Saturday, February 28, 2015

DEBAIXO



"A colisão começara por ser avassaladora; depois tinha-se tornado dolorosa e um pouco desagradável. Estava certa que, sob as máscaras, os rostos não eram amigáveis."

Paul Bowles, Por Cima do Mundo, trad. David Antunes e Sara E. Eckerson, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 194. 

Friday, February 27, 2015

TEORIA DAS CORDAS




"A corda tensa que eu sou, 
O Senhor Deus é quem 
a faz vibrar...

Ai linda melodia imensa!...
- Por mim os dedos passa Deus    e então
Já sou apenas Som    e não
se sabe mais da corda tensa..."


Sebastião da Gama, Serra-Mãe, 3ª ed., Lisboa: Edições Ática, 1968, p. 29. 

ABSOLUTAMENTE


"Vão havendo festas pelas ruas, mas tudo está condicionado pela troca, pela sobrevivência. Nascemos, estamos aqui, viemos para viver, para gozar, não para o sacrifício. Somos, deveríamos ser, absolutamente livres como no início."

António Pedro Ribeiro, O Caos às Portas da Ilha, Porto: Edita-me, 2014, p. 152. 

Wednesday, February 25, 2015

RECRIAR




"Em teu macio olhar repousa o meu. 
E na face polida assim formada
se reflecte e recria o próprio céu."


Daniel Filipe, A Invenção do Amor e outros poemas, 11ª ed.,  Lisboa: Ed. Presença, 2006, p.62. 

Tuesday, February 24, 2015

MOLDURA



"O professor pousa a sua mala, põe um ar grave: 
- Vocês irão ser a ordem macedónia que recita versos há mais de trezentos anos nas ruas das várias capitais do Médio Oriente. Dizem poesia, de Píndaro a Kavafis, enquanto correm nus pelas ruas. Muitos acabam presos, mas não é assim que acaba toda a arte? Numa prisão? Se a deixassem viver, não estaríamos a falar da arte, mas sim de entretenimento. A melhor exposição da arte é a prisão. Lá dentro está no seu lugar, no seu verdadeiro lugar, que é de criminosa, que é de assassina dos lugares-comuns e de todas as ideias feitas. A melhor moldura de um quadro é a prisão. Já vimos várias em talha e em acrílico, mas a verdadeira arte terá sempre molduras de pedra. A ordem macedónia recita versos e mostra a arte. É a janela do calabouço, é admirável."

Afonso Cruz, Jesus Cristo Bebia Cerveja, Lisboa: Editora Alfaguara/Objectiva, 2012, p. 146. 

Monday, February 23, 2015

SERES



"Somos máquinas para conceber o inconcebível, e vamos vivendo como animais, subjectivos com gostos pessoais e preferências."


Paul Bowles, Por Cima do Mundo, trad. David Antunes e Sara E. Eckerson, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, pp. 97-98. 

Sunday, February 22, 2015

INÚTIL



"Quem me quiser amar, 
que me leve
fechado no meu mistério...

Me leve
como um presente imerecido, 
vindo não sabe de aonde
- sempre com medo que lhe fuja
da caixinha cor da bruma 
em que se esconde. 

Quem me quiser amar, 
me leve, sem se importar
de perguntar o que eu valho. 
- Já me basta essa alegria
de saber que me possui, 
de saber que eu valho mais
que quanto puder pensar."


Sebastião da Gama, Serra-Mãe, 3ª ed., Lisboa: Edições Ática, 1968, p. 138. 

Friday, February 20, 2015

VINDA



"Mas estejam atentos, porque eu chego de repente, como o ladrão. Feliz aquele que está de vigia e está vestido. Não terá de aparecer nu e ficar cheio de vergonha diante dos outros."

Ap 16, 15. 

Thursday, February 19, 2015

FRUÍVEL



"Não leves nenhum desespero para casa. 
Os que sofrem hoje
não são os que sofrerão amanhã. 
Os que imploram hoje
não são os que implorarão amanhã.
A medida de todas as coisas
é como a mulher que chora no centro do mundo. 
Chora para constatar que está viva. 
Serve-te de um copo de leite. 
Vê como é branco. 
Constata como é puro. 
Observa como só até um preciso momento
é útil e fruível.
Qualquer pergunta que possas fazer sobre ti
terá sempre uma única resposta
dentro de ti.
És como o leite, 
puro e fruível
até ao preciso momento em que se ferve
ou azeda."


Amadeu Baptista, in Poesia Digital - 7 poetas dos anos 80, org. Amadeu Baptista e José Emílio-Nelson, Porto: Campo das Letras, 2002, p. 107. 

Wednesday, February 18, 2015

CINERES



"«Produzir-te-á espinhos e abrolhos, e comerás a erva dos campos. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado; porque tu és pó e em pó te hás-de tornar.»"


Gn 3, 18-19. 

OLIM



"Dioniso chama a si os homens vanificando o seu mundo, esvaziando-o de toda a consistência corpórea, de todo o peso, rigor, continuidade, tirando toda a realidade à individuação e aos fins dos indivíduos."


Giorgio Colli, O Nascimento da Filosofia, trad. Artur Morão, Lisboa: Edições 70, 1998, p. 30. 

Monday, February 16, 2015

O ESTUDO



"- Ah, acautele-se! Não se esqueça de que ele pertence a um ramo dos Townsends. 
- Ele não é aquilo a que eu chamo um cavalheiro; não tem alma de cavalheiro. É extremamente insinuante; mas tem uma natureza vulgar. Bastou-me um minuto para o analisar. Ele é demasiado familiar...e eu detesto familiaridade. É um peralvilho capcioso. 
- Ah, bom - disse a Srª. Almond -, se toma uma decisão com tanta facilidade, é uma grande vantagem.
- Eu não tomo uma decisão facilmente. O que estou a dizer-lhe é o resultado de trinta anos de observação; e, para poder formar esse julgamento numa única noite, tive de passar uma vida inteira a estudar. 
- Muito possivelmente, tem razão. Mas o que interessa é que Catherine veja isso. 
- Vou oferecer-lhe um par de óculos! - declarou o Doutor."


Henry James, Washington Square, trad. Isabel Veríssimo, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2007, p. 32. 

Friday, February 13, 2015

O SÉCULO



"Enganei-me no século. Parece
incrível neste domingo líquido. Não
sei onde fica o mapa dos séculos, 
dai o meu crime de paralaxe. 
Falhei no século, num número de telefone. 
Nunca tive pontaria (por isso
não fui à guerra). Não me culpem 
de outros crimes. A minha
pontaria, se é que a tenho, 
só acerta nas palavras. 
Podem culpar-me
deste poema."


Luís Adriano Carlos, in Poesia Digital - 7 poemas dos Anos 80, Porto: Campo das Letras, 2002. p. 270. 

Thursday, February 12, 2015

FALTA


"Aliás, a pintura teve o mesmo efeito nos selvagens, quando a viram pela primeira vez: tomaram as figuras pintadas por homens vivos, interrogaram-nos e ficaram muito surpreendidos por não obterem qualquer resposta: este erro não pode certamente ser atribuído à falta de hábito de ver."

Denis Diderot, Carta sobre os cegos para uso daqueles que vêem, trad. Luís Manuel A.V. Bernardo, Lisboa: Vega, 2007, p. 79. 

Wednesday, February 11, 2015

ESPELHO



"Perguntei-lhe o que entendia por espelho; «uma máquina, respondeu-me, que põe as coisas em relevo, à distância, se estiverem dispostas convenientemente em relação a ela. É como a minha mão, que não precisa de ser posta ao lado de um objecto para que o sinta»"

Denis Diderot, Carta sobre os cegos para uso daqueles que vêem, trad. Luís Manuel A.V. Bernardo, Lisboa: Vega, 2007, p. 32. 

Tuesday, February 10, 2015

FRIO



"Sentia frio, apesar do aquecedor. Era um homem  velho que sentia frio. E toda a literatura do mundo não lhe servia de nada."

Françoise Sagan, Dentro de um mês, dentro de um ano, trad. Jaime Silva, Lisboa: Círculo de Leitores, 1983, p. 17. 

Monday, February 9, 2015

MENTE



"Posso dizer, em defesa desta cidade, que foi, até agora, tocada por menos aspectos negativos da civilização contemporânea do que maioria das cidades das suas dimensões. Mais importante ainda, agrada-me a ideia de que, à noite, a toda a minha volta enquanto durmo, a feitiçaria escava os seus túneis invisíveis em todas as direcções, enviadas por milhares de remetentes para milhares de destinatários incautos. Lançam-se feitiços, o veneno segue o seu curso; as almas são desapossadas de pseudo-consciências parasitas que espreitam nos confins desprotegidos da mente."

Paul Bowles, Memórias de Um Nómada, trad. José Gabriel Flores, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 415. 

Sunday, February 8, 2015

SHELTERING



"Certo dia, apanhei um autocarro na Quinta Avenida para ir à parte alta da cidade. Ao chegar a Madison Square, já sabia em que consistiria o romance e qual seria o seu título. Antes da Primeira Guerra Mundial, havia uma canção popular chamada «Down Among the Sheltering Palms», que estava gravada num disco na Casa dos Barcos, em Glenora; a partir dos meus quatro anos, esse era o disco que tocava antes de quaisquer outros sempre que lá ia passar o Verão. Não era a melodia banal que me fascinava, mas sim a estranha palavra «sheltering». De que estavam as palmeiras a proteger as pessoas, e até que ponto podiam estar elas seguras dessa protecção?"

Paul Bowles, Memórias de um Nómada, trad. José Gabriel Flores, Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p. 312. 

Saturday, February 7, 2015

VELADA



"Velada em véu tão gracioso, 
diz ele que estais de vela, 
a fazer de sentinela
até que chegue o Esposo. 
Que, como ladrão famoso, 
virá quando não penseis;
assim não vos descuideis."


Santa Teresa de Ávila, Seta de Fogo, trad. José Bento, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 99. 

Thursday, February 5, 2015

SILÊNCIO



"Não me é possível descrever, com exactidão, as agonias daquela noite. E ainda assim a divina misericórdia permitiu que dormíssemos a espaços. Mas o brusco acordar, a cada instante, era pungente. Por mim, o que mais me torturava era o silêncio. Um silêncio tenebroso, tangível, absoluto - o silêncio de uma sepultura cavada nas profundidades rócheas do globo e onde todas as artilharias troando, e as trovoadas do céu estalando, não poderiam fazer a menor vibração de som, fosse ele ao menos tão leve como um leve zumbir de mosca..."

Rider Haggard, As Minas de Salomão, trad. Eça de Queirós, Lisboa: Círculo de Leitores, 1978, p. 183. 

ESCOLHER



" - Bem-vindos, homens das estrelas, bem-vindos! Vedes hoje aqui coisas diversas; mas não tão belas, tão belas! Beijos e festas de mulheres são doces; mas é mais doce o brilho das lanças e o cheiro do sangue. Olhai em redor, gentes das estrelas; e se quiserdes casar nesta terra, escolhei, escolhei... Podeis levar destas raparigas as melhores, e tantas quantas pedirem os vossos desejos."

Rider Haggard, As Minas de Salomão, trad. Eça de Queirós, Lisboa: Circulo de Leitores, 1978, p. 126. 

Tuesday, February 3, 2015

PÁTRIA



"O mundo interior é, por assim dizer, mais Meu do que o exterior. Ele é tão intimo, tão secreto - quereríamos viver inteiramente nele - ele é tanto uma pátria. É pena que ele, tal como os sonhos, seja tão incerto. Será necessário que tão precisamente o melhor, o mais verdadeiro, nos pareça tão aparente - e que o aparente nos pareça tão verdadeiro? / O que é exterior a mim está, precisamente, em mim, é meu - e inversamente."


Novalis, Fragmentos, selec. e trad. de Rui Chafes, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, pp. 105; 107. 

Monday, February 2, 2015

OCULTO



"Somos os avisados do imprevisto, 
a ocultos ócios entregamos os dias, 
o esquecimento perseguidos até
à exaustão impõe-nos
duelos, arqueologias desmembradas
em terracota, linhos, plásticos
a perder de vista, calafrios."


Helga Moreira, in Poesia Digital - 7 poetas dos anos 80, org. Amadeu Baptista e José Emídio-Nelson, Porto: Campo das Letras, 2002, p. 203. 

Sunday, February 1, 2015

SECUNDA PORTA



"Com seus olhos estáticos na cumeeira
a casa olha o homem. 
A intervalos
lhe estremecem os ouvidos, 
de paredes sensíveis, 
discernentes:
agora é o amor, 
agora é a injúria. 
punhos contra a parede, 
pânico. 
Comove Deus
a casa que o homem faz para morar, 
Deus 
que também tem os olhos
na cumeeira do mundo, 
Pede piedade a casa por seu dono
e suas fantasias de felicidade. 
Sofre a que parece impassível. 
É viva a casa e fala."


Adélia Prado, "Oráculos de Maio", in Com Licença Poética - Antologia, org. Abel Barros Baptista, Lisboa: Cotovia, 2003, p. 114.