Wednesday, September 30, 2009

JANELAS VELHAS



" Prometeu

Não penseis que me calo de orgulho ou de arrogância. Mas um cuidado me devora o coração, ao ver-me assim insultado. E, no entanto, quem, senão eu, deu a estes deuses novos, sem reservas, privilégios honoríficos? Mas sobre isso eu me calo, pois vos diria o que já sabeis. Ouvi, porém, as desgraças dos mortais e como eles são pueris antes de eu os tornar inteligentes e senhores da razão. Quero falar, mas não para censurar os homens, antes para expor em pormenor a benevolência do que lhes dei. A princípio, quando viam, viam falsidades; quando ouviam, não entendiam; e, como as formas dos sonhos, misturavam tudo ao acaso, durante a longa existência; e não sabiam construir casas soalheiras de tijolo, nem sabiam trabalhar a madeira; viviam em antros subterrâneos, como formigas ligeiras, nas profundidades sem sol das cavernas. E não tinham indício seguro do Inverno, nem da florida Primavera, nem do fecundo Verão; mas faziam tudo sem discernimento, até eu lhes ensinar o enigmático nascer e o ocaso dos astros. Também descobri para eles os números, a principal das invenções engenhosas, e a combinação das letras, memória de tudo quanto existe, obreira mãe das musas. E fui o primeiro a pôr sob jugo os animais, submetendo-os ao cabresto ou aos corpos dos homens, para que sucedessem aos mortais nos trabalhos mais pesados, e atrelei aos carros cavalos dóceis, ornamento do luxo excessivo. E nenhum outro senão eu inventou para os marinheiros os navios de asas de linho, que vogam sobre o mar. E eu, que descobri tudo isto para os mortais - infeliz - não tenho maneira de me libertar do sofrimento presente."


Ésquilo, Prometeu Agrilhoado, trad. Ana Paula Quintela Sottomayor, Lisboa: Edições 70, 2008, p. 54.

Sunday, September 27, 2009

COMO UM VASO DE PRATA ENTRE O SOL E A SOMBRA



"- Isso é o que pensa. Mas não falemos disso. Já não quer encontrar-se com Nossa Senhora?
- Quero, mas ela virá quando quiser. Não vou maçá-la. Senão S. José ainda me bate com a vara de arquitecto. Bate-me na cabeça com ela.
Era uma mulher linda, madura como um fruto vermelho e prateado. Não se dizia isso do rabi Yo'Hanan, que redigiu o Talmud de Jerusalém e era rico, o que o impedia de estudar o livro santo? Ele era tão belo, um dos mais belos homens do mundo, e o Talmud diz assim: «Pegai num vaso de prata completamente novo e enchei-o de grãos de romã vermelha e colocai-o entre a sombra e o sol. Tal era assim a beleza de Rabi Yo Hanan». Como um vaso de prata entre o sol e a sombra, uma imagem deliciosa para falar da pura beleza humana que o Espírito amou."


Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - A Alma dos Ricos, 6ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 209.

Wednesday, September 23, 2009

TEMPO E LOUCURA



"Será possível narrar o tempo, o tempo em si e por si, o tempo como tal? Claro que não, isso seria uma perfeita loucura! Uma história em que se lesse «o tempo passava, decorria, fluía», e assim sucessivamente, não poderia ser designada narrativa por ninguém em seu perfeito juízo. Era como se um louco mantivesse uma única nota musical, ou um só acorde, ao longo de uma hora, e quisesse convencer-nos de que se tratava de música."


Thomas Mann, A Montanha Mágica, trad. Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009: p. 611.

Monday, September 21, 2009

CONVITE À TRANSCENDÊNCIA

"- Nunca estive no mais perfeito juízo - disse Alfreda, como se não falasse com ele. - Não sei porque isso não há-de acontecer. Se Nossa Senhora foi rica e bem educada, é natural que atenda o meu pedido. É um convite que lhe faço e ofereço-lhe toda a comodidade. Em vez de me aparecer em cima duma árvore, abro-lhe as portas da minha casa onde podemos conversar à vontade. Acha que isto é maluqueira?
- Não acho nada - disse o Touro Azul. - Tem uma certa lógica, mas nada me garante que os milagres tenham alguma lógica."


Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - A Alma dos Ricos, 6ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 123.

Sunday, September 20, 2009

OPORTUNIDADE DE RESPOSTA


"E um dia, ao saber Camilo céptico, Camilo com noites de sombrio desespero, palpando a coronha do revólver, não foi de propósito procurá-lo para lhe pregar Deus?
Era uma dessas tardes trágicas de Seide, de que o grande escritor fala nos Serões. A natureza chorava revolvida: a acácia de Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê fantasmas, e sai do horror com blasfémias e sarcasmos. Junqueiro encontra-o mergulhado na dolorosa tinta do crepúsculo, com a pala que escrevia sobre os olhos, absorto, calado, desesperado, o rosto marcado de dedadas, «esboçado numa argila cor de mel», segundo o retrato de Ricardo Jorge. Eu tinha-lhe medo... O poeta tenta arrancá-lo ao negrume que o envolve: desenrola teorias, explicações, argumentos; ataca-o a fundo, persuade-o talvez... Já o julga abalado e convertido, quando dessa figura, só osso e dor, saem enfim estas palavras irónicas:
... - Sim, sim, Junqueiro, você convencia-me se eu não tivesse ainda no estômago, desde o almoço, três bolinhos de bacalhau, que me estão aqui como três Voltaires."


Raul Brandão, Memórias (Tomo I), vol. I. Lisboa: Relógio D'Água, 1998, pp. 60-61.

Tuesday, September 15, 2009

AQUELE QUE FEZ O OUVIDO, NÃO OUVIRÁ?

"Hans Füchs tirou do canto da boca o cachimbo fumegante:
- E o senhor acredita em Deus, Major Taborda?
- Por que não havia de acreditar? Ou o senhor pensa que eu me presumo ser de geração espontânea? Para a compreensão do Universo, estamos limitados por nossos sentidos. Se eu tenho um defeito de visão, vejo duas coisas em vez de uma, ou não vejo nada. Isto não quer dizer que as coisas deixem de existir, ou que existam conforme eu as veja. O próprio cérebro humano, tão bem guardado na caixa craniana, não tem percepção para tudo, por mais genial que seja. Onde está o mundo? Para onde vai o tempo? Se não consigo ter uma noção exacta dessas idéias essenciais, mesmo com as fórmulas matemáticas mais transcendentes, devo baixar a cabeça, com humildade, e admitir que há uma inteligência superior à do homem, que conduz o equilíbrio do Universo e que também me criou, como criou o senhor. Essa inteligência é Deus. Não o Deus que ameaça e castiga implacavelmente, mas o Deus que se comunica com o homem mais rude e primitivo na hora de suas aflições. Um Deus que perdoa os meus erros. Há na Bíblia um versículo que jamais esqueci. É o que nos diz, num dos Salmos: «Aquele que fez ouvido, não ouvirá? Aquele que formou o olho, não verá?» O senhor dirá que são idéias simplistas. São. Mas Deus também é simples. A simplicidade é a grande lei do Universo. Só a achamos complicada quando ela nos escapa, ou por estupidez, ou por ignorância, ou por orgulho besta. Depois de cento e cinqüenta e dois anos neste mundo, é o que tenho de mais importante a lhe dizer. Não é muita coisa, reconheço. Mas não creio que, pelo fato de ser hoje o homem mais velho do mundo, eu tenha também de ser o mais sábio."


Josué Montello, Largo do Desterro, Lisboa: Livros do Brasil, 1993, p. 291
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Sunday, September 13, 2009

A QUESTÃO DA PERDIÇÃO (1)

"J.-C. C. - Descobrimos as primeiras bibliotecas assírias, quando não conhecíamos nada da escrita cuneiforme. Sempre a questão da perdição. O que salvar? O que transmitir e como transmitir? Como ter a certeza de que a linguagem que utilizo hoje será compreendida amanhã e depois de amanhã? Não é possível conceber uma civilização que não se coloque esta questão. O Umberto evoca a situação em que todos os códigos linguísticos terão desaparecido e em que todas as línguas permanecerão mudas e obscuras. Podemos igualmente imaginar o contrário. Se eu desenhar hoje um grafitti sem sentido num muro, amanhã poderá acontecer alguém afirmar tê-lo decifrado. Diverti-me durante um ano a inventar escritas. Estou certo de que outros poderiam amanhã encontrar-lhe um sentido."

Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, A Obsessão do Fogo, Lisboa: Difel, 2009, pp.168-169.

Wednesday, September 9, 2009

ESQUECER O SOFRIMENTO


" HÉCUBA

Ó filhos, vossa mãe, abandonada numa cidade deserta, está privada de vós.
Que lamentos! Que lutos!
Lágrimas deslizam sobre lágrimas <........>
no nosso lar. Ao menos quem morreu esqueceu-se do sofrimento.

CORO

Para quem sofreu a desgraça, como são doces as lágrimas,
os lamentos dos trenos e a música que causa tristeza!

ANDRÓMACA

Ó mãe daquele guerreiro que outrora derrubou mais homens
com a sua lança, ó mãe de Heitor, vês esta desgraça?

HÉCUBA

Vejo a acção dos deuses, como eles erguem às alturas o que nada
vale, e destroem o que parece ter grande valor."



Eurípides, As Troianas, trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa: Edições 70, 1996, p. 61.

Monday, September 7, 2009

A ESCADA DO CÉU


"Não me lembro de mortos nos teus interiores.
Os mortos, muitos já, que pesam como pedras vivas
Na bagageira usada do meu pensamento,
Esses mortos não invadem com as nódoas de memória
A tua, tão transportadora, e feita ao mundo
Na desordem fútil do esquecimento vão.

Mortos subtis, de repente nus, ou então cobertos
Duma terra adversa ao teu rodar atento
Surgem como sombras de amor e logo se dispersam
Sem que as palavras sirvam de refrão à existência
Muda ou gravada na alma um instante passageiro,
Urgentes ou cativos da minha vida móvel.

Mortos que nadam nesse lago do nada e acendem
Na bagagem o fogo que consome
As imagens de outrora e nunca saberão
Como pronunciar vivos a palavra mortos
Agora que contigo vou e não sei enfrentar
O reflectir do tempo no espelho vão da hora."


Armando Silva Carvalho, O Amante Japonês, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 51.

Sunday, September 6, 2009

EXERCÍCIO DE MAIÊUTICA

"- Corrupção, decomposição - repetia Hans Castorp -, mas isso é um processo de combustão, se não estou em erro, combinação com o oxigénio.
- Absolutamente correcto. Oxidação.
- E a vida?
- Também. Também essa, meu caro. A vida é, na sua essência, uma mera combustão das proteínas celulares, combustão essa que produz o calor animal que tanto nos agrada, do qual alguns de nós sofrem em demasia. Pois é, viver é morrer, não há como embelezar essa evidência - une destruction organique, como certo francês uma vez o formulou na sua leviandade inata. E é o cheiro que ela tem, a vida. Se não temos essa impressão, é porque o nosso juízo se corrompeu.
- E se nos interessarmos pela vida - ensaiou Hans Castorp - interessamo-nos também pela morte, não é verdade?
- Bom, em todo o caso, subsiste sempre uma certa diferença entre elas. Há vida quando a forma se conserva no devir da matéria.
- Mas para que queremos conservar a forma?
- Para quê? Bem, olhe que não há humanismo nenhum no que acaba de dizer.
- A forma é afectação.
- Não há dúvida de que o senhor hoje está muito resoluto. Verdadeiramente desenfreado. Mas basta por hoje - disse o conselheiro. - Estou a ficar melancólico (...)"


Thomas Mann, A Montanha Mágica, trad. Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2009: p. 302.

Wednesday, September 2, 2009

PELA PERSISTÊNCIA DA MEMÓRIA



"O sol é a tua ausência que se abrasa.
A lua é a tua ausência enfraquecida.
A tua ausência é toda a minha vida
E os meus versos também e a minha casa."


Teixeira de Pascoaes, "Elegias", in Para a Luz, Vida Etérea, Elegias, O Doido e a Morte, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 238.

Tuesday, September 1, 2009

O DEUS CERCADO



"Um homem que morre é o menos manipulado dos homens. A sua solidão é irreversível e impede-o de confundir a opção com a experiência. Os moribundos todos se parecem nessa infinita certeza duma situação feita já não de palavras mas de zumbidos e o gotejar de pingos de vento, no ouvido; um vento em que se enrola o profundo uso da vida; a crueldade faz-se um vão desperdício, o gesto humano, que foi carícia ou ameaça, solta-se como disperso duma grande máquina e deserta do seu sentido inicial. A viagem do moribundo é mais longa que a existência mais duradoura; em poucos minutos ele percorre espaços imensos, e tem encontro com formas que reconhece sem nunca lhe ser permitido imaginá-las. Todo o homem que morre é um deus cercado de poderes que teve e não gozou, porque temeu a sua divindade."


Agustina Bessa-Luís, O Mosteiro, 5ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, p. 175.