Sunday, December 31, 2023

FINDA

 



"Como feiticeiros, prevemos o movimento da maré e da nuvem, e também a fome e o fim.

Meu amigo, descreve-me as velas brancas trémulas de vento. O cristal em teus lábios não se quebrará, os gestos não se fatigam nem se ausentam.



Em errância e deslumbramento perguntarei e responderás."



Filomena Cabral, Amatus, Porto: Edições Afrontamento, 1990, pp. 28-29.

PARA ARDER

 



"O mudo amor só queima
o corpo aos pirilampos. Para arder,
irrigo com o mais difícil sangue
palavras que propaguem
o perfume da madeira morta."


Andreia C. Faria, Canina, Lisboa: Tinta-da-China, 2022, p. 62.

DESCE AGORA A NUVEM QUE COBRE O HORIZONTE

 



"Desce agora a nuvem que cobre o horizonte.
Abolido o exterior tudo vive desse desequilíbrio.
A própria paisagem deixa de coincidir com o seu exterior
e o sentimento com o interior ( íntimo, o que sinto).
Pouco a pouco, contudo, a forma invade-a (a cor):
ela é esse exterior
em que o conforto (o interior) se simplifique,
precise (limpo). Se o desenhamos
esfuma-se, abole-se logo o contorno
e em vez dele fica a luz
que íntima flutua."


Fernando Guerreiro, Metal de Fusão, Lisboa: Black Sun Editores/100 cabeças, 2023.

PASSAGEM DE ANO

 




"duas horas à frente
uma hora atrás
um pé no escuro

que pena não saber polaco
ou russo
ou português camoniano
para ler nas línguas originais
como uma pedante da tradução
a todo o vapor de
água faz favor"


Rosa Oliveira, Tardio, Lisboa: Tinta-da-China, 2017, p. 77.

ESTACIONAR

 


"Num certo oásis estacionámos, a recompor-nos da extrema fadiga. E, enquanto ia eu retouçando a erva, muito verde, que por ali medrava, cortava a Virgem algumas folhas de hera, que entretecia, até as conformar num diadema lindíssimo. Com ele, cingiu a fronte de seu Filho, que em Si parecia não caber, de terno contentamento."


Mário Cláudio, A Fuga para o Egipto, Lisboa: Quetzal, 1987, p. 32. 

Saturday, December 30, 2023

VIVER


 

"Viver com os deuses. Fazê-lo é mostrar-lhes que a tua alma aceita o que lhe é dado e age como o espírito pede - o espírito que nos foi dado para nos encaminhar e orientar, um fragmento do Todo. A nossa mente, a nossa razão."


Marco Aurélio, Meditações, Livro V, 27, trad. Liliana Sousa, Cultura Editora, 2017, p. 63.

DELIBERADO

 


"No séc. XIII, o Castelo parece ter sofrido um deliberado incêndio destruidor, ateado pelo próprio alcaide, D. rodrigo Gonçalves Pereira, ultrajado na sua honra por um frade de Bouro que ele teria surpreendido em flagrante delito com sua mulher, D. Inês Sanchez. O alcaide, sobrevindo, mandou trancar as portas do castelo e ordenou que lhe chegassem o fogo - e, com inflexível crueza, sacrificou e reduziu a torresmos não só o frade e a mulher adúltera, mas todos os homens e mulheres, servos e parentes, novos e velhos, que dentro se encontravam. «Alguns perguntaram-lhe (diz o Conde D. Pedro de Barcelos, que relata o cas) por que razão fizera essa total cremação e o alcaide teria respondido que aquela maldade havia já 17 dias que se cometia e que não podia ser que tanto durasse sem que essas criaturas não entendessem alguma coisa em que pusessem suspeita - a qual suspeita deviam descobrir.» Passado pouco tempo, o alcaide casou com D. Sanchez Henriques Portocarrero. Um dos seus descendentes, por esse casamento, foi D. Gonçalves Pereira, arcebispo de Braga e avô do Condestável D. Nuno."


Sant'Anna Dionísio, Guia de Portugal, 4.º volume, Tomo II, 3.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, pp. 857-858. 

Friday, December 29, 2023

O MAIS NOBRE RAMO

 


"Lothario. Será pelo menos tão compreensível como a ideia de que ela pode ser atraída das profundezas para a luz pela sagacidade humana e pela arte humana. Seja como for, continua a ser um milagre; digam o que disserem.

Ludoviko. Assim é. Ela é o mais nobre ramo da magia, e o homem isolado não é capaz de se elevar até à magia; mas onde quer que um qualquer instinto humano possa agir em conjunto com o espírito humano, desperta uma força mágica. Contei com esta força; sinto o vento espiritual que sopra no meio dos amigos; não vivo da esperança, mas sim da confiança na nova aurora da nova poesia. O resto está aqui, nestas páginas, se for agora o momento certo para as ler."


Friedrich Schlegel, Conversa sobre a Poesia, trad. Bruno C. Duarte, Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa, 2021, p. 39. 

Thursday, December 28, 2023

HORIZONTE

 



"O horizonte é assim o que se opõe ao seu exterior:
e o sentimento ao interior (íntimo, o que sinto).
Material lacuna, estupro -
ou o que o Olhar, por fora,
como um círculo, limita..."


Fernando Guerreiro, Metal de Fusão, Lisboa: Black Sun Editores/100 cabeças, 2023.

Wednesday, December 27, 2023

FILHOS DE DEUS

 


"Queridos amigos, agora somos filhos de Deus, mas aquilo que havemos de ser ainda não é totalmente claro. O que sabemos é que, quando Jesus aparecer, havemos de ser iguais a ele, porque havemos de o ver tal como ele é. Todo aquele que tem esta esperança em Cristo purifica-se para ser puro como ele."


1 João 3, 2-3. 

SOCIÁVEL

 


"Ele será capaz de o fazer quando encontrar o centro, ao comunicar com aqueles que também o alcançaram por outra via e de outra maneira. O amor precisa de amor de volta. E, na verdade, mesmo o contacto com aqueles que apenas brincam na superfície colorida pode ser salutar e instrutivo para o verdadeiro poeta. Ele é um ser sociável."


Friedrich Schlegel, Conversa sobre a Poesia, trad. Bruno C. Duarte, Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa, 2021, p. 13. 

Monday, December 25, 2023

SOBERANO

 



"Febo, sobre ti também o cisne alado claramente canta,
ao erguer-se da margem do redemoinhante rio
Peneu; e sobre ti o cantor, erguendo a lira clara,
com doce voz em primeiro e último lugar sempre cantará.
Por isso saúdo-te, soberano, e tu favorece o meu canto."


Hinos Homéricos, trad. José Pedro Moreira, Lisboa: Imprensa da Universidade de Lisboa, 2018, p. 95.

Sunday, December 24, 2023

MENINO ETERNO

 



"Descia a noite lenta, quando os dois
chegavam ao vetusto povoado;
em vão batem às portas; ao depois
vão pedir aos rebanhos gazalhado.

E alcançavam-no: uma penha escura e fria
prestes se faz um céu de plena luz;
José busca lugar para Maria,
os dois fazem lugar para Jesus.

Na catedral do mundo, àquela hora,
Maria é altar-mor onde se adora
o Eterno, o Imenso, o grande Criador.

Bendito seja tanto amor divino;
bendito seja o Amor feito Menino;
bendita a Mãe que o mostra ao nosso amor."


António Moreno, in António Salvado, Anunciação e Natal na Poesia Portuguesa, Lisboa: Editorial Polis, s.d., p. 165.

SUAVIZA




"A noite de Natal. Em meu país, agora,
o que não vai até romper o dia, a aurora!
As mesas de jantar na cidade e na aldeia
à luz das velas, ou à luz duma candeia,
entre risadas de crianças e cristais
(de que me chegam até mim só ais, só ais!).
Dois milhões de almas e outros tantos corações,
pondo de parte ódios, torturas, aflições,
que o mel suaviza e faz adormecer o vinho:
são todas em redor de uma toalha de linho!"


António Nobre, publ. A Águia, julho de 1911, in António Salvado, Anunciação e Natal na Poesia Portuguesa, Lisboa: Editorial Polis, s.d., p. 155.

Saturday, December 23, 2023

DELECTATIO

 


"Passemos às definições das várias espécies de prazer:
'Malevolência' é o prazer no mal dos outros, mesmo que não nos traga qualquer proveito.
'Deleite' é o prazer que nos encanta o espírito pela suavidade das sensações auditivas; e tal como há um prazer proveniente da audição, outros há que deleitam a vista, o tacto, o olfacto e o gosto; todas estas sensações são do mesmo género e impregnam a alma que se fossem prazeres no estado líquido.
'Jactância' é um prazer delirante, que se manifesta de forma insolente."


Marco Túlio Cícero, Textos Filosóficos II - Diálogos em Túsculo, trad. J. A. Segurado e Campos, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, IV, IX20, p. 228

Friday, December 22, 2023

MEDITAÇÃO

 


"Por isso aprovo a postura dos Cirenaicos, que utilizam como arma contra todos os eventuais golpes do acaso uma contínua meditação prévia sobre a possibilidade da sua ocorrência, o que diminui o impacto no momento em que ocorrem. Concordo com eles também quando dizem que o mal deriva da opinião, e não da natureza, pois se ele estivesse na natureza das coisas, como é que a meditação prévia o tornaria mais suportável?"


Marco Túlio Cícero, Textos Filosóficos II - Diálogos em Túsculo, trad. J. A. Segurado e Campos, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, XV31, p. 174. 

Thursday, December 21, 2023

ANIVERSÁRIO



"os felizes dissociam-se de ausências ritmadas, rupturas, e afirmam que a descrença veicula o frio vindo das profundezas desconhecidas; contudo, o esquecimento significa perda, a tangibilidade de sistemas apaziguadores arquivados e longínquos; a doçura, em seu toque lânguido, recorda a mentira, na carência.
Barcos ébrios navegam no silêncio, cortando lagos imóveis, em migração serena: os salgueiros escondem vozes. Assim se imagina a paragem do tempo, a angústia da cegueira, a crónica de um amor sem data escondido nas pregas do esquecimento que a si mesmo se apaga."


William Beckford, História do Califa Vathek, trad. Mário Cláudio, Porto: Afrontamento, 1982, p. 21.

Wednesday, December 20, 2023

AS DÁDIVAS

 



"Na manhã seguinte, o Califa mandou-o chamar, e disse-lhe: «Volta a ler o que já me leste; não me canso de ouvir a promessa que me é feita, e cuja concretização anseio por alcançar».
Imediatamente, o velho assestou as suas lunetas verdes, mas estas logo lhe deslizaram do nariz, ao verificar que os caracteres que lera na véspera haviam sido substituídos por outros de diferente sentido.
«Que se passa?», perguntou o Califa, «porque estás tu tão espantado?»
«Soberano do mundo», redarguiu o velho, «estes sabres contêm hoje uma língua diversa da de ontem».
«Que dizes?», exclamou Vathek; «Mas não importa. Explica-me, se podes, o que se contém nos sabres».
«E maldito sejas tu!, gritou o Califa, num acesso de indignação; «hoje estás privado de entendimento; sai da minha vista; só te será queimada metade da barba, porque ontem tiveste a sorte de adivinhar; quanto aos presentes, eu nunca retiro as minhas dádivas»."




William Beckford, História do Califa Vathek, trad. Mário Cláudio, Porto: Afrontamento, 1982, p. 27.

SUPRACELESTE

 


"Assim, num dos seus significados, 'Ilimitado' é o equivalente abstacto de 'imortal e imperecível' ou 'divino'. E esta isenção do ciclo do tempo, com os seus limites e as suas distinções entre nascer, existir e perecer, está associada à imagem espacial de uma região supraceleste, para lá do universo em transformação. A imaginação popular confunde ainda a ideia de um céu imutável no espaço distante com a noção de uma eternidade para além do alcance do tempo."

 

F. M. Cornford, Principium Sapientiae - as origens do pensamento grego, 2.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1981, p. 283. 

Monday, December 18, 2023

A IMAGEM

 


"A imagem, que tais alturas lhe deram de sua própria grandeza, transtornou-o por completo; estava prestes a cair em adoração a si mesmo  quando, erguendo os olhos aos céus, viu as estrelas tão altas sobre a sua cabeça  como altas pareciam quando vistas da superfície da terra. Mas a si próprio se consolava desta transitória percepção de sua pequenez, com a convicção de parecer grande aos olhos de todos; desvanescia-se na ideia de que a luz de seu espirito iria além do que os olhos podem alcançar, ditando às estrelas as leis de seu destino."


William Beckford, História do Califa Vathek, trad. Mário Cláudio, Porto: Afrontamento, 1982, p. 17.

EM DIREÇÃO AO AZUL

 


"Impossível desdenhar o tempo, ainda que pânico ou neutro, e bendigo o sono, as suas pausas, tuas ausências; invade-me a tranquilidade; de súbito, desertificada, corro em direcção ao azul, mar ou devaneio."


Filomena Cabral, Amatus, Porto: Edições Afrontamento, 1990, p. 17. 

Sunday, December 17, 2023

NÉVOA DE UM TEMPO BREVE

 



"Regressas pelos espelhos abraçado à névoa de um tempo breve, aproximas-te da superfície, contemplo o rosto emergente, nenúfar lançado no vórtice de círculos concêntricos; recordo um perfume.

Necessário seria conheceres evanescências incrustadas na porta sólida da memória: e sempre me detenho no umbral. Como explicar a recordação de ti, de nós sabemos sempre pouco, nada de nossas auras, eflúvios, deles nos falariam outros quase sempre mudos ou desinteressados. A avidez, atenta, com dedos longos arrepanha, puxa para si, sortilégios abandonados por complacência, selecciona-os, guarda-os como avarento para possibilitar-se pequenas trocas, comércio mesquinho com os que experimentam fome de nós. Por ela te recordo, olho, inebrias, inquietas."


Filomena Cabral, Amatus, Porto: Edições Afrontamento, 1990, p. 11.

Saturday, December 16, 2023

O SONHO



"Batem à porta...

Deixá-lo
deixem bater!

Eu trago um sonho comigo
que é como a vaga figura
duma mulher,
que se ama perdidamente,
e que, uma vez possuída,
se tem medo de perder.

Batem à porta...

Meu sonho não desflorado
que tenho medo de ver!"


Os Poemas de Álvaro Feijó, Castelo Branco: evoramons, 2005, p. 76.

COUNTDOWN

 



"Contei as estrelas
e elas
morriam, à medida que as contava.

E a escuridão nasceu.

Mas fiz estrelas
e pendurei-as
na escuridão da abóbada.

Fiquei nimbado de luz, 
mas a Terra era negra à minha roda..."

Os Poemas de Álvaro Feijó, Castelo Branco: evoramons, 2005, p. 75. 

Tuesday, December 12, 2023

CONCEITO

 


"É, assim, preciso levar a sério a tese especulativa de que o conceito não é uma mera abstracção, mas uma forma de captura do real que resultou de uma longa história de idealização dos objectos e do mundo. Na modernidade o conceito está realizado, ou melhor, está em permanente efectuação, na medida em que é ele que estabiliza o real. Assim, passamos de conceito para conceito, de «professor» para «aluno», de «português» para «artista», etc., percorrendo a linha de tessitura do real. Ao afrontar directamente o conceito, a constelação faz saltar as suas junções e tudo o que é regido pela «lei das coisas» é deslassado, perde a imperiosidade que os «liga», escapa às cadeias que os estruturam e à arquitectónica em que são inscritos. E isso afecta em contragolpe a natureza do conceito e o seu estatuir do real."

 

José Bragança de Miranda, Constelações - Ensaios sobre cultura e técnica na contemporaneidade, Lisboa: Documenta, 2023, p. 59. 

Monday, December 11, 2023

HETERÓCLITO


 
"A «ideia» existe apenas se plasmada numa «obra», num artefacto ou objectos que sendo heteróclitos se acrescentam ao real, e este fica forçado a responder-lhe, pois nada acontece sem deixar traços. Como refere o poeta Eugen Gomringer, a constelação é um «arranjo» que cria um «campo de forças». Numa frase: «A cada constelação algo novo vem ao mundo, cada constelação é uma realidade em si e não um poema sobre alguma coisa. A constelação é um desafio, é também um convite.» Enquanto novo objecto, ao entrar no real origina uma constelação de forças, provocando tensões e rearranjos novos cuja disseminação é indecidida e incontrolada: nenhum marketing ou poder a pode controlar. Ela é, sobretudo, um convite, uma dádiva, que se pode aceitar ou não, mas não se pode evitar."


José Bragança de Miranda, Constelações - Ensaios sobre cultura e técnica na contemporaneidade, Lisboa: Documenta, 2023, p. 31. 

Sunday, December 10, 2023

E SE FOR O MEU SILÊNCIO (para a memória de Isabel Lhano)

 



"e se for meu o silêncio
que por vezes se repercute, que
me cubram as luzes que
combatem a noite, intensas,
gritando as cores
que a escuridão quer que
ninguém escute"


valter hugo mãe, estou escondido na cor amarga do fim da tarde, Porto: Campo das Letras, 2000, p. 8.

Saturday, December 9, 2023

OPRÓBRIO





" - Deus?!...- exclamou Manuel Coutinho, respondendo à última frase do ancião, e volvendo ao céu, límpido e azul, um olhar de amarga desesperação. - Não se esqueceu Ele de nós? Não está com os inimigos do Seu nome e da nossa liberdade?
- Não diga isso. Caia em si. Não vê que acusa a divina justiça?
- Coxa e lenta como a dos homens?... Senhor bispo! Sou moço e militar, desculpe-me, mas não posso suportar com paciência cristã o espectáculo de tantas misérias e de tantos crimes!...Fala na justiça de Deus?! Aonde estava ela, quando o vigário de Cristo, arrancado por mãos sacrílegas da sua cadeira, foi como seu divino Mestre, arrastado de prisão em prisão, de opróbrio em opróbrio, por turbas de soldados à voz de Bonaparte?"


Rebelo da Silva, A Casa dos Fantasmas - episódio do tempo dos franceses, Porto: Livraria Civilização, 1965, p. 116.

Friday, December 8, 2023

DA CONCEIÇÃO

 



"Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gesto das minhas mãos tontas de amor!

Que te seja propício o astro e a flor,
Que a teus pés se incline a terra e o mar,
P’los séculos dos séculos sem par,
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor!

Eu, doce e humilde escrava, te saúdo,
E, de mãos postas, em sentida prece,
Canto teus olhos de oiro e de veludo.

Ah, esse verso imenso de ansiedade,
Esse verso de amor que te fizesse
Ser eterno por toda a Eternidade!..."


Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8.ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 181. 

Thursday, December 7, 2023

A PERFEIÇÃO


 "Nós sabemos que a perfeição é o fim de qualquer coisa. Sabemos que a perfeição é o momento em que está tudo acabado, em que tudo está perfeito, porque concluído. Então resta-lhe a morte. É incómodo esse percurso, porque sabemos qual é o seu fim mas há, de certa maneira, uma atracção pelo abismo."


Jorge Pinheiro, Discurso Silencioso, Lisboa: Documenta, 2021, p. 65. 

Tuesday, December 5, 2023

MAIS ALTO

 



"Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.

Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
Não pertence à ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,

Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza.


Ricardo Reis (Fernando Pessoa), Odes, org. António Quadros, 3ª ed., Mem Martins: Publicações Europa-América, s.d., p. 111.

Monday, December 4, 2023

BÁRBARA

 



"Cada insensível rotação do mundo tem destes deserdados
a quem não pertence nem o que foi, nem o que há-de seguir-se.
Pois o que há-de seguir-se é longínquo para os homens. A nós isto
não nos deve perturbar; antes nos dê a força de guardar
a forma ainda reconhecível. Isto que outrora estava entre os homens,
no seio do destino, esse destruidor, estava
no não-saber-para-onde-ir, como ser sendo, e vergava para si
as estrelas dos céus firmes. Ó Anjo,
a ti o mostro ainda, ali! no teu olhar,
fique por fim a salvo, finalmente erguido, agora.
Colunas, pilones, a Esfinge, esse erguer-se em anelo,
na soturna cor de cidades em estertor ou de estranhas cidades, da catedral."


Rainer Maria Rilke, As Elegias de Duíno, VII, 3.ª ed., trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2020, p. 93.

Sunday, December 3, 2023

ADVENTO




"Irmã, se o teu desejo é publicar
a folha em que os profetas inscreveram
as brancas exalações da tua boca,
deixa-me lê-la em primeiro lugar
e palpar, dos hexâmetros, os pés.
São eu mesmo quem agora te pede
(o noctâmbulo, a coisa que diz eu)
palavras que, rasgando o denso véu
do esquecimento, talvez alumiem...
E o selo obscuro de epitáfios, dize-o.
- Face à tua súplica - fala a sibila -
respondo como o mago de Madaura:
«Di-lo-ia, se dizê-lo fosse lícito,
e ficarias a saber, enfim,
se a ti te fosse lícito escutá-lo.»"

Amândio Reis, Antilha, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 77.

Saturday, December 2, 2023

FORMA

 


"Viu uma forma branca e suave, com os cabelos esparzidos sobre o colo, atravessar, chorando, as salas. Apertava ao peito uma criança adormecida, e seguia-a outro espectro ameaçador, com o punhal erguido. Atrás, uma figura contemplava aquela cena rindo com satânica alegria. Os lustres acesos por si mesmos entornavam torrentes de luz lívida sobre os aposentos. Os gemidos e soluços das vítimas, o tinir dos ferros, as risadas e as imprecações retratavam ao vivo o tremendo espectáculo, em que o parricídio e o fratricídio tinham desempenhado os principais papéis. O velho enlouqueceu de terror."

Rebelo da Silva, A Casa dos Fantasmas - episódio do tempo dos franceses, Porto: Livraria Civilização, 1965, p. 37. 

Friday, December 1, 2023

INDEPENDÊNCIA

 



"Ainda ontem o universo me parecia um gigante colossal capaz de me atropelar sem querer; e enquanto eu procurava a maneira de não ficar espezinhado pelo gigante, quem poderia, Mãe, ter-me convencido de que éramos nós-próprios o gigante?
Todas as coisas do universo aonde, por tanto tempo, me procurei, são as mesmas que encontrei dentro do peito no fim da viagem que fiz pelo universo."


Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, introd. Jerónimo Pizarro, rev. e actualização ortográfica Susana Tavares Pedro, Lisboa: Guimarães, 2010, p. 62.

Wednesday, November 29, 2023

SUSTO

 



"Há susto, há pesar, 
há tudo aquilo que faz de ti um animal quase belo.

Tão inactivo, levado pelas águas escuras, 
sozinho estás sem olhar a quem, 
a não ser que te chegue o apetite, 
a atenção aos estalos da morte. 
No canto lamacento, encolhes o corpo frio, 
até que alguém tenha sede.
Aí, a tua cauda subtil ameaça movimento. 

Os olhos húmidos de ternura e a emergência
criam uma estranha fisionomia. 
Deploras a solidão que inventaste, 
no fundo, não queres matar. 
Se possível, apenas morder um pouco as carnações.
Mas a carcaça gira onde acaba a tua amargura."


Elisabete Marques, Animais de Sangue Frio, 2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2023, p. 49. 

Monday, November 27, 2023

SKILFULNESS

 


"Este elemento de especificação e de individualização, ligado ao de uma habilidade - uma skilfulness - sobre-humana, constitui as bases indispensáveis para a instauração do mito (que, por sua vez, virá a encarnar-se dentro de um ritual preciso). Ritual que poderá ser inconsciente e espontâneo, ou então perfeitamente institucionalizado, que poderá derivar de uma cuidadosa preparação ou de uma feliz improvisação, mas que, seja como for e onde quer que seja, não poderá faltar."


Gillo Dorfles, Novos Ritos, Novos Mitos, trad. A. J. Pinto Ribeiro, Lisboa: Edições 70, s.d., p. 23. 

Sunday, November 26, 2023

REX

 



"Louvado sejas Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas, porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo os despojos,
- velho ao fim da guerra com uma cabra -
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvado sejas porque eu quero morrer,
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!"


Adélia Prado, Bagagem, Lisboa: Cotovia, 2002, p. 67.

Saturday, November 25, 2023

LINHA DE AR

 



"Não sei que furor me assalta ao meio-dia.
Despeço-me da minha espessura,
e um vento eleva-se dos meus mais ínfimos trejeitos.

Estremecem os membros finos, ser quase
e apenas uma linha de ar. Todo este bailado
arrebatado mas imperceptível,
todo este pavor acumulado,
como terminará o meu sobressalto?

Que me torço, que me desloco sem sair do lugar,
e os contornos dos objectos esbatem-se diante de mim.

Bato contra a janela, por terra caio, repouso triste
na mesa ocupada por clips, aparas, flores mortas.

Como um vidro, lentamente arrefece
a minha firmeza. Num instante concretizo-me
Depois, pouco a pouco, retorno ao ágil tormento."


Elisabete Marques, Animais de Sangue Frio, 2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2023, p. 39.

Friday, November 24, 2023

ESTIMA PELO AR BATIDO

 



"Que dizer da estima pelo ar batido,
pela onda, pelo excesso da matéria
confirmado na ruga da deslocação?

Irrompem no meio, entre substâncias.
Tudo muda o seu jeito de ser
a propósito dum balançar tão seu.

E descerram um vocábulo redondo,
como promessa convincente.
Mas não se diz nada;
o sossego ganha neste lugar.

Como amam a impressão sensível
do trânsito, o vórtice, a ligeireza.
Cresce neles o gosto pelo momentâneo
e pouco fazem com o corpo acidentado.

Sim, desejam a façanha, a pirueta,
o salto mortal, entoar uma palavra,
criar uma tempestade, finalmente lançados
contra os que os comem.

Porém tudo cai esquecido
e uma vez mais mordem o anzol."


Elisabete Marques, Animais de Sangue Frio, 2.ª ed., Lisboa: Língua Morta, 2023, p. 27.

Thursday, November 23, 2023

LOGOS SPERMATICOS


 

"Ainda hoje apreciamos com íntima admiração o poder evocador destes versos do poeta grego que tantas vezes teve o pressentimento profundo da essência da  divindade. Impressiona-nos vivamente a imagem de Júpiter Olímpico, concebida por Fídias depois da leitura destes versos. Era uma centelha daquele «Logos spermaticos», do verbo criador e eterno, espalhado por todo o universo, cuja revelação humanizada, os arautos de Cristo vinham agora anunciar."


Josef Holzner, Paulo de Tarso, trad. Maria Henriques Oswald, Lisboa: Editorial Aster, 1958, p. 219

Tuesday, November 21, 2023

EM REDOR DE SI

 



"Um banco num jardim público.
Sentada no banco uma rapariga. Ela tem o prazer de olhar o jardim em sua volta. Outras vezes agrada-se em meditar, talvez sobre o que vê. Como se em realidade houvesse dois jardins: um em redor de si e outro no seu íntimo, e ela estivesse alternadamente em ambos.
A sombra das árvores faz aqui o ar apetecível."


José de Almada Negreiros, Poemas, 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 139.

Monday, November 20, 2023

MORAR (para a memória de Sara Tavares)

 



"Se subir aos céus, lá Vos encontro,
se descer aos Infernos, igualmente.
Mesmo que me aposse das asas da aurora
e for morar nos confins do mar,
mesmo aí, a Vossa mão me conduz,
Se eu disser «ao menos as trevas me cobrirão,
que a luz sobre mim seja qual noite»."


Sl 140, 9-12.

Sunday, November 19, 2023

SOBRESSALTO

 


"A janela estava aberta; os galos pareciam rasgar o nevoeiro, de que os pinheiros retinham entre os ramos diáfanos farrapos. Campo banhado de aurora. Como renunciar a tanta luz? O que é a morte? Não se sabe o que é a morte. Teresa não está certa do nada. Teresa não está absolutamente certa de que não haja ninguém. Teresa odeia-se por sentir um tal terror. Ela, que não hesitava em precipitar nele um outro, detém-se em sobressalto diante do nada. Como a sua cobardia a humilha! Se existe esse Ser (e, num breve instante, revê a opressiva festa do Corpo de Deus, o homem solitário esmagado sob uma capa dourada, e o que ele trazia nas mãos, e aqueles lábios que mexiam, e o seu ar de dor...) Já que Ele existe, que desvie a mão criminosa antes que seja demasiado tarde; - e se é sua vontade que uma pobre alma cega transponha a passagem, possa Ele, ao menos, acolher com amor esse monstro, sua criatura."


François Mauriac, Teresa Desqueyroux, trad. Nataniel Costa, 2.ª ed., Lisboa: Estúdios Cor, 1958, pp. 126-127. 

Saturday, November 18, 2023

DA VELHA ÁRVORE DE OUTONO


"Oh, a queda das folhas,
A morte lenta das flores,
A sombra sem fim das noites
E o dia esfacelado!

E, no entanto, cada folha
Fala-me da felicidade,
E voa alegremente
Da velha árvore de outono.

E ver-me-ão sorrir
Às coroas de neve,
Às brancas florações
Que devastam as rosas.

E ouvir-me-ão cantar,
Quando a noite desfalecente
Anunciar tristemente
O dia escuro e deserto."


Emily Brontë, O Vento da Noite, trad. Lúcia Nogueira, Porto: Book Cover Editora, 2023, p. 58.

Friday, November 17, 2023

ESCURECE

 




"A noite escurece à minha volta,
Sopra o vento frio e violento;
Mas detém-me o encantamento
E eu não posso, não posso ir.

Curvam-se as árvores enormes
Os seus ramos nus pesados com a neve;
A tempestade desce rápido,
E ainda assim eu não posso ir.

Nuvens sobre nuvens acima de mim,
Não há vida sob os meus pés
Mas nada sombrio pode mover-me:
Eu não vou, não posso ir."


Emily Brontë, O Vento da Noite, trad. Lúcia Nogueira, Porto: Book Cover Editora, 2023, p. 7.

Wednesday, November 15, 2023

MAIS RICA

 



"A realidade do universo mítico parece infinitamente mais rica e vital que o quotidiano actual. Senão, como explicar o fascínio que exerceram e exercem ainda estas narrativas? Não o tivessem elas, e decerto já teriam sido esquecidas!"


José Trindade Santos, Antes de Sócrates - Introdução ao estudo da Filosofia Grega, Lisboa: Gradiva, 1985, p. 66. 

Monday, November 13, 2023

PROVAÇÕES

 


"Mas é necessário uma grande força anímica para esperar pelo chamamento de Deus. Não é o homem inferior e nervoso que sabe esperar: para esse, ou é demasiado cedo ou demasiado tarde. O santo, que soube exercitar-se na mais severa disciplina interior, esse sabe esperar pela hora de Deus. Para ele, o momento marcado por Deus é aquilo a que a Sagrada Escritura chama «kairós», isto é, o momento preciso, que os gregos simbolizam num rapaz de cabelos encaracolados, em veloz carreira. É bom lembrarmo-nos de que na vida dos santos há épocas de provação, de inactividade aparente e de procura ansiosa, às apalpadelas, em busca da vontade de Deus. Através destas provações, tornam-se mais acessíveis e ficam mais ao alcance da nossa realidade, mais perto de nós e da terra."


Josef Holzner, Paulo de Tarso, trad. Maria Henriques Oswald, Lisboa: Editorial Aster, 1958, p. 87. 

Sunday, November 12, 2023

FLORESCÊNCIA

 



"E não desconfies das coisas criadas devido à sua diversidade, por medo de atribuir a Deus um baixo estatuto e uma glória insuficiente.
    Pois a Sua Glória é uma - criar todas as coisas; e esta [sua] criação é como se fosse o Corpo de Deus.
    Mas nada existe que, pelo ser do Criador, seja considerado mau ou vil.
    Estas coisas são paixões que acompanham o processo de criação, como a ferrugem o bronze e a sujidade o corpo; mas nem o ferreiro que trabalha o bronze cria a ferrugem, nem os procriadores do corpo a sujidade; nem Deus [cria] o mal.
   É a continuidade do estado de criação que causa a perda, por assim dizer, da florescência; por isso Deus criou a mudança, como uma purificação da génese."


Hermes Trimegisto, Corpus Hermeticum, Tratado Catorze, 7, trad. Carla Ribeiro, s.l.: Alma dos Livros, 2023, pp. 132-133.

Saturday, November 11, 2023

MARTINHO




"É vão buscar os mortos
sob os ciprestes,
mesmo que em nós sangrem ainda
palavras e olhares que eles nos deram:
como tentar colher o esplendor de um rosto
que, por muito o termos amado, destruímos,
debatendo as mãos cegas
entre a neve que o lembra sobre os cedros."


José Bento, Silabário, Lisboa: Relógio D'Água, 1992, p. 177.