Sunday, October 31, 2010

BALANÇO DO MÊS 10


"(...)
Quando o luar do Céu azula a frágua,
E o Céu sem fim, a abóbada estrelada,
Como que tem os olhos rasos de água;

Nessa hora indecisa, angustiada,
Em que o Universo está às escuras,
Que não sabe se é antes a alvorada;

Eu pude ver, erguendo-se às alturas,
Aquela benta lágrima de pranto
Que despedem, morrendo, as criaturas,

E ao vir a noite, com nervoso e espanto,
Vi uma estrela a mais no azul do Céu:
E que um poeta, que era justo e santo,

Às horas do crepúsculo... morreu!
O simples coração de Julieta
Dentro da alma virgem de Romeu!

Uma criação de Deus, mas incompleta:
Águia que tinha um coração de pomba,
Cedro que dava folhas de violeta!

Ah, quando vejo uma flor que tomba
Meu coração não pode e, em sua dor,
Escarnece do Bem, que tudo zomba!

(...)"


António Nobre, , Lisboa: Leya BIS, 2009, pp. 177-178.

Thursday, October 28, 2010

ET IN ARCADIA EGO



"Aqui jaz Betancor, chorou-o a morte;
Chorou-o a morte, e suspirou-o a vida:
Antes lhe deu eterna vida a morte,
Antes s'ele devia a eterna vida.
Começo de sua vida foi a morte.
E nunca morte foi sua santa vida.
À morte deixa a terra, a vida à fama.
O esprito ao Céu, que tais espritos chama."


António Ferreira, Poemas Lusitanos, vol. II, 3ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1971, p. 200.

Tuesday, October 26, 2010

DO RESSURGIMENTO (para Joana Blu)




"Aqui não há a frase
do mar. Nem a metáfora
que nasce do mar. Não há,
entre a pedra lançada
e o mar, separação."


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve, Lisboa: Teorema, 1991, p. 468.

Sunday, October 24, 2010

RESIGNEMO-NOS À ORDEM DO DESTINO 2


"- Mas, interrompi-a eu, se fosses uma infeliz, Delbène, não gostarias muito mais que te aliviássemos da tua dor?
- Saberia sofrer sem queixar-me, respondeu-me a estóica criatura, e não pediria socorro a ninguém. Estarei eu ao abrigo dos males da natureza e, embora não precise de recear a miséria, não existem ainda a febre, a peste, a fome, os abalos de uma revolução imprevista e todos os restantes flagelos da humanidade? Venham eles e resistir-lhes-ei com coragem. Acredita, Juliette... podes ficar convencida que, se consinto em deixar sofrer os outros sem lhes permitir qualquer alívio é porque eu própria aprendi a sofrer nas mesmas circunstâncias. Entreguemo-nos à natureza: não é para a entreajuda que os seus desígnios apontam: esses desígnios nada mais fazem que projectar em nós a necessidade absoluta de nos munirmos de toda a força necessária para enfrentar os males que ela nos reserva e a comiseração, longe de preparar-nos a alma, perturba-a, amolece-a, e retira-lhe a coragem que não voltará a encontrar, quando dela precisar para enfrentar as suas próprias dores. Quem aprende a endurecer-se com o mal dos outros fica imune aos seus próprios males e é bem mais necessário sabermos sofrer com coragem que acostumar-nos a chorar pelo sofrimento dos outros. Oh Juliette, quanto menos sensíveis formos, menos sofremos e mais nos aproximaremos da verdadeira independência. Só de duas coisas somos vítimas: ou da infelicidade dos outros, ou da nossa. Comecemos por endurecer-nos contra a primeira e a segunda nunca chegará a afectar-nos. A partir desse momento, nada poderá perturbar a nossa tranquilidade."


Marquês de Sade, História de Juliette ou as prosperidades do vício, trad. Rui Santana Brito, Lisboa: Guerra e Paz, 2007, pp. 76-77.

Friday, October 22, 2010

SOL NULO



"Sol nulo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!

Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!

Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De não a mostrar a ninguém!"


Fernando Pessoa, Ficções do Interlúdio, ed. Fernando Cabral Martins, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 81.

Thursday, October 21, 2010

UM HOMEM FALA (em memória de Mariana Rey Monteiro)


"Um homem fala:

Aqui não há consolo. Vê, como a terra
acorda também de suas febres.
Mal brilham ainda algumas dálias. Está devastada
Como depois de uma batalha a cavalo.
Oiço a abalada no meu sangue.
Tu - meus olhos bebem já
os azuis das colinas distantes.
Algo toca de leve as minhas fontes."


Gottfried Benn, 50 poemas, trad. Vasco Graça Moura, Lisboa: Relógio D'Água, 1998, p. 33.

Wednesday, October 20, 2010

NA VÃ TRISTEZA AMBIENTE


"Meus olhos apagados,
Vede a agua cahir.
Das beiras dos telhados,
Cahir, sempre a cahir.

Das beiras dos telhados,
Cahir, quase a morrer...
Meus olhos apagados,
E cançados de ver.

Meus olhos, afogai-vos
Na vã tristeza ambiente.
Cahi e derramae-vos
Como a agua morrente.

Na cadeia os bandidos presos!
O seu ar de contemplativos!
Que é das feras de olhos acesos?...
Pobres os seus olhos captivos...

Passeiam mudos entre as grades.
Parecem peixes num aquario.
Campo florido das saudades,
Porque rebentas tumultuario?

Serenos. Serenos. Serenos.
Trouxe-os algemados a escolta...
Estranha taça de venenos,
Meu coração sempre em revolta!

Coração, quietinho, quietinho!
Porque te insurges e blasphesmas?

Pss... Não batas... Devagarinho...
Olha os soldados, as algemas."


Camilo Pessanha, Clepsydra, ed. Paulo Franchetti, Lisboa: Relógio D'Água, 1995, pp. 92-93.

Tuesday, October 19, 2010

PUISQUE TOUT PASSE, FAISONS



"Se tudo é transitório,
ponhamos na boca trauteares voláteis.
Porque a melodia que nos mata a sede
é aquela que nos mata.

Celebremos o que da vida
se esvai com amor e arte;
por que não sermos mais rápidos
que a própria despedida?"


Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos, trad. Maria Gabriela Llansol, Lisboa: Relógio D'Água, 1996, p. 97.

Monday, October 18, 2010

AQUELA REGIÃO



"A solidão levanta-se de dentro
de estarmos longe. A sua intensidade
arrepia aquela região que o medo
paralisa na linha de aparecer a margem
por onde a solidão brilha, está sendo
vertigem. Ou viagem
de quem, partindo por si próprio dentro,
deixou o esquecimento para medir a idade."


Fernando Echevarría, "Figuras II", in Poesia, 1987-1991, Porto: Afrontamento, p. 112.

Sunday, October 17, 2010

ANGELUS



"Depois de viver muitos anos perto do mar
quem contempla os poentes entre a nesga dos vales
sabe que a imobilidade maior dos montes
corresponde à mais extensa exaltação do espírito."


Fiama Hasse Pais Brandão, Obra Breve, Lisboa: Teorema, 1991, p. 519

Saturday, October 16, 2010

PARA O ARAME



"Morreu com o dia
o sol fiel que nos aquecia
e veio outro sol
depredador

Também ele nos deixou
em cena, sós
extintos actores

E veio outro sol
desfigurado
e outro dia sem cheiro e sem sabor

A fulgurância do supremo actor
um fio de voz a repercute
no coração de quem lhe escute
anterior às réplicas o tremor."


Luiza Neto Jorge, "A Lume", in Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 235.

Friday, October 15, 2010

SUITE VERLAINE



"Le Souvenir avec le Crépuscule
Rougeoie et tremble à l'ardent horizon
De l'Espérance en flamme qui recule
Et s'agrandit ainsi qu'une cloison
Mystérieuse où mainte floraison
- Dahlia, lys, tulipe et renoncule -
S'élance autor d'un treillis, et circule
Parmi la maladive exhalaison
De parfums lourds et chauds, dont le poison
- Dahlia, lys, tulipe et renoncule -
Noyant mes sens, mon âme et ma raison
Mêle, dans une immense pâmoison,
Le Souvenir avec le Crépuscule."


Paul Verlaine, Poèmes Saturniens, Paris: Booking International, 1994, p. 48.

Wednesday, October 13, 2010

REGRESSO SENTIMENTAL



"Le couchant dardait ses rayons suprêmes
Et le veut berçait les nénuphars blêmes;
Les grands nénuphars, entre les roseaux,
Tristement luisaient sur les calmes eaux.
Moi, j'errais tout seul, promenant ma plaie
Au long de l'étang, parmi la saulaie
Où la brume vageu évoquait un grand
Fantôme laiteux se désespérant
Et pleurant avec la voix des sarcelles
Qui se rappelaient en battant des ailes
Parmi la saulaie où j'errais tout seul
Promenant ma plaie; et l'épais linceul
Des ténèbres vint noyer les suprêmes
Rayons du couchant dans ces ondes blêmes
Et les nénuphars, parmi les rouseaux,
Les grands nénuphars sur les calmes eaux."


Paul Verlaine, Poèmes Saturniens, Paris: Booking International, 1994, p. 49.

Tuesday, October 12, 2010

RESIGNEMO-NOS À ORDEM DO DESTINO 1



"- Mas, objectei eu a Mme. Delbène, não será o dogma da imortalidade da alma um consolo para os infelizes? Mesmo que seja uma ilusão, não será ela doce, não será agradável? Não será bom para o homem acreditar que poderá sobreviver-se e gozar, no céu, da felicidade que lhe é recusada na terra?
- Na realidade, respondeu a minha amiga, não vejo por que razão, para tranquilizar meia dúzia de imbecis infelizes, há-de valer a pena envenenar milhões de pessoas honestas. Será, aliás, razoável atribuir aos nossos desejos a dimensão da verdade? Tenhamos um pouco mais de coragem, aceitemos a lei geral, resignemo-nos à ordem do destino, cuja lei diz que, à semelhança de todos os homens, também nos regressaremos ao seio da natureza para dela voltarmos a sair sob outras formas. Nada perece, com efeito, no seio dessa mãe do género humano. Os elementos que nos compõem reagrupar-se-ão a breve trecho sob outras combinações. Um loureiro perpétuo cresce no túmulo de Virgílio. Dizei-me então, néscios deístas, não será esta gloriosa transmigração tão sedutora quanto a vossa alternativa entre o inferno e o paraíso? A verdade é que, se é certo que este último é reconfortante, não podeis negar que o primeiro é tenebroso. E não estais sempre a afirmar, cristãos imbecis, que, para alcançar a salvação, é preciso obter a graça que o vosso Deus só a muito poucos concede? Raciocínios muito consoladores, não há dúvida. E não será infinitamente preferível ser aniquilado do que arder por toda a eternidade? Quem ousará, pois, de acordo com essas ideias, negar que a teoria que nos livra desses tremores é mil vezes mais agradável que a incerteza em que nos deixa a aceitação de um Deus que, dono e senhor das graças que dispensa, só as concede aos seus favoritos e permite que todos os outros se candidatem ao suplício eterno? Só o entusiasmo ou a loucura podem ser responsáveis por preferir um sistema evidente, que tranquiliza, a conjecturas improváveis, que trazem o desespero.
- Mas o que será de mim?, interpelo Mme. Delbène. Essa falta de clareza assusta-me, esse aniquilamento eterno apavora-me.
- E que eras tu, podes explicar-me, antes de nascer?, respondeu-me essa mulher extraordinariamente engenhosa. Um conjunto de partes repletas de matéria desprovida de organização, não tendo ainda recebido qualquer forma ou tendo recebido uma forma de que não consegues lembrar-te. Pois bem: voltarás a ser o mesmo conjunto de partes de matéria, prontas a organizar novos seres, assim que as leis da natureza achem conveniente. Experimentavas prazer? Não. Sofrias? Não. É pois esse um estado que não é penoso e qual é o ser que não consentiria sacrificar todos os seus prazeres à certeza de nunca experimentar sofrimento? Que seria ele então se conseguisse concluir esse acordo? Um ser inerte, sem movimento. E que será ele depois de morrer? Exactamente a mesma coisa. De que serve, pois, afligirmo-nos, já que a lei da natureza nos condena, sem qualquer dúvida, ao mesmo estado que aceitaríamos de bom grado se a decisão dependesse de nós? Pois é, Juliette: será a certeza de não existir para sempre mais desesperante que a certeza de não ter sempre existido? Vá lá, vá lá, meu anjo, tranquiliza-te: o terror de deixar de existir só é um mal real para a imaginação criadora do absurdo dogma de uma outra vida."


Marquês de Sade, História de Juliette ou as prosperidades do vício, trad. Rui Santana Brito, Lisboa: Guerra e Paz, 2007, pp. 40-41.

Monday, October 11, 2010

ERGUE-SE COMO UMA PEQUENA TORRE



"«Eis o que pode responder a si próprio, no meio da sua infelicidade: 'Não a mereci.' É então a infelicidade de Virgínia, o seu fim, o seu presente estado que lamenta? Ela sofreu a sorte reservada desde a nascença à beleza e aos próprios impérios. A vida do homem, com todos os seus projectos, ergue-se como uma pequena torre cujo remate é a morte. Foi condenada à morte à nascença. Feliz por ter desatado os elos da vida antes da mãe, antes de si, isto é, por não ter sofrido mil mortes antes da última!"


Bernardin de Saint-Pierre, Paulo e Virgínia, trad. Maria do Carmo Santos, Lisboa: Publicações Europa-América, 1974, p. 93.

Saturday, October 9, 2010

O TEU LUGAR


"Quando acabou a parábola, as duas grandes alas da humanidade desconjuntaram-se.
Havia uma cruz na enscruzilhada.
A cada um que passava dizia o Cristo de pedra:

«Em vez de ter morrido numa cruz, por ti, antes que tivesse pregado numa lança que me abriu o peito, para com ela te rasgar os olhos da cara. Para deixar entrar a claridade para dentro de ti pelos buracos dos teus olhos rasgados.
«Tudo quanto eu te disse ficou escrito e é tudo quanto ainda hoje tenho para te dizer.
«Se me fiz crucificar para to dizer porque não te deixas crucificar para saberes como eu to disse?
«Não posso, por mais que tente, livrar uma das mãos, pregaram-mas bem, como se prega um crucificado; não posso, por mais que tente, livrar uma das mãos, para te sacudir a cabeça quando vieres ajoelhar-te aqui aos pés da minha cruz.
«Se fosse o teu orgulho de joelhos, ainda era o teu orgulho, mas são as tuas pernas dobradas com o peso do ar.
«Não tenho uma das mãos livres para te empurrar daqui da minha cruz até ao teu lugar lá em baixo na terra.
«Levanta-te, homem! No dia em que tu nasceste, nasceu no mesmo dia um lugar para ti, lá em baixo na terra. Esse lugar é o teu! o teu lugar é a tua fortuna! o teu lugar é a tua glória. Não deixes o teu lugar vazio, nem te deixes pr'aí sem lugar."


Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, introd. Jerónimo Pizarro, rev. e actualização ortográfica Susana Tavares Pedro, Lisboa: Guimarães, 2010, pp. 40-41.

Friday, October 8, 2010

PARA A MEMÓRIA DE ANÍBAL PINTO DE CASTRO



"Silvestre

Dize, Montano amigo,
Porque andas ca apartado
Em este despovoado,
Assi sô mesmo comtigo
Sem ti e sem o teu gado?
Vejo te a cor mudada.
Sem o teu saio de festa,
A pessoa maltratada:
Gram paixão deve ser esta
Que tens esta madrugada!

Folgavas quando me vias;
Não me queres ver agora;
Mudou se o tempo e a ora
Contra ti, que não soías
Ser tam triste ca de fora.
Fizeste grande mudança.
Cada vez pera pior;
Trazes a vida em balança.
Guar-te, Montano pastor,
Porque o mal presto se alcança-

Pesa me de assi te ver
Quanto me pode pesar.
Co sentir e co chorar
Se te podesse valer,
Poder te hias descansar.
Mas ai coitado de mi!
Cada vez que te mais vejo,
A vida não a desejo
Pois a morte vejo em ti
Com tal tromento sobejo."


Sá de Miranda, Poesias, ed. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Lisboa: IN-CM, 1989, pp. 403-404.

Thursday, October 7, 2010

COMO NELAS TRANSPARECE A SURPRESA DA VIDA



"Que máscaras! Como nelas transparece a surpresa da vida e o pavor da morte! Que multidão de mortos ressurgidos inunda Paris! Celebra-se o carnaval da ressurreição! Uma paródia ao vivo da pintura de Miguel Ângelo. Depois da capela sistina, o cabaret jacobino e o vinho a espirrar dos troncos degolados, na praça da Greve... Os grandes acontecimentos modelam os seus personagens. Ver Leonardo e Rafael é ver a Renascença. Qualquer orango traz ainda, na carranca peluda, a idade das cavernas, como o palácio de Versalhes se desvenda na impotência de Luís XIV, e os parques de Malmaison, ao vento, na écharpe flutuante de Josefina..."


Teixeira de Pascoaes, Napoleão, Lisboa: Assírio & Alvim, 1989, p. 9.

Tuesday, October 5, 2010

E VIVA A RESPUBLICA



"
O Cronista
(sai, pensando)

Na batalha da vida evidente se torna
Que ou havemos de ser martelo ou ser bigorna.
Conclusão natural do dilema singelo:
Evitar a bigorna triste... e ser martelo,
Monstruoso, feroz, horrível, mas em suma
Ponderemos que a vida é curta - e que só há uma! "


Guerra Junqueiro, Pátria, 9ª ed., Porto: Lello & Irmão, 1968, pp. 66-67.

Sunday, October 3, 2010

ORÁCULOS 2



" - O meu objectivo é desenterrar e desemaranhar o ambíguo e trazê-lo à luz da razão. A ambiguidade das declarações religiosas só encoraja uma mistificação destinada a aumentar a autoridade de que faz essas declarações.
- Não precisa de se pôr nas suas tamanquinhas, Dr. Freud. Até o senhor dirá, espero, que nem todos os homens são corruptos, mesmo os sacerdotes, e nem todos os veredictos são retorcidos. E há aqueles que por qualquer razão - orgulho no seu trabalho ou uma convicção apaixonada - acreditam que tal como a Lua reflecte a luz do Sol, assim o próprio Febo Apolo falava pela boca de Pítia. E esses jovens traduziam, o melhor que podiam, a verdade dos sons crípticos de sacerdotisa.
- A verdade? Essa é um cavalo muito negro.
- Mas há aqueles, doutor, que montam cavalos negros e podem ver a verdade duma perspectiva diferente daqueles cujos pés se fincam no lodo da razão.
- Na minha opinião, a nossa melhor esperança de sobevivência é que a razão estabeleça uma ditadura sobre a psique humana, finalmente.
- «Ditadura», Dr. Freud? Estou a ver. O seu cabozinho não concordaria consigo, nesse ponto? Pondo de lado os falíveis mortais, há também lugares, lugares ínfimos, onde a membrana da terra é esticada e as forças imortais se podem sentir mais fortemente."


Salley Vickers, Onde três estradas se encontram - Tirésias, Freud e Édipo, trad. Paula Reis, Lisboa: Editorial Teorema, 2010, pp. 54-55.

Saturday, October 2, 2010

ORÁCULOS 1

"E assim, misteriosamente, a escrita, ligada no entanto ao desenvolvimento da prosa, quando o verso deixa de ser um meio indispensável para a memória, a coisa escrita aparece essencialmente próxima da palavra sagrada, de que parece trazer para a obra a estranheza, de que herda a desmesura, o risco, a força que escapa a todo o cálculo e recusa qualquer garantia. Como a palavra sagrada, o que está escrito vem não se sabe de onde, é sem autor, sem origem, e, assim, reenvia para qualquer coisa de mais original. Por detrás da palavra do escrito, ninguém está presente, mas ela dá voz à ausência, como no oráculo onde fala o divino, o deus nunca está presente ele próprio na sua palavra, e é a ausência de deus que então fala. E o oráculo, não mais que a escrita, não se justifica, não se explica, não se defende: não há diálogo com o escrito e não há diálogo com o deus. Sócrates fica espantado com esse silêncio que fala."


Maurice Blanchot, A Besta de Lascaux, trad. Silvina Rodrigues Lopes, Lisboa: Edições Vendaval, 2003, pp. 14-15.

Friday, October 1, 2010

EM OUTUBRO O FOGO AO RUBRO


"Estão separadas de tudo as lágrimas. Vê-las-emos
longe da nossa face, para que finalmente se conservem
vazias, sem qualquer imagem reflectida. São as flores
que não têm pétalas. Um leve caule as vem unir
à terra que fica sobre os nossos passos. Conseguimos
encontrá-las? Sabemos que não são nossas, afastadas
de qualquer dor, porque nada é capaz de receber
este silêncio que se transforma na mesma água."


Fernando Guimarães, Lições de Trevas, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, p. 54.