Tuesday, November 29, 2022

ARRUMAR

 



"Às vezes é tudo claro como o voo das aves
sabem do vento que não as desarruma.

O sítio certo das coisas devia ser o das aves
não lavram nem semeiam
conhecem as sementes.

Às vezes sabemos onde nos fomos deixando
voltamos esquecemo-nos do vento
espalhou-nos por toda a parte
fragmentos de pouco jeito.

Poucas vezes as coisas são claras
talvez tenham alguma luz
os bocadinhos do tempo bom
abrigados na arca do peito."


Zeferino Silva, Bosque de Romãzeiras, Hexágono, 2019, p. 45. 

Sunday, November 27, 2022

ENCONTRO

 




"Pressentimos que, nas nossas vidas, há um anúncio próximo, uma fusão inexorável, e cultivamos o abrandamento do tempo, o afastamento do instante, para tornarmos manso o lance inevitável.
Damos nomes ao que somos juntos, reconhecendo que o Amor é o seu único nome, mas tememos dizê-lo para não apressar a morte. 
Não somos daqui, não somos estrangeiros aqui, nem aqui nos sentimos em exílio. O lugar do nosso nascimento estará connosco até ao fim. E, mesmo isso, não o dizemos abertamente. 
Sabemos que nada é indiferente no nosso encontro verdadeiro de pessoas. Mas é tão grande o que se anuncia que preferimos calar o que vemos anunciado. O nosso encontro é original, profético e único. Faz parte das origens, inscreve-se num desígnio que ultrapassa em muito os amantes envolvidos e, no entanto, envolve apenas os que trocaram entre si essa palavra."


Maria Gabriela Llansol, Onde Vais, Drama-Poesia?, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, pp. 286-287. 

AS COISAS

 



"As coisas parecem perfeitas quando soubemos dizê-las.

Mesa virada para nascente, às primeiras aves.
Os pássaros dão ao pão a música das flores;
a tília é sol mel sereno.

É bom este silêncio."


Zeferino Silva, Bosque de Romãzeiras, Hexágono, 2019, p. 83. 

Friday, November 25, 2022

CONHECER

 


"A vontade de Deus. Como conhecê-la? Se nos silenciarmos, se calarmos todos os desejos, todas as opiniões e se pensarmos com amor, com toda a alma e sem palavras: «Seja feita a vossa vontade», o que sentiremos dever fazer de seguida, sem hesitações (mesmo que, sob certos pontos de vista, possa constituir um erro), é a vontade de Deus. Pois se lhe pedirmos pão, não nos dará pedras."


Simone Weil, A Gravidade e a Graça, trad. Dóris Graça Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 51. 

Thursday, November 24, 2022

FUSO

 



"Estou cansado não conduzo
porque é meu fado este fuso?
Este fuso da vida que me é idolatrado
tem-me a vida perdida por meu fado.
Quero a vida quero o lado bom da vida
quero a morte suprimida
quero a morte nesse dia
quero a vida nostalgia
quero morrer no dia certo
quero viver de ti mais perto
Estou cansado não conduzo
porque é na morte este fuso?"

António Gancho, O Ar da Manhã, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 140. 

Wednesday, November 23, 2022

SIMETRIA


 "Viver com as imagens é a nossa arte de viver. Reparem, sem o seu fulgor não saímos da simetria. E nesta nada vemos. Vamos presumir uma saída. Veremos o que o nosso sexo sonha. E este sonha apenas a parte da simetria que lhe cabe. A outra parte pertence à imagem que vai tomando vida. Avançam para ela e ela avança sobre nós. Esse movimento torna-nos obsessivos e inconstantes. Não podemos viver sem ele, mas a imagem não se mantém fixa. O fulgor desloca-se. Não podemos desejar o novo e querê-lo sem surpresa. Começa a irradiar do sexo e alteia-se. Do aqui evolui, difunde-se por todo o há que possamos admitir."

 

Maria Gabriela Llansol, Onde Vais, Drama-Poesia?, Lisboa: Relógio D'Água, 2000, p. 34. 

Tuesday, November 22, 2022

PUREZA

 




"Tudo o que é vil ou medíocre em nós revolta-se contra a pureza e tem necessidade, para salvar a existência, de macular essa pureza.
Macular é modificar, é tocar. O belo é aquilo que não podemos desejar mudar. Assumir poder sobre algo, é macular. Possuir, é macular.
Amar com pureza é consentir na distância, é adorar a distância entre si e aquilo que amamos."


Simone Weil, A Gravidade e a Graça, trad. Dóris Graça Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 2004, p. 68.

Monday, November 21, 2022

MUNDO

 


"Tudo podia continuar. A guerra queimara uns, aquecera outros, tal como o fogo tortura ou conforta se estivermos dentro dele ou à sua frente. Temos de nos desenrascar, e acabou-se. Bem dizia Lola que eu estava muito mudado. A vida é uma coisa que nos torce e esmaga a face. Também a sua conta. A miséria é gigante, serve-se do nosso rosto como uma esfregona para limpar a sujidade do mundo. Mas ainda assim lá continua."


Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao Fim da Noite, trad. Aníbal Fernandes, 6.ª ed., Lisboa: Ulisseia, 2014, p. 209. 

Sunday, November 20, 2022

SUGESTÃO

 


"A ideia da inocência olha em duas direcções. Ao recusar a participação numa conspiração, ficamos dela inocentados. Mas permanecer inocente pode ser também permanecer ignorante. A questão não está em escolher entre a inocência e o conhecimento (ou entre o natural e o cultural), mas antes numa escolha entre uma abordagem completa da arte que tente relacioná-la com todos os aspectos relevantes da experiência e a abordagem esotérica de um punhado de especialistas que formam um sacerdócio devotado nostalgicamente a uma classe privilegiada no seu declínio. (Declínio, não diante do proletariado, mas ante o novo poder das empresas e do Estado.) A verdadeira questão será: a quem deve pertencer o poder da arte do passado? Àqueles que conseguem aplicá-lo às suas próprias vidas ou a uma hierarquia cultural de especialistas de relíquias?"

 

John Berger, Modos de Ver, trad. Jorge Leandro Rosa, Lisboa: Antígona, 2018, pp. 45-46. 

Saturday, November 19, 2022

PORTA



"Os intelectuais soen muy ben zurrar
na literatura na poesia no café
Ai how ridiculous ridiculous they are
é verdade ou não, Lord Byron, é ou não é?
Nas pastelarias nas igrejas no café
ai sobretudo sobretudo no café
é verdade ou não é, Lord Byron, é verdade ou não é?
Ai how ridiculous they are
zurrar o sabem no da fror
tempo em que as burras muito hão-de ganhar
como é de D. Dinis (com modificações) o teor"


António Gancho, O Ar da Manhã, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022, p. 16. 

 

Friday, November 18, 2022

OLHAR (décimo sexto ano)

 


"Contudo, para ver que vem antes das palavras, e que nunca pode ser propriamente reproduzido, não é uma questão de uma reacção mecânica aos estímulos (Pode apenas ser pensado desse modo se isolarmos a pequena parte do processo que diz apenas respeito à retina.) Só vemos aquilo para que olhamos. Olhar é um acto de escolha. Desse acto resulta que o que vemos é posto ao nosso alcance, embora não necessariamente ao alcance da mão."

John Berger, Modos de Ver, trad. Jorge Leandro Rosa, Lisboa: Antígona, 2018, p. 18. 

Thursday, November 17, 2022

NATUREZA-CONCEITO


 "Mas nos confins da cidade, onde ouvi dizer que começa a natureza, ela própria não está lá, e sim a natureza-antologia. Suponho que também sobre a natureza muito já tenha sido impresso para que ela possa continuar sendo o que costumava ser. No lugar da natureza difunde-se no arrabalde das cidades a natureza-conceito, o conceito de natureza. Uma mulher que, na orla da floresta, protege a vista com o guarda-chuva trazido para qualquer eventualidade, observando o horizonte, topa com certa mancha que tem a impressão de conhecer de algum quadro e exclama: "Parece uma pintura!". Trata-se de uma subordinação a um conceito rígido, circunscrito e bem definido de natureza como modelo pictórico. Subordinação, aliás, não tão rara; nossa relação com a natureza tornou-se falsa. Pois adquiriu um propósito. A tarefa que lhe cabe é a nossa diversão. Já não existe por si própria. É função de um objetivo. No verão fornece bosques onde podemos cochilar, lagos para remar, campos para nos bronzearmos, poentes para nos encantar, montanhas para o turismo e belezas naturais para atrair excursões de estrangeiros. Reduziu-se às páginas de um Baedeker."

 

Joseph Roth, Berlim, trad. José Marcos Macedo, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 15-16. 

Wednesday, November 16, 2022

COBERTO


"É preciso esboçar o quadro como se estivesse o tempo coberto, sem sol e sem sombras pronunciadas. Não existem, verdadeiramente, nem tons claros nem sombras. Para cada objecto existe uma massa colorida, reflectida de todos os lados e maneiras diferentes. Imaginemos nesta cena que se passa ao ar livre, e numa atmosfera parda, um raio de sol que ilumine subitamente os objectos: teremos então tons claros e sombras, no sentido usual, que serão todavia puramente acidentais. A verdade profunda de tudo isto - que para alguns pode parecer singular - é a harmonia da cor na pintura. Coisa estranha!, mesmo entre os coloristas esta propriedade foi compreendida por bem poucos pintores!"


Eugène Delacroix, Diário, trad. Fernando Guerreiro, LiSboa: Editorial Estampa, 1979, pp. 103-104. 

Sunday, November 13, 2022

NATURAL


 "Estamos fartos até ao tédio de ouvir dizer que o homem é bom, que o homem é mau.  O homem não é bom nem mau de seu natural: é aquilo que o fazem ser; é o que realmente deve ser neste mundo, segundo a organização deste mundo, organização viciosa, aleijada, falsa, pecaminosa, quer o defeito começasse no paraíso terreal, quer nos multiplicados infernos que as idades se foram inventando através das civilizações."

 

Camilo Castelo Branco, Carlota Ângela, 7.ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1924, p. 204. 

DESPRENDESSE

 




"Se deste outono uma folha,
apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,
e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria."


Eugénio de Andrade, "O Sal da Língua", in Poesia, 2.ª edição revista, Porto: Fundação Eugénio de Andrade, 2005, p. 521.

Thursday, November 10, 2022

NASCER

 



"Sou o fogo e a sede e as flores

Pertenço ao sol, sou do sol dos meus dias
Incendiados na dor das ausências

E sou. Sou do mar dos navios
Desses apenas que partem
Da cor de um aceno que exausto
É rouco no seu agitar

E pertenço à dor das espadas
E àquelas que vestem o luto
Preparando o dia da guerra
Entre os irmãos — os seus filhos —

E caminho da minha infância
Por entre as bilhas da água
Levedando o barro e o linho

E do colo sou
E ouvindo adormeço
Ouvindo o regresso

De minha mãe"


Daniel Faria, Poesia, 2ª ed., ed. Vera Vouga, Lisboa: Assírio & Alvim, 2015, p. 422. 

Wednesday, November 9, 2022

RAMADAS

 



"O meu amigo tarde a regressar,
pra vir viver entre as ramadas verdes.
Em que jardins, não sei, tarda o amigo
              de vir donde é."


Amândio Reis, Antilha, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 68. 

AS COISAS

 



"Todas as coisas têm um fim à vista.
O fim à vista está nas coisas todas. 
As coisas sabem ser o fim que as coisas
                 não têm à vista delas."


Amândio Reis, Antilha, Lisboa: Língua Morta, 2022, p. 63. 

Tuesday, November 8, 2022

PALAVREADO

 



" - É, pelo menos assim o creio; mas antes de mais nada, queira responder-me a uma pergunta, para eu o  ouvir com sossego: D. Carlota vive?
- Vive, e vive feliz, pois não vive!
- Feliz!... diz o senhor...
- Eu que o digo é porque o sei... Mulheres, meu amigo, mulheres! V. S.ª espanta-se? Bem se vê que está ainda muito verde, e não conhece o mundo... Longe da vista, longe do coração. As raparigas d'agora são como as ventoinhas. Palavreado e mais palavreado; novelas e mais novelas; crendices e papagaíces; e de tino e juízo nem para mandar cantar um cego."


Camilo Castelo Branco, Carlota Ângela, 7.ª ed., Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1924, p. 104.  

Monday, November 7, 2022

FLUTUANTE


"Vi-o como se fosse Diónisos a personificar o outono. Ao cimo do caminho das faias, onde as folhas rubras se confundem no ar e no chão com as folhas de prata. A cabeça coroada de romãs, pinhas, douradas folhas de videira. Uma das romãs abria, ferida pelo bico de um pássaro, deixava o grená, a gota escarlate, descia pelo negro cabelo. Nos braços, uma cesta com cachos de uvas tintas e brancas; uvas dedo-de-dama. Vi-o, como se fosse pedraria de mosaico inscrita em cercadura no chão do pátio. Perto, os rabirruivos entram e saem do poço. Isto foi muito cedo, pelas sete da manhã. Subi, Já sabia que não havia ninguém. Nunca precisei do deserto para ter miragens nem paraísos artificiais. A imagem, e agora a sério, não é um predicado de grande constância. É mesmo um predicado de nenhuma constância. Totalmente flutuante."


João Miguel Fernandes Jorge e Pedro Calapez, O Próximo Outono, Lisboa: Relógio D'Água, 2012, pp. 196-197. 

Sunday, November 6, 2022

SECRETOS FELINOS

 



"Às vezes as palavras querem ver o que dizem
e a morte estremece atrás da sua máscara
por momentos o pânico sobe aos olhos do poema
porque o mundo ameaça coincidir com o mundo.
Mas da areia da sede os secretos felinos lançam
olhares furtivos, 
são agora os meus listrados tigres brônzeos
e saltam o obstáculo dos seus nomes rolantes.
Querem ser mais que oníricos, mais que pura cadência
e atravessam o deserto exterior ao deserto
vão direitos às sombras dos seus saltos futuros
e gulosos devoram o corpo exangue da miragem:
estão hostis estão cativos na sua errância lúdica.
Agora que farei com a tua imagem dilacerada
se para voltar a ter-te deves deixar de existir?
Perseguição, volúpia, os meus tigres disparam-se
a minha solidão deita-se ao sol dentro do nome, 
o poema está nu, agora que estou nu, e vacilamos, 
loucos guerreiros são as palavras contra a morte."


Laureano Silveira, Os Secretos Felinos, Porto: Limiar, 1991, p. 46. 

Saturday, November 5, 2022

SOLIDARIEDADE

 


"Por outro lado, sendo tradicionais as orações dos defuntos determinados (promovidas, naturalmente, pelos seus parentes e amigos), a Igreja acabou por instituir também orações por todos os fiéis defuntos. De facto, vinham igualmente da época pagã os sacrifícios oferecidos pelos parentes do defunto como expressão da solidariedade entre os vivos e os mortos da mesma família, e como elemento fulcral do sistema de dons e contradons estabelecido entre uns e outros: os vivos ajudavam os mortos na sua penosa caminhada até ao destino final, e os mortos protegiam os vivos fazendo uso dos seus poderes invisíveis. Esta solidariedade estabelecia-se não só no círculo natural, puramente humano, do parentesco, mas também no círculo mais vasto da assembleia dos fiéis, da ecclesia, criando laços sobrenaturais entre as suas duas partes, a Igreja militante, na Terra, e a Igreja triunfante, no Céu (não estava ainda bem definida a sua terceira parte, a da Igreja padecente, no Purgatório)."

 

José Mattoso, Poderes Invisíveis - O Imaginário Medieval, Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2013, pp. 56-57. 

Friday, November 4, 2022

OS MORTOS

 


"No fundo, quase todos os elementos e manifestações do culto dos mortos se baseiam na convicção de que os seus poderes misteriosos podem ser captados por meio do culto: os vivos prestam-lhes homenagem e sacrifícios e eles retribuem com a sua proteção. O comércio e a troca de favores, porém, não significam promiscuidade. Os mortos e os vivos devem estar separados para que a morte não destrua nem ameace a vida. O verdadeiro culto dos mortos exclui toda a qualquer espécie de necrofilia ou, mesmo, de macabro. O culto dos mortos representa uma das mais persistentes da luta que a humanidade sempre travou contra a morte."

José Mattoso, Poderes Invisíveis - O Imaginário Medieval, Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2013, p. 29. 

Wednesday, November 2, 2022

FIÉIS

 



"O Senhor disse-me «Filho do homem, estes ossos poderão voltar à vida?» Eu respondi: «Senhor Deus, só vós o sabeis».
Ele disse-me: «Profetiza sobre estes ossos e diz-lhes: «Ossos dissecados, ouvi a palavra do Senhor. Assim fala o Senhor Deus a estes ossos: Eis que vou introduzir em vós o sopro da vida para que revivais. Dar-vos-ei nervos, farei crescer a carne que revestirei de pele e depois meter-vos-ei o sopro da vida, para que revivais. Sabereis assim que Eu sou o Senhor»."


Ez 37, 3-6. 

Tuesday, November 1, 2022

TODOS OS SANTOS


"Se a tela pintada por um artista pudesse pensar e falar, certamente não se lamentaria por ser incessantemente tocada e retocada por um pincel, e não invejaria tão pouco a sorte desse instrumento, pois saberia que não é ao pincel, mas ao artista que o maneja, que deve a beleza de que está revestida. O pincel, por sua vez, não se poderia gloriar da obra-prima por ele feita; sabe que os artistas não ficam embaraçados, que se riem das dificuldades, e que gostam, às vezes, de escolher instrumentos fracos e defeituosos..."

Santa Teresa do Menino Jesus e da Santa Face,  História de Uma Alma - manuscritos autobiográficos, Paço de Arcos: Edições Carmelo, 1995, p. 298.