Tuesday, May 31, 2016

INTERRUPTO


" - Que história vem a ser esta? - gritou. - Interromperam a festa porque os rapazes se foram embora? Ainda cá estou eu, parece-me.
O génio aproximou-se do coronel. Era Bernardi. 
- Não posso fazer nada - respondeu. - Matteo, segundo parece, foi-se embora. Além disso, confesso que os meus companheiros sempre tiveram uma inclinação pelas crianças. 
- Vocês são iguais aos homens - disse o coronel em tom amargo. - Enquanto se é pequeno, todas as atenções são poucas; quando nos tornamos adultos e nos sentimos cansados e alquebrados, não há um cão que se importe connosco."


Dino Buzzati, O Segredo do Bosque Velho, trad. Margarida Periquito, 3ª ed., Lisboa: Cavalo de Ferro, 2012, p. 48. 

Monday, May 30, 2016

FÁTUO



"Em meia hora chegaram ao limite do bosque. À luz de uma lanterna avançaram por uma espécie de vereda para o interior da floresta, prosseguindo, expeditos, o seu caminho até à orla de uma ampla clareira iluminada pela lua. 
Em redor havia abetos vertiginosos, todos repassados de trevas; no meio, um prado regular atravessado por uma árvore caída, morta sabe-se lá há quantos anos, já despida de pernadas e ramos. 
Era naquele local que se desenrolava a festa. Não havia de facto nada que atraísse a atenção, se se exceptuassem os fogos-fátuos que deslizavam ao longo dos abetos, a luz puríssima da lua e a presença de inúmeros génios, recolhidos no limite da clareira. O coronel entrevia-os apenas, acaçapados na sombra, imóveis e silenciosos como se aguardassem qualquer coisa."


Dino Buzzati, O Segredo do Bosque Velho, trad. Margarida Periquito, 3ª ed., Lisboa: Cavalo de Ferro, 2012, pp. 43-44. 

Sunday, May 29, 2016

HISTÓRIA VERDADEIRA



" - Oiça o que lhe digo - atalhou o outro - e não se exalte. Em tempos, mas já há muitos séculos, esta terra estava toda despida. O proprietário era o salteador Giacomo, a quem chamavam Giaco, um homem cheio de iniciativa que tinha um pequeno exército particular. Um dia regressou sem um único soldado, morto de cansaço e ferido. Então pensou: tenho de ter mais cuidado, mais tarde ou mais cedo sou perseguido e não tenho um buraco onde me esconda; tenho de plantar um bosque onde me resguardar. Dito e feito, plantou esta floresta, mas como as árvores cresciam devagar, teve de esperar até aos oitenta anos. Então, recrutou soldados e partiu numa nova empresa. Passaram-se anos desde esse tempo, haveria com que fazer até um museu, mas quem lhe diz, coronel, que Giacomo não voltará? Até lhe digo mais: esperamo-lo a qualquer momento, esta noite pode estar de volta. E podemos ter a certeza que já não terá um soldo nem um soldado. Será perseguido por centenas de homens, até por mulheres, todos armados de espingardas e cacetes. Ele terá apenas uma pequena cimitarra, estará esfomeado e cansado. Não terá o direito de encontrar o seu bosque intacto, de nele se poder esconder? Então isto não é dele na mesma?
- A paciência tem limites - disparou então o coronel. - Isto é conversa de loucos. 
- Não me parece ter dito nada de absurdo - observou Bernardi elevando a voz. - Tocar neste bosque seria uma coisa iníqua, é o que eu lhe digo."


Dino Buzzati, O Segredo do Bosque Velho, trad. Margarida Periquito, 3ª ed., Lisboa: Cavalo de Ferro, 2012, pp. 15-16. 

Saturday, May 28, 2016

EPIKOUROS



"O lugar tornou-se então, do modo mais estranho possível, um recurso absoluto; Marcher cumpriu o objetivo de regressar com frequência, o que acabou por ser parte dos seus hábitos mais inveterados. Aquilo que tudo isto significava, estranhamente, no seu mundo que afinal se tornara tão simples, era este jardim da morte que lhe oferecia os únicos metros quadrados da terra onde ainda conseguia sentir-se vivo. Era como se, não existindo para ninguém em lugar algum, nem mesmo para si próprio, aqui fosse simplesmente tudo."

Henry James, A Fera na Selva, trad. Madalena Alfaia, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, pp. 83-84. 

Thursday, May 26, 2016

MOVIMENTO



"Daqui em diante, segredou-me ela, ou nos encontramos ou perdemos as nossas almas. 
Se os mares se afastam, porque não o fariam os amantes? Os portos de Éfeso, os rios de Heraclito desaparecem e são substituídos por estuários de sedimentos. A mulher de Candaules tornara-se mulher de Giges. As bibliotecas ardem."


Michael Ondaatje, O Doente Inglês, trad. Ana Luísa Faria, 6ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998, p. 258. 

Tuesday, May 24, 2016

PAIRA



" - Oh, sim, pensei várias vezes nisso, mas parece-me sempre que sou incapaz de tomar uma decisão. Pensei em coisas terríveis, de entre as quais não consegui escolher nenhuma. Deve ter acontecido o mesmo consigo.
- Efectivamente. Parece-me agora que nada mais fiz para além disso. Sinto que passei a vida a cogitar somente em coisas terríveis. Mencionei-lhe várias delas em diversos momentos, mas outras houve que não fui capaz de descrever.
- São assim tão tremendamente horríveis?
- Sim, algumas delas são tremendamente horríveis."


Henry James, A Fera na Selva, trad. Madalena Alfaia, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 56. 

Monday, May 23, 2016

POSIÇÃO


"Mas o mais diabólico aqui era que o próprio fundamento da relação colocava o casamento fora de cogitação. A sua convicção, o seu receio, a sua obsessão, em suma, era um privilégio que não poderia ser partilhado por uma mulher. E a consequência de tal circunstância era justamente aquilo que o assombrava. Qualquer coisa estava à espera dele, por entre as reviravoltas dos meses e dos anos, como uma fera serpenteando pela selva. Pouco importava que a fera, em posição de ataque, estivesse destiná-la a matá-lo ou a morrer. O ponto fundamental era o inevitável salto da criatura; e a lição fundamental a retirar daqui era que um homem sensível não consideraria nunca fazer-se acompanhar de uma senhora numa caça ao tigre. Era esta a imagem a que chegava por fim, quando resumia a sua vida."

Henry James, A Fera na Selva, trad. Madalena Alfaia, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 30. 

Sunday, May 22, 2016

GUIDANCE




"Não usufruía ela, por vezes, de uma certa protecção, que por sua vez retribuía ajudando, entre outras coisas, a mostrar a casa e a explicar pormenores, lidando com as pessoas aborrecidas, respondendo a perguntas sobre as datas de construção, o estilo de mobiliário, a autoria dos retrato, os lugares preferidos do fantasma?"

Henry James, A Fera na Selva, trad. Madalena Alfaia, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2008, p. 10. 

Saturday, May 21, 2016

RAMOS



"Os pássaros preferem os ramos mortos das árvores - disse Caravaggio. - De um poleiro assim, conseguem abarcar o horizonte todo. Podem levantar voo em qualquer direcção."

Michael Ondaatje, O Doente Inglês, trad. Ana Luísa Faria, 6ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998, p. 131. 

Thursday, May 19, 2016

COALHADO



"Coalhado vai o rio
de frutos sonegados. 

«Apresenta-me um fruto
que antes de cair
não apodreça»
Pede Fausto ao Diabo."


Luiza Neto Jorge, A Lume, Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 57. 

Wednesday, May 18, 2016

ENGENHO


"Era nos metrómenos que se ocultava a maioria dessas pequenas minas - não havia sítio onde fosse mais fácil soldar verticalmente o delgado fio eléctrico. Havia bombas ligadas a torneiras, às lombadas dos livros, engastadas nas árvores de fruto, de tal modo que uma maçã que ao cair batesse num ramo mais baixo faria explodir a árvore, como o faria a mão que se agarrasse a esse ramo. Ele não conseguia olhar para uma sala nem para um campo sem ver os lugares onde poderiam estar ocultos tais engenhos". 

Michael Ondaatje, O Doente Inglês, trad. Ana Luísa Faria, 6ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998, p. 83. 

Tuesday, May 17, 2016

ESPALHA



"E olhai a flor que o seu cabelo engala
- Rosa-dos-Ventos, rosa de delírio, 
Que um perfume de espanto e Dor exala, 

Rosa de assolação e de Martírio
Cujas pétalas são de tal altura, 
Que abraçam e penetram todo o Empíreo...!

Oh! que sublime e trágica figura, 
Que faz horror, sendo a divina Graça, 
E espalha a treva, quando mais fulgura!"


Jaime Cortesão, Poesias, vol. I, Lisboa: Portugália Editora, 1967, p. 76. 

Monday, May 16, 2016

ESFERA



"No dia seguinte tornou a ouvir por várias vezes aquele som cristalino, enquanto jazia de novo coberto pelos panos. Um som vindo das trevas. Ao crepúsculo sentiu que o destapavam e viu a cabeça de um homem, sobre uma mesa, a avançar para ele; depois percebeu que o homem trazia uma enorme canga de onde pendiam centenas de pequenos frascos, suspensos por fios e arames de vários comprimentos. Caminhava como se fizesse parte de uma cortina de vidro, o corpo envolto naquela esfera."

Michael Ondaatje, O Doente Inglês, trad. Ana Luísa Faria, 6ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998, p. 21. 

Sunday, May 15, 2016

OSTINATO


"Eis chegado o tempo em que nas velhas tábuas ressuscita um obstinado lamento pela vida. Muitos anos antes, nos tempos felizes, eram um fluxo juvenil de calor e de força, dos ramos brotavam feixes de rebentos. Depois a planta foi abatida. E agora que é Primavera, em cada um dos seus fragmentos acorda ainda um pulsar de vida, mas infinitamente menor. Em tempos folhas e flores; agora apenas uma vaga recordação, apenas o suficiente para fazer crac e depois silêncio até ao ano que vem."

Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros, trad. Nuno Camarneiro, Barcarena: Marcador Editora, 2014, p. 156. 

Friday, May 13, 2016

CORTEJO


"(Enquanto a liteira o levava para longe, ele desviou o olhar do amigo e voltou a cabeça para a frente na direcção do cortejo, com uma espécie de curiosidade divertida e desconfiada. Assim se afastou na noite, com uma nobreza quase desumana. O cortejo mágico foi serpenteando, lentamente pelo céu, sempre mais alto, transformou-se num rasto confuso, depois num minúsculo tufo de névoa e depois em nada.)"

Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros, trad. Nuno Camarneiro, Barcarena: Marcador Editora, 2014, p. 148. 

Thursday, May 12, 2016

TEOS



"Quem cerca em derredor deste rotundo
Globo e sua superfície tão limada, 
É Deus; mas o que é Deus ninguém o entende, 
Que a tanto engenho humano não se estende."


Luís de Camões, Os Lusíadas, canto X, est. 80. 

Wednesday, May 11, 2016

DORMIÇÃO



"Giovanni Drogo dorme agora no interior do terceiro reduto. Sonha e sorri. Pela última vez chegam-lhe de noite as doces imagens de um mundo absolutamente feliz. Que desgraça se pudesse ver-se a si mesmo como há-de ser um dia, lá, onde a estrada chega ao fim, parado, na margem do mar de chumbo, sob um céu cinzento e uniforme, e em redor nem uma casa, nem um homem, nem uma árvore, nem sequer um fio de erva, tudo assim desde tempos imemoriais."


Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros, trad. Nuno Camarneiro, Barcarena: Marcador Editora, 2014, p. 55. 

Tuesday, May 10, 2016

VORACE


"Todas estas coisas se tinham já tornado suas e deixá-las ter-lhe-ia causado desgosto. Drogo, contudo, não o sabia, não suspeitava que a partida lhe teria sido penosa, nem que a vida da Fortaleza devorava os dias um após o outro, todos iguais, com uma velocidade vertiginosa. Ontem e anteontem eram a mesma coisa, e já não os saberia distinguir; um facto ocorrido há três dias ou há vinte acabava por lhe parecer igualmente longínquo. Assim se processava, às suas escondidas, a fuga do tempo."


Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros, trad. Nuno Camarneiro, Barcarena: Marcador Editora, 2014, p. 81. 

Monday, May 9, 2016

FUGA



"Assim prossegue o caminho numa espera confiante, e os dias são longos e tranquilos, o Sol brilha alto no céu e parece que não tem mais vontade de descer ao entardecer.
Mas a uma determinada altura, quase instintivamente, voltamo-nos para trás e vemos que uma cancela se fechou nas nossas costas,obstruindo o caminho de regresso. Então sentimos que alguma coisa mudou, o Sol já não parece imóvel, mas desloca-se rapidamente, ai de nós, nem temos tempo de o fixar, pois já se precipita no confim do horizonte, apercebemo-nos que as nuvens não estagnam mais nos golfos azuis do céu, mas fogem umas nas outras, tal é a sua urgência; compreendemos que o tempo passa e que também a estrada um dia chegará ao fim."


Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros, trad. Nuno Camarneiro, Barcarena: Marcador Editora, 2014, pp. 53-54. 

Sunday, May 8, 2016

TROÇO



" - É um troço de fronteira morta - acrescentou Ortiz. - E como tal nunca foi modificada, permaneceu como era há um século. 
- Como assim, fronteira morta?
- Uma fronteira que não causa preocupação. Em frente há um grande deserto. 
- Um deserto?
- Um deserto, efectivamente, pedras e terra seca, chamam-lhe o deserto dos Tártaros. 
Drogo perguntou:
- Porquê dos Tártaros? Estiveram lá os Tártaros? 
- Antigamente, creio. Mas é mais uma lenda, ninguém deve ter passado por lá, nem sequer nas guerras do passado. 
- Assim sendo, a Fortaleza nunca serviu para nada?
- Para nada - disse o capitão."


Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros, trad. Nuno Camarneiro, Barcarena: Marcador Editora, 2014, pp. 19-20. 

Saturday, May 7, 2016

NO ALTO




"A felicidade está onde a pomos. 
É preciso reentrar no paraíso. 

Pequena, animosa mata de ulmeiros. 
Bolbo vivaz de begónia. 
Um abraço. Beijo
que não finda suas dinastias. 

O império de só matar a sede. 
A sombra que um cego ainda descortina."


António Osório, "Ofício", in António Osório, Lisboa: Presença, 1984, p. 229. 

Friday, May 6, 2016

PUPILO



"Tal é o sentido indizível mas inteligente e praticável que o mundo transmite ao Homem, o pupilo imortal, através de cada objecto palpável. Para este fim da Disciplina conspiram todas as partes da Natureza."

Ralph Waldo Emerson, A Natureza, trad. Berta Bustorff Silva, Cascais: Sinais de Fogo, 2001, p. 67. 

Thursday, May 5, 2016

LIMIAR


"Em primeiro lugar, a simples percepção das formas naturais é um deleite. A influência de formas e acções na Natureza é tão necessária ao Homem que, nas suas funções mais elementares, parece jazer no limiar entre bem material e beleza. Para o corpo e a mente oprimidos pelo trabalho ou por más companhias, a Natureza é medicinal e restaura o tónus. O comerciante, o advogado, saem da algazarra e do bulício das ruas e, ao ver o céu e os bosques, voltam a ser homens. Na sua eterna calma, reencontram-se. A saúde dos olhos parece exigir um horizonte. Nunca estaremos cansados enquanto pudermos ver bastante longe."

Ralph Waldo Emerson, A Natureza, trad. Berta Bustorff Silva, Cascais: Sinais de Fogo, 2001, pp. 28-29. 

Wednesday, May 4, 2016

ÍMPAR



"Sócrates - Não é, portanto, exacto dizer: «onde está o temor está também o respeito», mas sim que onde está o respeito está também o temor. O temor, em minha opinião, tem um campo mais vasto do que o respeito. Este é uma parte do temor, como o número ímpar é uma parte do número em geral, de modo que nem sempre há número ímpar onde há número, mas há sempre número onde há número ímpar. Estás agora a seguir-me?"


Platão, Êutifron, trad. M. Oliveira Pulquério, Lisboa: Editorial Verbo, 1972, p. 47. 

Tuesday, May 3, 2016

LARGO



"Constrói-se a linha sem ajuda. 
Vive de sua lágrima o cristal, 
A asa do anjo não se traduz
Em plástica, 
E o som ignora o eco. 

O espírito no escuro se levanta
Sem flecha e oriente certo
Vazio de pássaros não se vela o céu, 
E, sem mover-se, a pura chama arde."


Murilo Mendes, Poesia, Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1983, p. 108. 

Monday, May 2, 2016

CIRCULAÇÃO



"Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
É a circulação e o movimento infinito. 
Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido."


Murilo Mendes, Poesia, Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1983, pp. 51-52. 

Sunday, May 1, 2016

IABAS



"As iabas não gozam, já sabemos; mas também não amam e não sofrem porque, como está provado, às iabas falta coração - vazio o peito, oco e sem remédio."

Jorge Amado, Tenda dos Milagres, 5ª ed., Mem Martins: Publicações Europa-América, 1983, p. 142.