Tuesday, August 31, 2021

SAUDAÇÃO AO MUNDO COM O MEU SÉQUITO DE FANTASMAS

 




"Às vezes acordo à noite
Sobressaltado pelo galope secreto do vento 
Pela conversa transparente
De mulheres nuas
Pelo fragor de antigas batalhas
E o humor doce de mortos recentes. 
E então invadido por imensos 
Fornecedores de borboletas
Possuído pela canção incessante
Do mar que me persegue desde a infância
Saúdo a alvorada com estranhas metáforas
Dou os meus bons dias ao mundo
com o meu séquito de fantasmas."


Guillermo Martínez González, in Um País que Sonha – cem anos de poesia colombiana (1865-1965), selec. Lauren Mendinueta, trad. Nuno Júdice, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 351.

Monday, August 30, 2021

ENTE

 


" - Anjo! - exclamou o ente incompreensível, envolvendo-se ambos com um olhar que foi um manto de azul celeste. - Anjo, o céu ser´a tua herança."


Honoré de Balzac, Serafita, trad. Álvaro Ribeiro, Lisboa: Ésquilo, 2006, p. 159. 

Sunday, August 29, 2021

REGRESSO

 



"Se as nuvens não antecipam nas suas formas a história dos homens
Se as cores do rio não figuram os desígnios do Deus das Águas
Se não remendas com as tuas mãos de astromélias as fendas da minha alma
Se os meus amigos não são uma legião de anjos clandestinos
Que será de mim"


Raúl Gómez Jattin, in Um País que Sonha – cem anos de poesia colombiana (1865-1965), selec. Lauren Mendinueta, trad. Nuno Júdice, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 248. 

Saturday, August 28, 2021

BOGALHO

 



"quem eram aqueles com as nossas caras 
quando deixámos de ser?

poderia ter ocorrido noutro lugar
foi ali 
passou-se connosco
diz-nos respeito
temos até uma vaga ideia de nós 
de termos estado na vida
à espera da vez que nunca chegou"


Rosa Oliveira, Tardio, Lisboa: Tinta-da-China, 2017, p. 109. 

Friday, August 27, 2021

A PROCURA

 


“Procurei Deus de dia e de noite com sinceridade e paciência
Procurei o seu nome nas páginas da lista telefónica
E nos meus sonhos de mergulhador nadei atrás dele
por águas mansas e águas revoltas
E nas grandes precipitações de água corri atrás dele contra a corrente
como um salmão louco
E procurei-O na ausência daqueles que amei
E nos defeitos das minhas mansidões para com eles
E fui atrás dEle por pequenas cidades sujas
E procurei a sua fotografia todas as manhãs nos jornais
entre os assassinos, os palhaços, os inventores e os sábios inúteis
Amei no riso aromático das raparigas o Seu riso
E no olhar do meu próximo quis adivinhar as suas intenções para comigo
E encontrei morte em todos os lados,     morte       e morte

Mas procurar é o que importa”


Eduardo Escobar, in Um País que Sonha – cem anos de poesia colombiana (1865-1965), selec. Lauren Mendinueta, trad. Nuno Júdice, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 230. 


Thursday, August 26, 2021

LINHAS DE FORÇA



“Hildegarda apercebeu-se da piscadela de olho de Hiltrude.
- Se quereis que uma árvore dê flor, tendes de abraçá-la – dissera Hildegarda a Hiltrude no princípio do ano. – As árvores também têm coração, não sei se sabeis – acrescentara, sorrindo.”


Joan Ohanneson, Música Escarlate, trad. Maria Eduarda Correia, Lisboa: Gótica, 2002, p. 66.


Wednesday, August 25, 2021

UM VENTO EM SUSPENSO

 


“Está bem que a vida de vez em quando
nos despoje de tudo.
Na obscuridade
os olhos aprendem a ver mais claramente.
Quando a solidão
é o total vazio do corpo e das mãos
há caminhos abertos para o mais profundo
e para o mais distante.
No silêncio as amadas vozes
Renovam docemente as suas palavras
e as paredes resguardam
o rumor conhecido dos ausentes passos.
Os lábios que antes foram
sítio de amor nas caladas tardes
aprendem a grandeza
da canção rebelde e angustiada.
Há um vento em suspenso
sobre as altas árvores, um repicar de chuva
sobre ruínas obscuras e fumegantes,
um gesto em cada rosto
dizendo amargura e derrota.
Segue-se um lento cair de horas inúteis,
desprendidas do tempo
e mais além do minúsculo círculo do mundo,
- aquele mundo fechado
com as suas vagas estrelas e bruma de sonhos –
desperta intensamente
a ferida voz do homem povoador da terra.
Antes estavam longe, quase desconhecidos,
o combate e o trovão.
Agora corre o sangue pelos leitos iguais
do ódio e da esperança
sem que nada detenha a invasora corrente
das forças eternas.”


Maruja Vieira, in Um País que Sonha – cem anos de poesia colombiana (1865-1965), selec. Lauren Mendinueta, trad. Nuno Júdice, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, pp. 121-122.

APIEDAR-SE

 




“A bárbara inocência,
os olhos indecisos e as mãos,
o horror de vaguear sem um delito.
E batia-se no peito, dizia para si próprio,
suspiro por outra coisa, que eu queria,
enquanto Deus, no vento, respirava.
Inventou-o uma manhã
(consistiu nisto o privilégio)
E farejou o seu terror, os seus crimes, o seu sonho.
Então conheceu a alegria de não ser inocente.
E apiedou-se de Deus
e alojou-se nas suas úlceras sem céu.”


Héctor Rojas Herazo, in Um País que Sonha – cem anos de poesia colombiana (1865-1965), selec. Lauren Mendinueta, trad. Nuno Júdice, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 109.

Tuesday, August 24, 2021

BARTOLOMEU

 




“O meu nome? Eu tenho muitos: canção, loucura, anelo.
A minha acção? Vi uma ave fender a tarde, fender o céu…
Procurei o seu rasto e sorri chorando,
e o tempo meus ímpetos foi domando.

A síntese? Não se soube: um dia fecundarei a leira
onde me irão semear. Dom Ninguém. Um homem. Um louco. Nada.

Uma sombra inquietante e passageira.
Um ódio. Um grito. Nada. Nada.
Ó desprezo, ó rancor, ó fúria, ó raiva!
A vida está de sóis diademada…”


Porfirio Barba Jacob, in Um País que Sonha – cem anos de poesia colombiana (1865-1965), selec. Lauren Mendinueta, trad. Nuno Júdice, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p. 47. 



Monday, August 23, 2021

DIAS



“Há dias em que somos tão móveis, tão móveis, 
como os leves fios que o vento faz voar…
Talvez sob outro céu a Glória nos sorrisse…
A vida é clara, ondulante e aberta como um mar…

E há dias em que somos tão férteis, tão férteis, 
como em Abril o campo, que treme de paixão;
sob o influxo propício de espirituais chuvas, 
da alma vão brotando florestas de ilusão.

E há dias em que somos tão sórdidos, tão sórdidos, 
como a entranha obscura de obscura pederneira; 
a noite surpreende-nos, com as suas profusas lâmpadas, 
em rútilas moedas taxando o Bem e o Mal. 

E há dias em que somos tão plácidos, tão plácidos…
- meninice do crepúsculo! lagoas de safira! – 
que um verso, um trinado, um monte, ave que cruza, 
e até as próprias penas! nos fazem sorrir…

E há dias em que somos tão lúbricos, tão lúbricos, 
que nos oferece em vão a sua carne a mulher;
depois de enlear uma cintura e acariciar um seio, 
o redondo de um fruto nos faz estremecer. 

E há dias em que somos tão lúgubres, tão lúgubres, 
como nas noites lúgubres o lamento do pinhal;
a alma geme então sob a dor do mundo, 
e acaso nem o próprio Deus nos pode consolar. 

Mas há também ó Terra! um dia… um dia… um dia
em que erguemos âncoras para nunca voltar;
um dia em que sopramos ventos inelutáveis…
Um dia em que nada nos pode segurar!”




Porfirio Barba Jacob, in Um País que Sonha – cem anos de poesia colombiana (1865-1965), selec. Lauren Mendinueta, trad. Nuno Júdice, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, pp. 45-46. 


Sunday, August 22, 2021

TRANSBORDANTE



“ – Era muito. Eu ficava feliz se pudesse dizer «Nat é boa menina». Mas não posso. Não quero, o que é horrível. 
- Ninguém é bom. Somos como um vaso transbordante de vida que se parte ou resiste à pressão da força que o enche. «Só Deus é bom», o que quer dizer que as palavras nos abandonam quando as queremos mais próximas.”


Agustina Bessa-Luís, Prazer e Glória, 2.ª ed., Lisboa: Relógio D’Água, 2019, p. 168. 

Friday, August 20, 2021

VIZINHOS

 



"Não havia mais civilização cristã, nem outra qualquer. O seu terror e a sua fragrância inefável não passavam de justificações. Durba lembrava-se de tia Filomena, que morrera cega, sempre de bom humor e ensinando piano; e da maneira de ela falar de Deus, como do vizinho do lado, com franca familiaridade e respeito pelo seu cargo. 
- Não é fácil para Ele; não é nada fácil - dizia, sempre atarefada com as suas lições, servida por uma criada fiel e ríspida que ultimamente lhe servia de guia. João Pinheiro nunca deixara de socorrer tia Filomena, que era pobre mas parecia independente das suas desgraças; como se elas acontecessem a outra pessoa e ela fosse apenas espectadora e não vítima."


Agustina Bessa-Luís, Prazer e Glória, 2.ª ed., Lisboa: Relógio D’Água, 2019, p. 109. 

Thursday, August 19, 2021

NUM ESPAÇO DEMARCADO

 


"Renasce neste largo a minha infância
a minha vida tem aqui nova nascente
e jorra de repente com o ímpeto do início
O tempo não passou ou só a consciência
que provisoriamente sinto de voltar alguns anos atrás
a sensação que sei de reflectir sobre esse tempo
de ser um espectador de sucessivos sucedidos dias
de não viver apenas não viver sem sequer saber que vivo
num espaço demarcado onde as coisas e os homens
eram tanto que eram simplesmente
só essa consciência e sensação me fazem suspeitar
de que passou o tempo que nunca passou
O adro o fim da tarde o jogo do chinquilho
o ruído das malhas os paulitos
o sol poente sobre si redondo como simples
malha atirada por alguém pelo espaço do dia
e prestes a cair no mar como nas tábuas
o gesto perdulário e impensado de jogar
a malha como quem num gesto joga a vida
as silhuetas hirtas dos que assistem
de boné ou barrete na cabeça e mãos nos bolsos
tudo se passa aqui ali há trinta e cinco anos
como se aqui ninguém houvesse envelhecido
nem sofrido ou morrido ou suportado
toda a imensa fome requerida para produzir um rico
como se aqui ninguém tivesse demandado
longe de aqui o seu país noutros países
Tudo é o mesmo adro a mesma tarde o mesmo jogo
Até este café onde sentado olho e penso por olhar
é afinal o mesmo onde bebi a meias com meu pai
a primeira cerveja uma cerveja vinda
através do calor do dia de verão
nesse cesto de vime nesse poço mergulhado
É o mesmo o sabor que sempre sinto nesta boca
há muitos anos já mordendo o vinho o pão a vida
o sabor das mulheres das raparigas
inacessíveis sempre como um absoluto
sempre impossível tido no entanto por possível
o sabor da derrota ou o sabor da terra
sensível dia a dia nos meus dedos
e um dia susceptível de me encher a boca para sempre
Envelheci eu sei e só ganhei
o que perdi. Sou de uma adulta idade
E entretanto tudo a noite rodeou e o jogo acabou
e pelo céu do tempo houve um homem que passou
ou uma certa malha arremessada por acaso à vida
e viva na precária trajectória antes de caída."


Ruy Belo, “Transporte no Tempo”, in Todos os Poemas, 4.ª ed. , Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, pp. 420-421. 


Wednesday, August 18, 2021

A TÃO DIFÍCIL PAZ

 




A tão difícil paz facilmente alcançada
a máxima inquietação ao fim e ao cabo queda
a serenidade em duas curtas asas resumida
em corpo tão pequeno a vida toda
a voz da ambição afinal muda
perfeitíssima obra onde tudo se equilibra
- que assim se cubra quanto tanto se celebra
e uma chave só tal mundo abra a ninguém lembra”


Ruy Belo, “Transporte no Tempo”, in Todos os Poemas, 4.ª ed. , Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, p. 432.

Tuesday, August 17, 2021

MARCAR (para a memória de Jacinto R.)

 



"Deus abençoa o ser humano escondendo-lhe o futuro, condena-o tornando-lhe o passado invisível; não seria misericórdia ele marcar o ser humano por tudo?"


Hermann Broch, Os Sonâmbulos, trad. António Sousa Ribeiro, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, p. 118. 

QUE TEMPOS

 


“- Que tempos? – disse João Pinheiro. Estava gordo, pachorrento. Arrastava os pés e os erres ao falar. – Que tempos? Estou exactamente onde começou o período da Secessão de Viena, onde começou a reabilitação do feio. A arte tem que ser repugnante para não ser atingida pelas redes do Estado, que faz olhinhos à cultura, que quer fornicar com ela, e barato, se puder ser.”


Agustina Bessa-Luís, Prazer e Glória, 2.ª ed., Lisboa: Relógio D’Água, 2019, p. 55. 

Monday, August 16, 2021

AS PAIXÕES


“Estas preciosas instituições estão hoje quase esquecidas. Em Paris, por exemplo, há cerca de quarenta mil raparigas registadas na polícia em cursos para a educação da juventude, mas nesta imensa capital não há uma única boa academia onde possa aprender-se a montar a cavalo; nenhum exercício se pratica além da esgrima, da dança e do jogo da pela, mas até estes últimos conseguirmos tornar muito nocivos. A consequência disto, e de muitas outras coisas que não pretendo enumerar, é que as nossas paixões, ou antes, os nossos desejos e os nossos gostos (porque não temos assim tantas paixões) se sobrepõem, e muito, a todas as virtudes morais.”


Conde de Mirabeau, Erotika Biblion, trad. Aníbal Fernandes, Lisboa: Sistema Solar, 2021, p. 59. 


 

Sunday, August 15, 2021

A FRÁGIL FELICIDADE

 



“O paraíso é dos anjos e animais
articulemos nós só a palavra vida
Com a frágil felicidade sempre ameaçada
tristão despede-se da sua loura amiga
e extrai o seu prazer do esquecimento
Pesa-lhe na cabeça um pensamento
aves do bosque sede ao seu serviço
E tristão busca isolda com
a cruz no crânio dos loucos de outrora
Quando o sol se levanta traz a claridade 
deixai-os ir ao fundo da loucura no
país afortunado dos viventes
Mas nunca mais na vida a voltaria a ver
Cólera de mulher é coisa de temer
e a mulher de tristão fá-lo morrer 
antes que chegue o navio de isolda
Sem a alteridade não há unidade
A poesia pode muito para mim
pois vem iluminar os meus fantasmas
Quando uma sociedade se corrompe
corrompe-se primeiro a linguagem”


Ruy Belo, "Despeço-me da Terra da Alegria", in Antologia Poética, Lisboa: Círculo de Leitores, 1999, p. 218. 

Saturday, August 14, 2021

JUNO EM JÚPITER

 



"o furacão vermelho ruge
tempestade eterna
no silêncio astral
o olho ferve à nossa espera
chama e permanece
um planeta fluído roda
imperturbável no seu caos
e nós na terra envoltos em papel fino"


Rosa Oliveira, Tardio, Lisboa: Tinta-da-China, 2017, p. 81. 

Friday, August 13, 2021

APARENTEMENTE



"aparentemente os sítios não mudaram de local
as coisas permanecem nelas
algumas praguejam ao longe
por vezes as casas sobrevivem a custo
na sua respiração forçada
até os cheiros podem atravessar o tempo
trespassar pessoas
cruzar os dedos

lamento, gente toda desaparecida
tinha tanta pressa que já não vou a tempo"


Rosa Oliveira, Tardio, Lisboa: Tinta-da-China, 2017, p. 35. 


 

Thursday, August 12, 2021

FEROZES

 


"Depois do décimo compasso, Octávio, com ar recolhido, e agitando o queixo nos trechos de bravura, não ouvia nada. Olhava para o auditório, a atenção cortesmente distraída dos homens e para o arrebatamento afectado das mulheres, toda aquela retenção de pessoas entregues a si mesmo, retomadas pelos cuidados de cada hora, cuja sombra transparecia nos seus rostos fatigados. As mães estavam visivelmente sonhando que casavam as filhas, a boca pendida, os dentes ferozes, num abandono inconsciente; era a raiva daquela sala, um furioso apetite de genros, que devoravam aqueles burgueses ouvindo os sons asmáticos do piano. As filhas muito cansadas, adormeciam, com a cabeça entre os ombros, esquecendo-se de permanecerem direitas. Octávio, que tinha o desprezo das pequenas, interessou-se mais por Valéria; decididamente era feia, no seu estranho vestido de seda amarela, guarnecido de cetim preto, mas o seu espírito voltava-se sempre para ela, inquieto, seduzido mesmo; ao passo que, com os olhos vagos, enervado pela música, tinha o sorriso destrambelhado de um doente."


Émile Zola, Roupa-Suja (Pot-Bouille), trad. Pandemónio, Lisboa: Guimarães Editores, s.d., pp. 53-54. 

Wednesday, August 11, 2021

A ÁRVORE DA VIDA



“O dinheiro e a técnica tornaram-se desenfreados, o valor das moedas oscila e, apesar de todas as explicações para o irracional que o ser humano tem à mão, o finito não consegue seguir o infinito e nenhum meio racional consegue fazer regressar a insegurança irracional do infinito ao racional e controlável. É como se o infinito tivesse despertado para uma vida independente e concreta, transportado e acolhido pelo absoluto, que se ilumina no horizonte mais longínquo no momento que separa a ruína da ascenção, neste momento mágico da morte e da criação.”


Hermann Broch, Os Sonâmbulos, trad. António Sousa Ribeiro, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, p. 578. 

Tuesday, August 10, 2021

A FRÁGIL FELICIDADE

 



“ –E porque não agora e sempre? – perguntou ela num murmúrio?
- Porque aqui nada é estável – replicou Serafito desdenhosamente. – As felicidades transitórias dos amores terrestres são clarões que valem para algumas almas como a aurora das felicidades mais duradouras, da mesma maneira que o descobrimento de uma lei da natura logo faz supor, a alguns entes privilegiados, o sistema inteiro. A nossa frágil felicidade, deste mundo, não será o atestado da outra felicidade mais completa, tal como na terra, fragmento do mundo, atesta o mundo? Não podemos medir a órbita imensa do pensamento divino, do qual não somos mais do que uma parcela tão pequena quanto Deus é grande, mas podemos pressentir a extensão d’Ele, ajoelhar, adorar, esperar. Os homens enganam-se sempre nas suas ciências, porque não vêem que tudo, na sua esfera, é relativo e está condenado a uma revolução geral, a uma produção constante que necessariamente é arrastada para um progresso e para um fim. O próprio homem é uma criação finita, sem a qual Deus não seria.”


Honoré de Balzac, Serafita, trad. Álvaro Ribeiro, Lisboa: Ésquilo, 2006, pp. 31-32. 

Monday, August 9, 2021

OUTRORA

 


"Porém, o ser humano, o ser humano que foi outrora imagem de Deus, espelho do valor universal de que era portador, já não o é; mesmo que ainda possua um pressentimento de segurança de outrora, mesmo que pergunte a si próprio que lógica superior lhe trocou as voltas ao sentido, o ser humano, expulso para o horror do infinito, por muito que se arrepie, por muito que esteja cheio de romantismos e de sentimentalismo e sinta saudades da protecção da fé, ficará sem saber o que fazer, preso no mecanismo dos valores tornados independentes, e nada mais lhe resta do que submeter-se ao valor específico que se tornou a sua profissão, nada mais lhe resta do que tornar-se função desse valor - um membro de uma profissão, devorado pela logicidade radical do valor em cujas garras ficou preso."


Hermann Broch, Os Sonâmbulos, trad. António Sousa Ribeiro, Lisboa: Relógio D'Água, 2018, p. 411. 

OS JUÍZOS

 



" - Esta peça, no entanto, passa por ser a melhor que nós temos.
- Se assim é, dá-se com ela o mesmo que com muita gente que não merece o lugar que ocupa. No fim de contas, isto é uma questão de gosto; o meu anda ainda não deve estar formado; posso enganar-me; mas vós bem sabeis que eu estou acostumado a dizer o que penso, ou antes, o que sinto. Quere-me parecer que os juízos dos homens são muitas vezes movidos pela ilusão, pela moda, pelo capricho. Falei segundo a natureza; é muito possível, no entanto, que em mim a natureza seja imperfeita; mas também pode ser que a maior parte dos homens se esqueça muitas vezes de a consultar."


Voltaire, O Ingénuo, 2.ª ed., trad. João Gaspar Simões, Lisboa: Editorial Inquérito, s.d., p. 79. 

POR LONGO TEMPO

 



"A minha Dor, vesti-a de brocado,
Fi-la cantar um choro em melopeia,
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado,
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a.

Por longo tempo, assim fiquei prostrado,
Moendo os joelhos sobre lodo e areia.
E as multidões desceram do povoado,
Que a minha Dor cantava de sereia...

Depois, ruflaram alto asas de agoiro!
Um silêncio gelou em derredor...
E eu levantei a face, a tremer todo:

Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro!
E, misérrima e nua, a minha Dor
ajoelhara a meu lado sobre o lodo."


José Régio, Poemas de Deus e do Diabo, texto da 7.ª ed., Guimarães: Opera Omnia, 2020, p. 38.

Wednesday, August 4, 2021

SIGNOS

 



"Todos os meus silêncios
te serviram melhor
do que a minha
palavra mais obscura. 

Conheceste-me enquanto
tecia expressões noturnas, 
enquanto tecia o manto do fim."



Nuno F. Silva, Linguagem do Abandono, s.l.: Idioteque, 2018, p. 31. 

Tuesday, August 3, 2021

TURBA

 





"Quando eu nasci, Senhor! já tu lá estavas,
Crucificado, lívido, esquecido.
Não respondeste, pois, ao meu gemido,
Que há muito tempo já que não falavas...

Redemoinhavam, longe, as turbas bravas,
Alevantando ao ar fumo e alarido.
E a tua benta Cruz de Deus vencido,
Quis eu erguê-la em minhas mãos escravas!

A turba veio então, seguiu-me os rastros;
E riu-se, e eu nem sequer fui açoitado,
E dos braços da Cruz fizeram mastros...

Senhor! eis-me vencido e tolerado:
Resta-me abrir os braços a teu lado,
E apodrecer contigo à luz dos astros!"



José Régio, Poemas de Deus e do Diabo, texto da 7.ª ed., Guimarães: Opera Omnia, 2020, p. 29.

Monday, August 2, 2021

A VIDA

 


"Mas a vida é por vezes pequena para certas pessoas viverem nela. Envolvem-se num mundo complexo, onde a fantasia ultrapassa a realidade; perdem-se na transcendência do problema da colocação da espécie no tempo e no espaço tornando-se esquemas da complicada evolução da natureza humana; agem por instinto, como fizeram os antecessores desde as eras cenozóicas até à época presente."

Manuel de Lima, Um Homem de Barbas, 2.ª ed., Lisboa: Editorial Estampa, 1973, p. 106. 

Sunday, August 1, 2021

DESABROCHAR

 


"Esta noção dum humanismo medieval, tal como se extrai do estudo dos monumentos, excede singularmente, como se vê, qualquer definição que quisesse limitá-la à herança mais ou menos precária das culturas antigas. Existe, é certo, um humanismo dos humanistas, mas existe um outro, mais largo e, se assim se pode dizer, mais autêntico, porque pede infinitamente menos à tradição do que à vida. A arte da Idade Média faz-nos conhecer a sua vasta concepção do homem e das suas relações com o universo. Não o isola. Mostra-o a braços com as exigências, as misérias e as grandezas do seu destino. Não se detém no desabrochar da sua juventude, salvo quando o deita sobre a pedra dos túmulos."

Henri Focillon, Arte do Ocidente -  a Idade Média Românica e Gótica, 2.ª ed., trad. José Saramago, Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 19.