Wednesday, July 31, 2019

DESCONCERTO



"Folguei muito com as vossas cartas e com as boas novidades que me dais da saúde dos vossos irmãos: que Deus os encha dela e a vós também, como é meu desejo. Nos últimos dias tenho andado um pouco desconcertado, não sei se por ter comido melão a mais há alguns dias, que os havia muito bons, mas julgo que não. Ainda que tenha andado um pouco cansado, julgo que me fez proveito."

Cartas para Duas Infantas Meninas - Portugal na Correspondência de D. Filipe I para as Suas Filhas (1581-1583), org. Fernando Bouza Álvarez, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999, p. 91. 

Tuesday, July 30, 2019

OCUPAÇÕES



"Duas ideias fixas não podem coexistir no mundo moral, assim como no mundo físico dois copos não podem ocupar o mesmo espaço. 
O terno, o sete e o ás apagaram, em breve, na mente de Hermann, a imagem da velha condessa. O terno, o sete e o ás não lhe saíam do espírito e acorriam-lhe incessantemente aos lábios."


Alexander Pushkin, A Dama de Espadas, trad. José Marinho, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2007, p. 63. 

Monday, July 29, 2019

GOSTO



"A rapariga pôs-se a rir e nada respondeu.
- Paulo! - gritou a condessa atrás do biombo. - Manda-me um novo romance: um qualquer, logo que não seja ao gosto da época. 
- Que quer dizer com isso, avó?
- Quero um romance onde o herói não esgane o pai ou a mãe e onde não haja afogados. Tenho um medo horrível dos afogados!
- Oh! Romances desse género já não se fazem! Não lhe agradaria um romance russo?
- Como! Isso existe? Manda-me um, queridinho, manda-me um, para ver."


Alexander Pushkin, A Dama de Espadas, trad. José Marinho, Mem Martins: Publicações Europa-América, 2007, p. 18. 

Sunday, July 28, 2019

TEMPERAMENTO



"É assim que os temperamentos individuais encontram o seu caminho no estudo. Aprender é tão bom como viver. Não tenhais receio de que a vossa personalidade seja absorvida por espíritos maiores que o vosso. Não vigieis, com cioso cuidado, a vossa originalidade, não vos conserveis a distância de tudo o que em si contém força, com receio de aí afogar o vosso talento. A originalidade que se perde nesse trabalho da inteligência em via de progresso não podia ser senão algo defeituoso, um aborto destinado a perecer, só original por ter sido doentio. Só o que é sã se tornará grande."

Jens Peter Jacobsen, Niels Lyhne, trad. Teresa Leitão de Barros, Porto: Livraria Tavares Martins, 1946, p. 152. 

EXPRESSÃO



"Agora já compreendia que não é indispensável ser fervoroso apreciador das velhas poesias nórdicas ou do romantismo; que é muito mais simples manifestar as nossas próprias incertezas do que fazê-las dizer por um pagão da Antiguidade; que é mais racional procurar meios de expressão para a nossa íntima maneira de ser, que interrogar os claustros da idade média, os quais só nos dão, como resposta, o débil eco das nossas perguntas."

Jens Peter Jacobsen, Niels Lyhne, trad. Teresa Leitão de Barros, Porto: Livraria Tavares Martins, 1946, p. 150. 

Thursday, July 25, 2019

ILIMITADO




"Como és belo
Cercado de sete anéis como Saturno
Fechado no teu fogo mais secreto.

Como és belo
No coração do silêncio ilimitado,
Imutável e perfeito
De pura escuridão aureolado.

Já nenhum rosto mora no teu pensamento
De nenhum peso os teus gestos se alimentam
Nenhum acaso desvia
O teu olhar atento."


Sophia de Mello Breyner Andresen, No Tempo Dividido, in Obra Poética, ed. Carlos Mendes de Sousa, 2ª. ed., Alfragide: Ed. Caminho, 2011, p. 297.

Wednesday, July 24, 2019

AMANHECE




"Porque partimos as estátuas deles, 
porque os expulsámos dos templos deles, 
não morreram por isso os deuses de modo algum.
Ó terra da Jónia, a ti amam ainda,
de ti as suas almas se lembram ainda. 
Quando amanhece sobre ti uma alba de Agosto
pela tua atmosfera perpassa um vigor da vida deles;
e por vezes uma figura etérea de um
efebo, vaga, de andar rápido, 
passa por cima das tuas colinas."


Konstandinos Kavafis, Os Poemas, trad., pref. e notas de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Lisboa: Relógio D'Água, 2005, p. 119. 

Monday, July 22, 2019

CRESCENTE


"Pensavam efetivamente naquelas hecatombes de regimentos aniquilados e de passageiros afogados; mas há uma operação inversa que a tal ponto multiplica o que se refere ao nosso bem-estar e que divide por um número tão formidável o que não lhe diz respeito, que a morte de milhões de desconhecidos mal nos aflora e é quase menos desagradável que uma corrente de ar. A senhora Verdurin, que sofria por causa das suas enxaquecas com o facto de já não haver croissants para molhar no café com leite, acabara por obter de Cottard uma receita que lhe permitiu mandar fazê-los num certo restaurante de que já falámos. Fora quase tão difícil conseguir isto dos poderes públicos como a nomeação de um general. Mas recuperou o seu primeiro croissant na manhã em que os jornais narravam o naufrágio do Lusitania. Ao mesmo tempo que molhava o croissant no café com leite e dava uns piparotes no jornal para ele se manter aberto de par em par sem necessidade de desviar a outra mão das sopinhas, dizia: «Que horror! Isto ultrapassa em horror as tragédias mais pavorosas.» Mas a morte de todos aqueles afogados devia revelar-se-lhe reduzida apenas a uma milionésima parte, porque ao mesmo tempo que, de boca cheia, fazia estas desoladas reflexões, a expressão que lhe subia à superfície do rosto, ali trazida provavelmente pelo sabor do croissant, tão precioso contra a enxaqueca, era antes a de uma suave satisfação."

Marcel Proust, À Procura do Tempo Perdido - O  Tempo Reencontrado, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2005, p. 87. 

Sunday, July 21, 2019

CHÃO



"Por muito alto que seja o lugar que um homem se atribuiu, por muito grande que seja a sua certeza íntima de que é um ser de exceção, pode, um dia, vir-lhe o desejo de andar com quatro pés no chão, como Nabucodonosor, ou de pastar erva misturado ao restante rebanho." 

Jens Peter Jacobsen, Niels Lyhne, trad. Teresa Leitão de Barros, Porto: Livraria Tavares Martins, 1946, p. 38. 

Saturday, July 20, 2019

SONHO



"Tudo o que causara impressão a Niels, tudo o que via, tudo o que compreendia bem e tudo o que compreendia mal, tudo o que admirava e tudo o que se julgava obrigado a admirar, era por ele metido nessa interminável história. Apoderava-se, o melhor que podia, de pensamentos e de sentimentos que lhe pertenciam ou que pertenciam aos outros, de acontecimentos e de homens, fragmentos de vida e fragmentos de livros, como uma água corrente colhe as imagens que encontra no seu percurso e as reproduz, ora exatíssimas, ora deformadas, ora indecisas, com vagos e movediços contornos, a não ser que as afogue numa confusão de linhas e de cores."

Jens Peter Jacobsen, Niels Lyhne, trad. Teresa Leitão de Barros, Porto: Livraria Tavares Martins, 1946, p. 24. 

Thursday, July 18, 2019

AS PERGUNTAS



"Na primeira lenda do Graal, diz-se que o Graal, pedra miraculosa que por virtude da hóstia consagrada sacia toda a fome, pertence a quem primeiramente disser ao guardião da pedra, rei paralisado em três quartos pela mais dolorosa ferida: «Qual é o teu tormento?»"

Simone Weil, Espera de Deus, trad. Manuel Maria Barreiros, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 105. 

Wednesday, July 17, 2019

PROFECIA



"Toda a profecia se fez sempre a nível de linguagem - linguagem às vezes tão cifrada que se enunciava numerologicamente. Pode assistir-se a isso durante certas passagens bíblicas, inclusive no Apocalipse."

Herberto Helder, Photomaton & Vox, 3.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1995, p. 125. 

Tuesday, July 16, 2019

RECORDAÇÃO



"A partir de uma certa idade, as nossas recordações entrecruzam-se de tal modo umas com as outras que a coisa em que estamos a pensar ou o livro que estamos a ler já quase não tem importância. Pusemos algo de nós mesmos em toda a parte, tudo é fecundo, tudo é perigoso, e podemos fazer descobertas tão preciosas num anúncio de um sabonete como nos Pensamentos de Pascal."

Marcel Proust, À Procura do Tempo Perdido - A Fugitiva (Albertine Desaparecida), trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2004, p. 131. 

Monday, July 15, 2019

ANIVERSÁRIO



"Agora que já dormes
há rios no teu sono, 
há mar?

Passeias na praia longínqua
paras nalgum rocheo

vês os montes
a serra

sopras a flor das amendoeiras
como se fosses vento

apanhas camélias brancas

enfeitas o cabelo

és feliz
na noite do teu tempo?"


Yvette Centeno, A Oriente, Lisboa: Editorial Presença, 1998, p. 19. 

Sunday, July 14, 2019

MATÉRIA SILENCIOSA




"Há momentos em que o fulgor da tarde é tão sedoso e tranquilo que o construtor suspende o seu trabalho. As árvores e os muros têm então a vagarosa tranquilidade solar que é como um ébrio recolhimento do ser na matéria silenciosa das pedras, dos troncos e das folhas. A luz estende a sua toalha fulva e serena sobre um planeta árido e maciço e toda a sua energia se volve numa respiração homogénea e discreta, misteriosamente cálida. É este o momento em que o segredo da terra se alia à evidência do intacto e a plenitude solar se tinge de uma presença oculta que está tanto sob as aparências do mundo como no coração do construtor. Esta concordância produz o acorde único do ouro que fui entre uma nascente e um túmulo, entre a carência e a plenitude de uma vida solar. Este fermento de pura unidade conservá-lo-á o construtor nas suas veias e dar-lhe-á a inspiração pausada e leve dos gestos construtivos que tornarão a sua morada a habitação em suas presenças luminosas e claras.


António Ramos Rosa, O Aprendiz Secreto, 2.ª ed., Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2005, p. 33. 

Saturday, July 13, 2019

ARCO




"Alguém abrirá a porta, 
alguém 
mostrará a luz."


Yvette Centeno, A Oriente, Lisboa: Editorial Presença, 1998, p. 71. 

Friday, July 12, 2019

SUPRESSÃO



"A supressão do sofrimento? Terei alguma vez acreditado nela, terei acreditado que a morte não faz mais que apagar o que existe e deixar o resto de pé, que ela tira a dor do coração daquele para quem a existência do outro já não é mais que um motivo de dores, que ela retira a dor e nada põe no seu lugar?"

Marcel Proust, À Procura do Tempo Perdido - A Fugitiva (Albertine Desaparecida), trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2004, pp. 62-63. 

Thursday, July 11, 2019

MORTAIS




"Ifigénia - (...)
Ó desgraçada de mim, que, por ter visto uma odiosa, 
uma odiosa, funesta criatura, 
sou assassinada, aniquilada
pelo cutelo ímpio de sacrílego pai. 
Prouvera para bem meu que Áulide, 
nem as proas de brônzeos esporões, 
nem os madeiros que Tróia conduzem,
nestes seus ancoradouros acolhesse, 
nem que ao Euripo uma brisa contrária
Zeus fizesse soprar, ele que a desencadeia
para que os mortais os ventos de maneira
que uns têm a alegria de ver inchar as velas, 
outros têm a tristeza, outros vêem-se impotentes;
podem uns aparelhar, outros navegar, 
enquanto outros aguardam. 
Pela de sofrimentos, sim, plena de sofrimentos é
dos efémeros mortais a geração, e dolorosa, 
para os homens, a descoberta da Necessidade."


Eurípides, Ifigénia em Áulide, 1325-1332, trad. Carlos Alberto Pais de Almeida, 2.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 155. 

Wednesday, July 10, 2019

OS PERIGOS




"Ancião - Irei depressa, meu rei. 

Agamémnon - Não te sentes junto das fontes das florestas. 
nem pelo sono te deixes enfeitiçar."


Eurípides, Ifigénia em Áulide, 140-142, trad. Carlos Alberto Pais de Almeida, 2.ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 95. 

Tuesday, July 9, 2019

MANANCIAL



"A beleza do mundo é o orifício do labirinto. O imprudente que, tendo entrado, dá alguns passos, torna-se depois de algum tempo incapaz de reencontrar o orifício. Exausto, sem nada para comer ou beber, mergulhado nas trevas, separado dos seus semelhantes, de tudo o que ama, de tudo o que conhece, caminha sem nada saber, sem esperança, incapaz mesmo de se dar conta se caminha verdadeiramente ou se anda à roda sobre o mesmo lugar. Mas essa infelicidade nada é ao pé do perigo que o ameaça. Porque se ele não perde a coragem, se continua a caminhar, é absolutamente certo que chegará finalmente ao centro do labirinto. E aí, Deus espera-o para o devorar."

Simone Weil, Espera de Deus, trad. Manuel Maria Barreiros, Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p. 168. 

Monday, July 8, 2019

A DANÇA



"Cada povo fez do cristianismo católico um paganismo diferente. O da Alemanha gira em torno da dança dos mortos. Os Franciscanos do século XIV legam um esqueleto aos pregadores da Reforma; imagino que era esse esqueleto que servia para as demonstrações anatómicas na oficina de Holbein. Eis a verdadeira imperatriz do Sacro Império romano-germânico. É garrida; sabe, pelo convívio com os artistas, quais as atitudes que melhor lhe convêm e, como que para sacudir o tédio de uma majestade semelhante, essa Cleópatra nua até aos ossos diverte-se com partidas de estudante. É capaz de tocar às portas. Pela maneira como é exigente, percebe-se bem que já não tem fome: poderá até, depois de se ter suficientemente divertido, reexpedir indemne por algum tempo, o hipócrita bastante hábil. A morte de Holbein é muito jovem: faz travessuras. É herdeira e legatária universal. Não digo que não tem filosofia. Quem conhece a resposta final que uma gargalhada nos lança? Neste mundo, maquinado como um antro de malfeitores, a Morte joga às escondidas com os homens. Tudo quanto fazem lhe aproveita; de tanto a vermos comer, espanta-nos a sua magreza. É a prometida de cada um todos eles se agitam, pois, para lhe trazerem um dote; todos querem ser ricos antes de morrer. Somente quando ela chega, resingam, pois desagrada-lhes que a noiva não tenha nariz. E, no entanto, é a única a que são fiéis."

Marguerite Yourcenar, Peregrino e Estrangeiro, trad. Afonso Pizarro, Lisboa: Livros do Brasil, 1990, p. 134. 

Sunday, July 7, 2019

VIGILÂNCIA




"Ela inclinou-se, beijou-o outra vez, respirou outra vez - até à vertigem - o perfume ensolarado do cabelo do seu filho. 
- Gosto mais de ti que o tamanho do ma todo, disse ela. 
- E do Oceano?
- Mais que do Oceano, mais que tudo o que existe. 
- E tudo o que não existe? 
- Também mais que tudo o que não existe. 
- Eu também, disse distraidamente a criança, o que eu queria era um lagarto encarnado e o papá diz que não há. 
- Há pois. 
Ela tentou apertá-lo nos braços, mas ele debateu-se, todo virado para os lagarto. Ela voltou a pousá-lo no chão e ele voltou imediatamente à sua incansável vigilância."


Marguerite Duras, Os Cavalos de Tarquínia, trad. Maria da Piedade Ferreira, Lisboa: Publicações Dom Quixote/ Editores Reunidos, 1994, p. 119. 

Saturday, July 6, 2019

GRANDE MÃE



"O crepúsculo desce, tão dourado como foi a manhã, como foi o pleno dia. Os cimos recolhem-se, aceitam a noite com a mesma graça com que aceitavam a aurora. Um pouco de luz estagna no côncavo do vale, como um pouco de água no côncavo de uma mão fresca. A noite paira, tecida de oiro como um estofo divino. Aqui a obscuridade é mais maternal, mais fraternal que amorosa: a Grande Mãe muda-se em Boa Virgem: Deméter torna a ser Perséfone; Latona torna a ser Ártemis. Os joelhos terrestres recobrem-se lentamente de um veludo estrelado. O leite de Hera escorre na Via Láctea, brotado de uma mordedura no seio azul. A sombra onde tudo se torna Sombra mal deixa adivinhar, na palestra, a mais esbelta das colunas, fuste agora solitário em torno do qual os jovens lutadores de antanho decerto passaram muitas vezes o braço como em volta de uma cintura, e que não se pode ver sem se pensar em Hipólito. A vida, madrasta ardente e repelida sob a forma de Fedra, suscitava contra ele um monstro que Hércules teria exterminado sem custo, mas cujo sopro bastava para destruir esse mancebo virgem, esse mancebo-flor. Depois, fatal, tranquilizante, lunar, a Morte aproximava-se dele sob a forma de Ártemis. Ele adivinhava-a sem a ver, pois os moribundos não fazem senão adivinhar os deuses. E nós que incessantemente morremos a nossa vida, nós tão-pouco entrevimos Ártemis. Mas aspiramos aqui o seu perfume de erva e de astro e, deitados sob esse céu, sob essas luzes, vemos na noite um pedaço do seu manto."

Marguerite Yourcenar, Peregrino e Estrangeiro, trad. Afonso Pizarro, Lisboa: Livros do Brasil, 1990, pp. 10-11. 

Friday, July 5, 2019

UMA POÉTICA




"O verdadeiro poema
apaga-se por si
como uma vela tão de súbito
mas o que ela iluminou fica gravado
na treva abrupta
da retina

Mundos nus
nuas paredes, mesas e cadeiras
um espaço cheio de estranhos conhecidos
seguros
da nossa afeição e indiferença

impassíveis, sem sentido
sem substância."


Günter Kunert, 90 Poemas, poema trad. Leopoldina Almeida, Lisboa: a páginas tantas, 1983, p.  117. 

Thursday, July 4, 2019

IRREPREENSÍVEL



"Ela foi na direção de Jacques que se dirigia para eles. Nadou algumas braçadas, levantou-se e voltou a nadar. Ludi, de longe, sorria-lhe. O mar fazia rir. Estava tão quente que se podia lá ficar facilmente duas horas. Não tinha nada a ver, aquele mar, com outro mar do mundo. Era a desforra dos que gostavam daquele sítio, de Jacques e Ludi. Aquele mar era irrepreensível. Sara pôs-se de costas e manteve-se imóvel. Era uma coisa que só conseguia fazer há alguns dias. O mar penetrava então na espessura dos cabelos até à memória."

Marguerite Duras, Os Cavalos de Tarquínia, trad. Maria da Piedade Ferreira, Lisboa: Publicações Dom Quixote/ Editores Reunidos, 1994, pp. 25-26. 

Wednesday, July 3, 2019

LIÇÃO



"Porque, se há um ponto sobre que as nossas observações não deixam dúvidas, é que o homem não é um filho do paraíso, caído já feito e mesmo, em certa medida, perfeito, do céu sobre a terra."

Luiz Büchner, O Homem segundo a Ciência, trad. Alfredo Pimenta [ort. atual.], Porto: Livraria Chardron, 1912, p. 59. 

Tuesday, July 2, 2019

CÉU VAZIO



"E, contudo, eu não regressava tranquilizado quando estava em Balbec depois de passeios mais raros que me orgulhava de ver uma tarde inteira e que depois contemplava, destacando-se em belos maciços de flores contra o resto da vida de Albertine, como contra um céu vazio diante do qual sonhamos docemente, sem pensar."

Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido - A Prisioneira, trad. Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 2004, p. 100. 

Monday, July 1, 2019

SUBTERFÚGIO




"- Perversidades? Isso é apenas um subterfúgio. Uma palavra usada pelos poetas. 
- Eu pensava que era usada pelos psicólogos.
- Referia-me a fazer concessões, dar desconto... É uma expressão sem significado. A vida é uma ciência exata de conformidade com os seus próprios termos; a questão consiste apenas em encontrá-los e defini-los. O que é que não tem lógica nenhuma para si?"


Patricia Highsmith, O Preço do Sal, 2.ª ed., trad. Fernanda Pinto Rodrigues, Mem Martins: Publicações Europa-América, 1993, p. 116.