir àquilo; e contudo não lhes perdoaríamos se se retirassem. Sensações daqueles esgotam mais vitalidade, em cada instante, do que anos de vida isenta delas."

Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, Porto: Livraria Simões Lopes, 1948, p. 530. 

Monday, May 22, 2023

TUDO

 


"Tudo 
por causa da minha Fé
na minha sabedoria
de andar em pé!...

Tudo
por eu ser um pobre vivo
a eternizar 
o mesmo Homem de sempre
com raízes
que ninguém pode arrancar...

O Homem de carne e osso
que tu não mudas e eu não mudo!
(Satanaz diz lá do inferno:
- Até onde a corda der, 
hás-de ser tudo!
E sou tudo, 
menos traidor à minha condição...)

Tudo
por ser neste Paraíso
o mesmo Adão!

Tudo
porque disse que fui eu 
a ovelha que se perdeu
e só então se encontrou!
Tudo
por ser a parte do Pedro
que no transe da tua divindade
te negou!...

Tudo
porque meto a minha mão
no lado do coração
e tiro terra de mim como dum poço
sem fundo!
Tudo
porque disse que o teu céu
só era meu
neste mundo!

Tudo 
por causa do meu sonho verdadeiro
de ser mais feliz assim:
carregado de pecados
e de mim..."


Miguel Torga, O Outro Livro de Job, 5.ª ed., Coimbra, 1986, pp. 24-27. 

Sunday, May 21, 2023

PINTAR OS DIAS

 



"Ao cabo de mil temores
marejadas de incertezas e cansaços, 
as mãos deixaram cair
uma pequena mancha
redonda e alambre na tela
para que se acomodasse no centro da noite.
De súbito como se milagre
acenderam-se as margens do rio. 
E o luar riscou o negro da água
com inflamados retoques de prata. 

Fosse possível pintar assim os dias."



Lídia Borges, Que farei com este azul que me beija, Braga: Poética Edições, 2021, p. 94.  

ASCENSÃO

 


"Quem quiser ir receber o ensinamento de Deus, deverá ir até essa montanha: aí, quer Deus consumar (o ensinamento) no dia da eternidade, no qual Ele é uma plena luz. Aquilo que eu reconheço em Deus é a luz; mas aquilo que toca a criatura é a noite. (Só) Aquilo que se reconhece deve ser luz."

 

Mestre Eckhart, Tratados e Sermões, Sermão 5, trad. Fr. José Luís de Almeida Monteiro, Prior Velho: Paulinas Editora, 2009, p. 226. 

Friday, May 19, 2023

ESTILO (para a memória de Helmut Berger)

 



"Calou-se. Quase imóvel.  
- Olha antes para ali, para a piroga - prosseguiu, apontando-me através do vidro da janelinha, que os nossos bafos começavam a embaciar, uma silhueta longa e esquelética, encostada à parede oposta à da estante dos frutos exóticos. - Olha para ali e admira com quanta honestidade e coragem moral o barco soube tirar da sua perda total de funções todas as consequências que devia. Também as coisas morrem, meu caro. E então, se também elas têm de morrer, paciência, o melhor é deixá-las. E  sobretudo tem muito mais estilo, não te parece?"


Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, trad. Egito Gonçalves, Lisboa: Quetzal, 2010, p. 129. 

Thursday, May 18, 2023

TERRA PROMETIDA

 



"Sofres e choras? Vem comigo! Vou mostrar-te
O caminho que leva à Cidade do Sonho...
De tão alta que está, vê-se de toda a parte,
Mas o íngreme trajecto é florido e risonho.

Vai por entre rosais, sinuoso e macio,
Como o caminho chão duma aldeia ao luar,
Todo branco a luzir numa noite de Estio,
Sob o intenso clamor dos ralos a cantar.

Se o teu ânimo sofre amarguras na vida,
Deves empreender essa jornada louca;
O Sonho é para nós a Terra Prometida:
Em beijos o mana chove na nossa boca...

Visto dessa eminência, o mundo e as suas sombras,
Tingem-se no esplendor dum perpétuo arrebol;
O mais estéril chão tapeta-se de alfombras.
Não há nuvens no céu, nunca se põe o Sol.

Nela mora encantada a Ventura perfeita
Que no mundo jamais nos é dado sentir...
E a um beijo só colhido em seus lábios de Eleita,
A própria Dor começa a cantar e a sorrir!

Que importa o despertar? Esse instante divino
Como recordação indelével persiste;
E neste amargo exílio, através do destino,
Ventura sem pesar só na memória existe..."


António Feijó, Sol de Inverno, Lisboa: IN-CM, 1981, p. 60.

Wednesday, May 17, 2023

CIDADELA

 



"Vede e reparai bem! Aquela «cidadela» de que vos falo e na qual penso, é tão um e tão simples na alma tão superior a todos os modos, que aquela nobre potência da qual falei, não é digna de lançar um único olhar que seja nesta cidadela, e também a outra potência de que falei, onde Deus arde e incandesce com todo o seu reino e com toda a sua delícia, nunca ousará olhar lá para dentro; esta cidadela é tão um e tão simples, e tão elevada acima de todos os modos e de todas as potências é este Um único, que nunca uma potência ou um modo consegue espreitar para dentro dela, nem Deus, Ele mesmo."

Mestre Eckhart, Tratados e Sermões, Sermão 1, trad. Fr. José Luís de Almeida Monteiro, Prior Velho: Paulinas Editora, 2009, p. 193. 

Tuesday, May 16, 2023

ARQUÉTIPO

 



"O anjo supremo e a alma e o mosquito têm um arquétipo igual em Deus. Deus não é ser nem bondade. A bondade adere ao ser e não alcança mais longe do que o ser; pois se não houvesse ser, também não haveria qualquer bondade, e o ser é ainda mais puro do que a bondade. Deus não é bom, nem melhor, nem o melhor de todos. Quem afirmou que Deus é bom, fez-lhe tanta injustiça, como se dissesse que o Sol era negro."

Mestre Eckhart, Tratados e Sermões, Sermão 15, trad. Fr. José Luís de Almeida Monteiro, Prior Velho: Paulinas Editora, 2009, p. 298. 

Sunday, May 14, 2023

A CORAGEM



"O conselheiro interrompeu-o. 
- Sabe a coragem mais admirável? a de que menos exemplos existem? É aquela de que nos dá uma eloquente mostra a história do aldeão do Danúbio. Sair um homem de um canto retirado da província, um pouco montanhês, e, escudado só da sua boa fé, achar-se de repente no meio de um círculo luzido, ilustrado, elegante, novo para ele, e ousar repetir só aquelas falas rudes que tanto deliciavam o auditório da sua terra; ver o sorriso nos homens, que a seu pesar respeita, e poder ressalvar as suas crenças daqueles sorrisos; sentir o ridículo a seu lado, e ousar fitá-lo; ferirem-lhe os ouvidos, a cada passo, as vozes sedutoras da moral elegante e fácil que hoje domina, e conservar-se fiel à austera e rude moral que lhe falava entre o rumorejar das folhas da sua aldeia nas longas horas de vigília e de estudo, que lá teve; cair embora, mas cair fiel à consciência, como um leal cavaleiro da Idade Média caía pela dama de quem trazia a divisa; é uma espécie de luta, para que não abundam lidadores. E nem sempre se deve lançar o labéu de traidores aos que mentem à sua antiga profissão de fé. A maioria cede com boas intenções. O perigo está em chegar a persuadir-se de que as suas convicções eram sonhos, em perder o amor às utopias. Eu confesso que só quando aqui estou é que sinto avivar, debilmente, o amor que noutro tempo lhes tive."


Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, Porto: Livraria Simões Lopes, 1948, pp. 221-222. 

Saturday, May 13, 2023

OPERAR


 "Cada coisa opera no (seu) ser; nenhuma coisa pode operar para além do seu ser. O fogo pode operar na madeira como nenhures. Deus opera acima do ser na imensidão, onde Ele se pode mover; Ele opera no não-ser. Ainda antes de haver ser, já Deus operava; Ele operava ser, quando ainda não havia o ser. Mestres de entendimento rude, dizem, que Deus é um ser puro; Ele está tão acima do ser, como o anjo supremo está acima de um mosquito. Quando eu designo Deus como um ser, estarei a dizer algo igualmente tão incorrecto, como se dissesse que o Sol era branco ou negro. Deus não é uma coisa nem a outra." 


Mestre Eckhart, Tratados e Sermões, Sermão 15, trad. Fr. José Luís de Almeida Monteiro, Prior Velho: Paulinas Editora, 2009, p. 297. 

Friday, May 12, 2023

PERMANECENTE


"Quando nós tomamos Deus no ser, então tomamo-lo  no seu pórtico, porque o ser é o seu pórtico no qual Ele habita. Mas onde então está Ele no seu templo, no qual resplandece como sagrado? O intelecto é o templo de Deus. Nenhures habita Deus mais autenticamente do que no seu templo, o intelecto, como disse aquele outro Mestre: Deus é um intelecto que vive unicamente no conhecimento de si mesmo, permanecente apenas em si mesmo, aí, onde nunca nada o tocou; pois aí Ele é sozinho no seu sossego, Deus conhece-se a si mesmo no seu conhecer-se a si mesmo."

Mestre Eckhart, Tratados e Sermões, Sermão 15, trad. Fr. José Luís de Almeida Monteiro, Prior Velho: Paulinas Editora, 2009, p. 299. 

Thursday, May 11, 2023

ESSÊNCIA

 



"A eternidade  não passa de uma abstracção construída a partir do presente real. A infinitude não passa de um grande reservatório de memória ou de aspiração - construído pelo homem. A hora trémula e fugaz do presente - eis a essência do Tempo. A imanência é isto. A essência do universo é a pulsação do Eu carnal, misterioso e palpável. É sempre assim."


D. H. Lawrence, Gencianas Bávaras e outros poemas, versão de João Almeida Flor, Lisboa: Na Regra do Jogo, 1983, p. 17. 

Wednesday, May 10, 2023

JORNADEAR

 



"O leitor provavelmente há de ter jorneado alguma vez; sabe portanto que o grato e quase voluptuoso alvoroço, com que se concebe e planiza qualquer projecto de viagem, assim como a suave recordação que dela guardamos depois, são coisas de incomparavelmente muito maiores delícias do que as impressões experimentadas no próprio momento de nos vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens, e mormente nas clássicas estalagens das nossas províncias. As pequenas impertinências, em que se não pensa antes, que se esquecem depois, ou que a saudade consegue até doirar e poetizar a seu modo; esses microscópicos martírios, que de longe não avultam, actuam-nos, na ocasião, a ponto de nos inabilitar para o gozo do que é realmente belo. A dureza do colchão em que se dorme, de albardão ou selim sobre que se monta, o tempero ou destempero do heteróclito cozinhado com que se enche o estômago, a lama que nos encrusta até os cabelos, o pó que se nos insinua até os pulmões, o frio que nos inteiriça os membros, o sol que nos congestiona o cérebro, tudo então nos desafina o espírito, que trazíamos na tensão necessária para vibrar perante as maravilhas da natureza ou da arte."


Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, Porto: Livraria Simões Lopes, 1948, pp. 12-13. 

Tuesday, May 9, 2023

A PRÓPRIA (para a memória de Rita Lee)




"Não sou idêntica a mim mesmo
Sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo ponto de vista
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante"


Ana Cristina César, Um Beijo que Tivesse um Blue - Antologia Poética, selec. e pref. Joana Matos Frias, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 31.

Monday, May 8, 2023

NOS ALOJAMENTOS DAS ALMAS PERECÍVEIS

 



"Nos alojamentos das almas perecíveis
Ele tem a sua parte. Deus, que distinguiu
Dia do Juízo e morte - cujo pensamento sem data deve mapear
Todo o tempo num só instante e aproximar desígnios distantes entre si,
Sabe que lugar seu é; mas, para nós, os rolos
Estão confinados ao escrutínio da arte.
Algo adivinhamos ou sabemos: alguns espíritos impulsionados
São para as alturas e logo ganham suas auréolas."


Gerard Manley Hopkins, Poesia e Prosa Escolhidas, trad. Mário Avelar, Prior Velho: Paulinas Editora, 2016, p. 19.

Sunday, May 7, 2023

MÃES

 



"O deserto alongava-se até à idade
De uma geração
Nós éramos a única planta das areias
A partida contínua e adiada. Quantos
E quantos passos não estivemos descalços
Procurando nos pés gretados a nesga
Para o regresso
As crianças perguntavam o que era a nata e o leite
Perguntavam se as mães eram semelhantes aos favos
As mulheres calculavam em pensamento
A altura que teriam os filhos entre as árvores
Quando chegassem à terra distante do mel"


Daniel Faria, Poesia, ed. Vera Vouga, 2.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 204.

Thursday, May 4, 2023

A ANGÚSTIA HUMANA

 



"Irmã Claire: À morte... É difícil fazer-se a representação da morte perante o Senhor da Vida e da Morte.

Irmã Marthe: O Cristo no Jardim das Oliveiras já não era senhor de nada. A angústia humana nunca tinha subido até tão alto, nem há-de voltar a atingir a mesma altura. Cobria tudo o que havia n'Ele, excepto essa ponta da alma onde a divina tentação se tinha consumado.

Irmã Claire: Ele sentiu medo da morte. E tantos mártires que a não receavam..."



Georges Bernanos, Diálogos das Carmelitas, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2019, p. 113.

Tuesday, May 2, 2023

ESTA TERRA

 


"Deste modo, durante muito tempo julguei que esta terra onde não nasci fosse tudo o que havia no mundo. Agora que vi realmente o mundo e que sei que é formado por tantas pequenas aldeias, não sei se em rapaz me enganava muito."


Cesare Pavese, A Lua e as Fogueiras, trad. Manuel de Seabra, Porto: Público Comunicação Social, 2002, p. 8. 

Monday, May 1, 2023

MEU CÉU

 



"Minhas orações devem encontrar um céu de bronze
E fracassar e dispersarem-se por aí.
Impuras e aparentemente imperdoáveis
Às minhas orações dificilmente chamo orar.
Não consigo fazer chegar mais alto meu coração;
Mais alto não consigo conquistar uma entrada.
Embora desvende precedentes do amor,
Não deixo de sentir o longo sucesso do pecado.

Meu céu é de bronze e de ferro minha terra:
Sim, ferro mistura-se com meu barro,
Tão endurecido está nesta aridez
Que a oração não consegue dissipar.
Nem lágrimas, nem lágrimas este barro rude
Poderia moldar, se lágrimas houvesse.
Uma batalha de meus lábios verdade seja,
Batalhando com Deus, é agora a minha oração."


Gerard Manley Hopkins, Poesia e Prosa Escolhidas, trad. Mário Avelar, Prior Velho: Paulinas Editora, 2016, p. 18.

Sunday, April 30, 2023

ANIVERSÁRIO

 




"Voar é fácil

basta que as mãos
estejam leves
e o coração
branco e alado

basta ter mergulhado
na água da brancura


que brota da fonte
da ternura
universal"



Alexandra Soares Rodrigues, (no lugar do título há um vazio), Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2023, p. 133.

Saturday, April 29, 2023

A MESMA JANELA

 



"O teu acordar é antigo e sempre igual.
A mesma janela ao fundo - abertura
imperfeita para o medo, uma selha
de sonhos secos sobre a mesa,
um chão frio onde é sempre Novembro.

Crês que tudo é pior um dia depois,
cada noite um golpe na luz que foste.
Envelheces do lado de dentro, tens
uma idade para além dos anos.

O teu acordar é antigo, sempre igual
e incompleto."


Virgínia do Carmo, A menina que aprendeu a matar centopeias e outros poemas, Lisboa: Poética Edições, 2023, p. 46.

Friday, April 28, 2023

MEMENTO

 




"A minha alegria é de vidro. 
Frágil como a pele do nevoeiro, 
Um orvalho efémero sem memória.

É trans.lúcida, a minha alegria, 
átomo cristalino inacabado, 
uma brisa distraída que passou."


Virgínia do Carmo, A menina que aprendeu a matar centopeias e outros poemas, Lisboa: Poética Edições, 2023, p. 21. 

Wednesday, April 26, 2023

A VIDA FELIZ

 



"A vida feliz é pois uma vida conforme à sua própria natureza; não podendo ser alcançada, a menos que a alma esteja sã, em posse contínua da saúde, e que seja depois corajosa e enérgica, bela e paciente, adaptada às circunstâncias, cuidadosa do seu corpo e daquilo que lhes diz respeito, sem no entanto ficar inquieta, diligente em relação aos outros meios de embelezar a vida sem admirar nenhum deles, pronta a fazer uso dos presentes da sorte, mas não a sujeitar-se a eles. Compreenderás, mesmo que nada acrescente, que daí resultam a tranquilidade para sempre e a liberdade, pois ficamos livres daquilo que nos agita e assusta. Em vez de prazeres, em vez de alegrias ténues, frágeis e sujeitas a desonra, nasce uma imensa alegria, inabalável e constante; existe então na alma apaziguamento, acordo e grandeza aliada à doçura; pois a crueldade vem sempre da fraqueza."


Séneca, Da Vida Feliz, trad. João Forte, Lisboa: Relógio D' Água, 1994, pp. 44-45. 

Tuesday, April 25, 2023

A REVOLTA


 

"A Superiora - Os santos não se empertigam contra as tentações, não se revoltam contra si próprios, a revolta é sempre coisa do diabo; e sobretudo nunca vos desprezeis! É muito difícil desprezarmo-nos sem ofender Deus dentro de nós. Também devemos neste ponto impedir-nos de tomar à letra certas frases dos santos; o desprezo por nós próprios conduzir-vos-á directamente ao desespero; lembrai-vos destas palavras, apesar de vos parecerem obscuras. E para tudo resumir numa palavra que nunca nos acode aos lábios, apesar de os nossos corações não terem renegado a honra, seja em que conjuntura for, pensai que ela está à guarda de Deus."


Georges Bernanos, Diálogos das Carmelitas, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2019, p. 54. 

Sunday, April 23, 2023

A VIDA HERÓICA

 



"Blanche: Vossa Reverência ordena-me que fale com a maior das franquezas?

A Superiora: Sim.

Blanche: Pois bem, a atracção por uma vida heróica.

A Superiora: A atracção por uma vida heróica ou por uma certa maneira de viver que vos parece capaz - com muita falta de razão - de tornar mais fácil o heroísmo ou, por assim dizer, pô-lo à mão de semear?...

Blanche: Perdoai-me, minha madre reverenda, mas nunca fiz semelhantes cálculos.

A Superiora: Os mais perigosos dos nossos cálculos são aqueles a que chamamos ilusões...

Blanche: Posso ter ilusões. E mais não peço do que me sejam tiradas."


Georges Bernanos, Diálogos das Carmelitas, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2019, p. 37.

Saturday, April 22, 2023

A VIDA

 



"- Fazes-me pena, Mariquinhas... A vida não é, como pensas, essa disciplina dura, austera, que transforma os homens em máquinas de pensar e de sofrer... A vida não é um castigo, um degredo; é infinitamente mais bela, mais simples, infinitamente melhor..."


Fernanda de Castro, Maria da Lua, 5.ª ed., Lisboa: Editorial Verbo, 1984, pp. 95-96.

Friday, April 21, 2023

TECER O CORAÇÃO


 
"Acordar, ser na manhã de abril
a brancura desta cerejeira;
arder das folhas à raiz,
dar versos ou florir desta maneira.

Abrir os braços, acolher no ramos
o vento, a luz, ou o que quer que seja;
sentir o tempo, fibra a fibra,
a tecer o coração de uma cereja."


Eugénio de Andrade, "As mãos e os frutos", in Poesia, 2ª ed. revista. Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 28.

Thursday, April 20, 2023

FRUTA

 




"Fora à sobremesa de um almoço igual a todos que, pela primeira vez, haviam sentido oscilar os alicerces da casa. A avó, que até então se conservara lúcida apesar dos seus noventa anos, passara a manhã a divagar, a trocar os nomes, a perguntar por uma prima que morrera havia trinta anos. Nesse dia, à sobremesa, depois de lhe terem servido a geleia, quisera provar um alperche da quinta. Estendera a mão e apalpara, não os frutos, mas as rosas, escolhendo uma, a maior, a mais vermelha. Aterrados, os filhos, a neta, os bisnetos, as criadas, viram-na pôr a rosa no prato, levar à boca uma garfada de pétalas, e não ousaram fazer o gesto, dizer a palavra que a colocaria do outro lado da vida, na antecâmara da morte. Sentiram no mais fundo de si próprios que principiara nesse momento a desagregar-se, a dissolver-se no húmus do tempo, a raiz-mãe que, durante quase um século, alimentara, com a sua robusta seiva, as flores e os frutos de três gerações.
Fora então que Maria da Lua se levantara e lhe dissera com uma voz calma e sem timbre:
- Esse, não, avó, ainda não está maduro.
A avó olhara a rosa desfolhada e concordara:
- Tens razão, a fruta verde faz mal."


Fernanda de Castro, Maria da Lua, 5.ª ed., Lisboa: Editorial Verbo, 1984, p. 30

Wednesday, April 19, 2023

VIAGEM

 




"Xavier detestava todos os versos. Mas agora relembrava alguns, ao mesmo tempo que recordava a voz querida de quem os dizia. Era preciso repeti-los sem omissões, para poder achar as inflexões ou o timbre surdo e monótono da voz do irmão. Por isso, nesta mesma noite, junto duma janela aberta ao lado da ribeira invisível, tal como podia ter encontrado uma nota ou um acorde, Xavier ia recitando versos em tons diferentes:
                                                    «Calma natureza, como tu sabes esquecer!»"


François Mauriac, O Mistério dos Frontenac, trad. Luís Forjaz Trigueiros, Lisboa: Editorial Verbo, 1971, p. 26.

Monday, April 17, 2023

RESTITUIR


 
"Deus deu-me o ser
para que eu lho restitua.
Como uma daquelas provas
que parecem armadilhas
de que falam os contos
e as histórias de iniciação.
Se eu aceitar este dom,
é mau e fatal;
a sua virtude
manifesta-se na recusa.
Deus deixa-me existir
fora dele.
Compete-me recusar
tal autorização.

A humildade,
Rainha das virtudes,
é recusar existir
fora de Deus."


Simone Weil, À porta do farol faz escuro, trad. Manuel Simões, Braga: Editorial A.O., 1991, p. 40.

Sunday, April 16, 2023

A ATENÇÃO

 


"Não é apenas o amor a Deus que tem por substância a atenção. O amor ao próximo, que sabemos ser o mesmo amor, é feito da mesma substância. Os infelizes não precisam de outra coisa neste mundo que de homens capazes de lhes prestarem atenção. A capacidade de prestar atenção a um infeliz é coisa muito rara, muito difícil: é quase um milagre; é um milagre. Quase todos os que crêem ter esta capacidade não a têm. O calor, o ímpeto do coração, a piedade, não são suficientes."


Simone Weil, Espera de Deus, trad. Manuel Maria Barreiros, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 105. 

Friday, April 14, 2023

ALONGADO


" - Que fazia Jacob, neto  do gram patriarca Abraom, quando viu a escada alçada da terra atá o céu e os anjos que subiam per ela e deciam, e o Senhor Deus encostado à escada? Onde estava entom este muito grande patriarca Jacob? Per ventura estava em algua cidade ou em algua rica câmara? Certo nom, mas era nom tam solamente alongado das cidades, mas ainda alongado de casa, jazendo em um lugar ermo e descoberto e sua cabeça entre as pedras."


Anónimo do século XV, Bosco deleitoso, capt. LXIV, ed. José Adriano de Freitas Carvalho, Luís de Sá Fardilha, Maria de Lurdes Correia Fernandes, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2022, p. 117. 

Thursday, April 13, 2023

DA QUIETAÇÃO



"Dos males, que passei no povoado,
Fugi para esta serra erma e deserta,
Vendo que quem servir seu Deus acerta,
Certo tem tudo o mais ter acertado.

E para mais pureza sou forçado
Mostrar a paciência descoberta,
Que quando o tentador se desconcerta,
O paciente fica concertado.

Passou a furiosa tempestade,
Ouve-se a voz da rola em nossa terra,
Soando com maior suavidade.

Cobriu-se d'alvas flores toda a Serra,
A minha alma de doce saudade,
Em paz me faz amor divina guerra."


Frei Agostinho da Cruz, Poesia Selecta, ed. José Cândido de Oliveira Martins, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2021, p. 68.

Wednesday, April 12, 2023

ERMO



"Mas torno-me falar da vida solitária, que é vida celestrial e angélica em toda guisa, se o estado dela é de dentro, em guisa que o homem entre dentro em no apartamento e em o ermo e em o trespasse, ca as lapas do deserto e os outeiros e os boscos pera todos estam igualmente sem embargo, ca nengum nom aperta os que entram, nem lança fora os que entrarom, ca em no deserto nom há porteiro nem guardador."


Anónimo do século XV, Bosco deleitoso, capt. XLII, ed. José Adriano de Freitas Carvalho, Luís de Sá Fardilha, Maria de Lurdes Correia Fernandes, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2022, p.72.

Tuesday, April 11, 2023

ESCADA

 



"Portanto farei uma escada no coração.
E pelos degraus subirei da minha casa
Até bater com o pensamento no altíssimo.
Apagarei os passos e o cérebro como um rasto no deserto
Sempre atento como a águia quando fixa o sol
Sem pestanejar.
Farei portanto a escada no deserto para fixar
A luz.
Da minha casa subirei sem palavras
Em silêncio, portanto, pisando o coração."



Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 217.

Monday, April 10, 2023

ANIVERSÁRIO

 



"A criança fecha os olhos no muro
Conta o tempo que os amigos demoram
A transformar-se

Fecha os olhos no interior dos números

Olha para dentro e em redor e encontra-se
A si mesma
A criança pergunta se há-de ir ter consigo

Ela quer encontrar os amigos, ela quer
Que lhe respondam. Ela calcula a voz alta
A altura do muro, a progressão do silêncio"


Daniel Faria, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 292. 

Sunday, April 9, 2023

O RESSUSCITADO

 



"Ele não conseguiu completamente
recusar-lhe ou negar-lhe com vigor
que ela de seu amor falasse;
e ela caiu junto à cruz revestida somente
da sua dor, toda cheia do impasse
das maiores pedras do seu amor.

Mas quando ela veio até ao túmulo, então,
para o ungir, de lágrimas a correr,
ele ressuscitara e tinha com ela a ver,
para que mais bem-aventurado dissesse: Não -

Ela só o entendeu onde habitava,
como ele, fortalecido pela própria morte,
por fim recusou o alívio que os óleos dava
e o pressentimento do toque,

para nela formar a que ama
sem para o amado se inclinar,
porque ela, que enormes tempestades vieram arrebatar,
à voz dele se sobrepõe já sem a mesma chama."



Rainer Maria Rilke, Novos Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2023, p. 171.

Saturday, April 8, 2023

DO QUE ESPERA

 



"Que contemplando o fruto, do que espera
Na doce Primavera colhe flores
De tão diversas cores tão formosas.

Que lírios e que rosas de contino
Semeia amor divino nesta serra,
Onde tanto se encerra e se derrama!

Amor acende, infama, amor tem tudo:
Seta, lança, escudo: dá vida e mata,
Cativa, desbarata, solta e prende.

Amor livra e defende, planta e rega;
Amor freta e navega, amor segura;
Amor cria brandura na dureza;

E converte a tristeza em alegria;
A noite escura em dia fresco e claro.
Amor é meu amparo e meu descanso.

Amor é brando e manso, piedoso,
Suave e saudoso, doce e puro,
Forte, firme e seguro, verdadeiro.

Amor pôs num madeiro meu Senhor,
Trespassado de dor, aberto o lado;
De mãos e pés pregado: ai! e quão tarde
Senti de amor que amor por amor arde!"


Frei Agostinho da Cruz, Poesia Selecta, ed. José Cândido de Oliveira Martins, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2021, pp. 131-132.

Friday, April 7, 2023

PRECE

 



"Perdoai-me, Senhor, se vos faltara
Pôr meus olhos em Vós crucificado, 
O menos que de muito tenho errado, 
Noutros erros maiores me lançara. 

Triste quanto perdi, e quanto achara
Ainda assim de culpas carregado, 
Se por onde Vós tendes caminhado
Guia desta alma minha caminhara.

Culpado fui primeiro que nascido;
Enjeitei a razão pela vontade;
Amiga do meu mal, do bem imiga. 

Meus Deus por mim à Cruz oferecido, 
Alembrai-vos da vossa piedade
Tão larga em perdoar, e tão antiga."


Frei Agostinho da Cruz, Poesia Selecta, ed. José Cândido de Oliveira Martins, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2021, p. 50. 

Thursday, April 6, 2023

DUNAMIS MOU

 




"Era meio-dia; e uma escuridão cobria toda a Judeia. E inquietaram-se e angustiaram-se, não fosse o Sol ter-se posto enquanto ele ainda estava vivo. Pois está escrito para eles que o Sol não deve pôr-se sobre um executado.
E um deles disse: «Dai-lhe de beber fel com vinagre.» E, tendo feito a mistura, deram-lhe de beber.
E cumpriram todas as coisas; e tornaram completos os pecados sobre a cabeça deles.
Muitos andavam às voltas com lamparinas, pensando que era noite; e tropeçavam.
E o Senhor clamou, dizendo: «Meu poder, meu poder, deixaste-me!» E, tendo falado, foi recebido [levado para cima].
E, naquela hora, o véu do templo de Jerusalém rasgou-se em dois.
E então arrancaram os pregos das mãos do Senhor, e puseram-no no chão. E toda a terra tremeu e surgiu um medo grande.
Então brilhou o Sol; e percebeu-se que era a hora nona."


"Evangelho de Pedro", in Evangelhos Apócrifos Gregos e Latinos, trad. Frederico Lourenço, Lisboa: Quetzal, 2022, p. 295.

BONFIM

 



"Em ti suave Cruz, posto que dura
Por ver sangue inocente derramado,
Pregado pés e mãos, aberto o lado,
Donde minha esperança se perdura.

Em ti de piedade e de brandura
Doce penhor do penitente errado,
Em ti Cristo Jesus dependurado
A salvação do mundo dependura:

Em ti se consumou toda a crueza,
Que em corações humanos se acendia
Contra todas as leis da natureza.

Mas em ti se tornou, em alegria
Da nossa redenção, toda a tristeza:
Oh Cruz defensão nossa, nossa guia."


Frei Agostinho da Cruz, Poesia Selecta, ed. José Cândido de Oliveira Martins, Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2021, p. 48.