Tuesday, December 31, 2024

FINDA

 




"E há a solidão de milhões de estrelas
e o clarão de todos os sóis..."



Maria Filomena [Cabral], Poemas do amor e da morte, Porto: Tipografia do Carvalhido, 1978, p. 69.

PELA TUA PAISAGEM

 



"Como gostaria de afundar-me
docemente, languidamente,
na ausência do que me rodeia,
mergulhar no sono
como em areia movediça...
Mas há a tua voz
retinindo como campainha
longínqua,
há a visão do teu rosto
na sombra mais profunda,
bem no fundo de mim
projectando-se em «flash»
obsessivo, e então
recomeço a minha peregrinação
- mil vezes iniciada e interrompida -
pela tua paisagem,
por colinas,
vales, rios,
por essa savana pardacenta,
onde se confunde tua pele morena
e, vendo crateras
donde escorreu lava
olho-as hipnotizada,
e lanço-me nelas!"


Maria Filomena [Cabral], Poemas do amor e da morte, Porto: Tipografia do Carvalhido, 1978, p. 69.

VOLTARÁ

 



"Amanhã não sei
se me contemplam
as coisas, se de novo
voltará

a miragem desse nada
amachucado. Errante
astro absurdo

as mãos nos bolsos
sobre o soalho
rangendo

vou."



José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 41.

ININTERRUPTO

 



"Traças a tua rota
numa constelação qualquer,
a face sempre igual
não sendo embora a mesma.
A luz atinge-te
e logo te voltas
num rodopiar insano,
ininterrupto,
numa sucessão de luz e sombra.
Teus dias, tuas noites,
teus sorrisos,
a obsessão de não receber
de não dar.
Permaneces estanque.
E tu que podias ser
cometa,
estrela,
serás talvez um planeta
girando em infinitos despovoados!"



Maria Filomena [Cabral], Poemas do amor e da morte, Porto: Tipografia do Carvalhido, 1978, p. 63.

ENTARDECER

 



"Quando generoso gesto se desenha
E sincero adere o coração,
Sem que tempo em seu modo se detenha,
Só a noite escura deste tempo vão

Me claudica, me pára, me interroga.
Nem a rosa com o seu perfume,
No jardim distante onde hoje voga,
Se aconchega ao meu peito, como lume.

Recuo os passos em passeio aflito,
Olhos no chão de vergonha imensa
Pelo não feito, pensado e não descrito.

Pelo que quis, sonhei e não refiz.
Neste estar de embriaguez suspensa,
Sobre a máscara uma expressão feliz."



Risoleta C. Pinto Pedro, Kronos inVersus, Porto: Edições Sem Nome, 2023, p. 13.

BRECHAS

 


"E depois haverá o caos.
Sempre existirá
como acorde final
duma apoteose,
já que nada permanece.
Tudo se degrada,
em rachaduras mínimas,
disfarçadas,
que se tornação brechas
desmesuradas, esfomeadas,
que tudo esmagarão
com o tempo, a indifereça
e a ruína por aliados.
Onde as colunas esguias,
a Fénix adejando
pousando na sombra longa?
Porque desapareceu,
apesar das cinzas,
do renascer
repetido até à saciedade?
O caos, a inevitabilidade,
a consequência,
o acorde final,
a ausência..."


Maria Filomena [Cabral], Poemas do amor e da morte, Porto: Tipografia do Carvalhido, 1978, p. 83.

DA FÉ (para a memória de Adília Lopes)

 



"O dia
que se põe
é a noite
que vem

Os ícones
são escuros
e duros
doces
e dourados

Em breve
irei ter
com as fontes
(as fontes
do tempo)

Em breve
morro
e me faço
um morro

Em breve
a nev
o ouro
nupcial

Acendo
a vela
do meu baptismo
e velo

Com os quadros
de Rouault
dentro da cabeça
não perco
a cabeça"



Adília Lopes, in Verbo - Deus Como Interrogação na Poesia Portuguesa, Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, pp. 201-202.

Monday, December 30, 2024

DA VIDA DE UM SANTO

 



"Ele conhecia os medos, cuja entrada
como a morte já era e insuperável.
Seu coração foi aprendendo a atravessar devagar, sem mais nada;
criou-o como um filho moldável.

E conheceu inúmeras privações
escuro e sem manhã como tapumes;
e dócil foi entregando sua alma,
enquanto cresceu para que com seus lumes

ficasse junto a seu Noivo e Senhor; e acabou por ficar
só para trás num tal lugar,
em que o estar só tudo exagerava,
e morava longe e nunca palavras desejava.

Mas em troca, de tempos a tempos ficava a saber, mesmo sem
irmãos,
também que a felicidade era nas suas próprias mãos
se colocar como a inteira criatura,
para que pudesse sentir uma ternura."



Rainer Maria Rilke, Novos Poemas, trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2023, p. 177.

Sunday, December 29, 2024

AINDA QUANDO

 



"Vive para sempre o homem de saber
Ainda quando, após a morte,
Na terra em pó seu corpo se volver...
O néscio, esse, é sempre um morto
Que mesmo se segue caminhando
Muito embora aparentando vida
Não é senão um corpo vegetando."



Ibn As-Sid (séc. XI-XII), in Adalberto Alves, O Meu Coração é Árabe - a poesia luso-árabe, 2ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 1991, p. 113.

Friday, December 27, 2024

TURQUESA

 



"Há uma luz especial, vivaz e sonora, nesta terrinha branca que, vista da bacia de Leixões, tem, como fundos, para além de um céu de turquesa pura, os verdes espessos dos pinhais da Boa Nova, da Memória, de São João e do Montado."


Antero de Figueiredo, "Leça da Palmeira", in Jornadas em Portugal, 7.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d. p. 296. 

Thursday, December 26, 2024

OS CAMPOS, AS PASSADAS, OS SINAIS

 



"Que se possível fosse que tornasse
o tempo para trás, como a memória,
pelos vestígios da primeira idade,
e de novo tecendo a antiga história
de meus doces errores, me levasse
pelas flores que vi da mocidade;
e a lembrança da longa saudade
então fosse maior o contentamento
vendo a conversação leda e suave,
onde ua e outra chave
esteve de meu novo pensamento,
os campos, as passadas, os sinais,
a fermosura, os olhos, a brandura,
a graça, a mansidão, a cortesia,
a sincera amizade que desvia
toda a baixa tenção, terrena, impura,
como a qual outra algua não vi mais...
Ah! vãs memórias, onde me levais
o fraco coração, que inda não posso
domar este tão vão desejo vosso?"



Luís de Camões, "Vinde cá, meu tão certo secretário", in Lírica Completa, vol. III, ed. Maria de Lourdes Saraiva, 2ª ed., Lisboa: IN-CM, 2002, p. 67.

Wednesday, December 25, 2024

DEUM INFANTEM

 



"Ergue-lhe o corpo
Em braços de asa e gaze
E leva-O
Como quem levanta véus
Por sobre uma campina
Que se rase...

E vai,
Até onde mortais olhos não pensem
As imagens de ciclos habituais...
Onde os lábios
Sustentem a cadência
Das palavras acesas
Que o indizível
Não segreda mais.

Cabe uma Vida
Em séculos de um Dia.
Nas lutas do Arcanjo ao nosso lado
Sempre os povos recolhem a agonia
De ver carros de fogo
E de conquista
Cortando a sua terra
Como Alexandre Magno incendiado
A poisar numa pista.

Toca a rebate
O sono das crianças,
Invadidos de guerra,
Inocentes de esperança,
Que se levantam
Como quem levita,
Presas ao ventre ainda
De um noivado."


Natércia Freire, "Foi Ontem Apenas", in Obra Poética, vol. II, Lisboa: INCM, 1994, p. 116.

Tuesday, December 24, 2024

AMOR SUBLIME, ETERNO, INCOMPREENSÍVEL

 



"Amor sublime, eterno, incompreensível,
amor que o torpe amor converte em puro,
amor que ao duvidoso faz seguro,
amor que tudo vê sendo invisível.

Amor que faz suave ao insofrível,
amor que mostra claro o que era escuro,
amor que jaz mais brando o que é mais duro,
amor que facilita ao impossível.

Amor que tudo vence e tudo apura,
o homem com seu Deus pacificando
quis que este Deus ao homem se ajuntasse.

E juntos o criador com a criatura,
que a criatura em Deus ficasse amando
e Deus nas criaturas sempre amasse."



Baltasar Estaço, Sonetos, Canções, Éclogas e Outras Rimas, ed. 1604, in António Salvado (org.) - Anunciação e Natal na Poesia Portuguesa, Lisboa: Editorial Polis, s.d.,pp. 48-49.

ANUNCIAÇÃO

 



"Eu estava, sozinho,
Como os pobres em rua.
O amor quanto carinho
Nos insinua!

Eu andava, sem ti,
Como as velas sem mar.
Que maré recebi
Do teu olhar!

Sem saber, era triste
Como as asas sem céu.
Que azul me descobriste
E me perdeu!"



Alberto de Serpa, "Fonte", in Líricas Portuguesas, segunda série, seleção, prefácio e notas de Cabral do Nascimento, Lisboa: Portugália Editora, s.d., p. 316.

Monday, December 23, 2024

SE APARECEM NO CÉU ANJOS CANTANDO

 



"Se aparecem nos Céus Anjos cantando,
que como a Deus dos Céus querem mostrar-vos,
é porque a terra ingrata queira amar-vos
enquanto como Deus nos vem mostrando.

Se apareceis na Terra divulgando
que como o mais humilde quereis dar-vos,
é porque a Terra queira agasalhar-vos
enquanto como homem estais chorando.

A música do Céu a Terra espanta,
a qual lhe dais senhor a abrandá-la,
e as lágrimas mostrais para movê-la.

Vós na Terra chorais, no Céu se canta,
por que possais cantando afeiçoá-la,
e chorando possais enternecê-la."


Baltasar Estaço, Sonetos, Canções, Éclogas e Outras Rimas, ed. 1604, in António Salvado (org.) - Anunciação e Natal na Poesia Portuguesa, Lisboa: Editorial Polis, s.d., p. 49.

Sunday, December 22, 2024

NA TAL HABITAÇÃO

 



"Na tal habitação volto a falar-te
Na tal que já eu-próprio não conheço
Na tal que mais que tálamo era berço
Na tal em que de noite nunca é tarde

Na tal de que por fim ninguém se evade
Na tal a que sei bem que não regresso
Na tal que umbilical cabe num verso
Na tal sem universo que a iguale

Na tal habitação te vou falando
Na tal como quem joga às escondidas
Na tal a ver se tu me dizes qual

Na tal de que eu herdei só este canto
Na tal que para sempre está perdida
Na tal em que o natal era Natal."


David Mourão-Ferreira, Poesia (1948-1988), 3.ª ed., Lisboa: Editorial Presença, 1997, p. 231.

Saturday, December 21, 2024

ANIVERSÁRIO

 




" - Falta-me a outra parte da chave que tu guardaste, Sabes isso. Sabes também que com metades de chave nunca nenhum de nós poderá encontrá-lo. Porque ficaste aí sozinha? E porque ficaste hoje tão só?
- Um dia de anos é assim como um dia de férias, mas de férias a sério, é como um mês de férias, redime o tempo de todo o tempo passado e futuro. É um olhar com asas, é como saltar ao mesmo tempo ao eixo por cima de todos os muros. É melhor que estar ao pé do rio, é trazer o rio para o terraço, é melhor que parar o tempo, é o tempo não haver. Perdoa-se tudo, num dia assim. E quando já está tudo perdoado, inventam-se mais coisas para perdoar. Perdoa-me, perdoa-me, perdoa-me!"


Risoleta Pedro Natálio, O Aniversário, Lisboa: Difel, 1998, p. 68.

Friday, December 20, 2024

A ASA DO TEMPO VOANDO PASSA

 




"No mais erguido cume da alta serra
Que disseram da Lua eras antigas.
De fábrica mourisca se alevanta
Castelo hoje em ruínas derrocado.
Escassa ameia vês em pé suster-se
No escalavrado muro. Já trabucos,
Dos séculos depois vaivém mais duro
Pelas íngremes rocas dispersaram
As pedras que talhou a mão dos homens
Outrora dessas rocas, para alçá-las
Em torreões de morte: - ímpia fadiga
Trabalho improbo e duro! A asa do tempo
Voando passa, e varre a obra do homem
De sobre a face da esquecida terra."


Almeida Garrett, Camões, canto nono, IV, Lisboa: Editorial Comunicação, 1986, p. 172.

Thursday, December 19, 2024

MALOGROS

 


"A literatura não era o instrumento menos importante de que se servia tal propaganda: exaltava sabiamente a antiga grandeza de Roma, transformava os malogros em triunfos, apagava as derrotas. Repetida em inscrições altaneiras, monumentos, poemas, narrativas históricas, a grandeza tornava-se uma obsessão à qual os jovens bárbaros dificilmente resistiam. Eles queriam por sua vez parecer-se com os Romanos, mas, ignorando os antigos, só os de hoje podiam imitar: rejeitavam, porque as mulheres se riam deles, seus adornos rudes e sem graça, e, para lhes agradar, esforçavam-se em parecer semelhantes aos favoritos do Imperador; esqueciam os seus heróis e seus deuses, arrebatados pela voluptuosidade e pela sedução da fama. Na realidade, só podiam perder com estas trocas, pois despojavam-se das virtudes bárbaras sem adquirir as qualidades romanas e contentavam-se com imitar pormenores artificiais, a forma de se pentear e de usar a toga ou pronunciar certas palavras. "


Marcel Brion, A Vida de Átila, trad. Augusto Costa Dias, Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1959, p. 33. 

Wednesday, December 18, 2024

ANIMAL FEROZ

 



"Huldino, despeitado, desvia-se e interroga um oficial romano:
- Mundzuque tinha uma grande quantidade de filhos. Como se chama este?
- Átila - responde o oficial, e acrescenta, com desprezo: - Tem sempre este ar irritado e desconfiado de animal feroz. Vá lá a gente entendê-lo!... Ele devia ter ficado contentíssimo por ver um dos seus compatriotas!"


Marcel Brion, A Vida de Átila, trad. Augusto Costa Dias, Lisboa: Editorial Estúdios Cor, 1959, p. 19.

PÁTRIA

 



"Cortejo pelos deuses
convocados e abolidos,

expectantes, mudos,
velam pelo voo dos drones

e pelas armas de laser,
no assalto mongol e levantino

ao Elísio Ocidental, aos blessed states,
à terra do nunca do hedonismo,

à vida vegetativa e virtuosa,
aos baluartes invisíveis, virtuais,

defendidos por mísseis Patriot:
a noção de pátria que colapsa

às mãos do chefe imediato e do cacique,
a dona do largo e o ditador a dias,

sob a pálpebra que se fecha
nos satélites atingidos pelo fogo solar."


Paulo Teixeira, A Boda dos Tempos, Lisboa: Língua Morta, 2024, p. 39.

Tuesday, December 17, 2024

FAZÊ-LOS ASPIRAR O SEU PERFUME (para a memória da divina Marisa Paredes)

 


"Nesta fase do percurso, há que docemente aprender a acariciar a louca que existe dentro dela respeitando a liberdade de o ser, sabendo também sê-lo no meio dos homens, narizes dos outros, fazê-los aspirar o seu perfume sem que o compreendam. Espalhá-lo, simples e discreta, e lentamente ir observando o que acontece."


Risoleta Pedro Natálio, O Aniversário, Lisboa: Difel, 1998, p.51. 

Monday, December 16, 2024

INFINITA FIGURA

 




"Anjo Branco. Infinita figura.
Companheiro impassível. Deserto
de qualquer criatura.

Tocador de instrumentos cinzentos.
Adejante penumbra nos ventos.
És de pedra. Infinita figura.

Se tens voz - a memória te escuta.
Se tens forma - a memória te oculta.
Tocador de instrumentos cinzentos.

Estás nos olhos, nos lábios de alguém
que te espera e não sabe que tem
os teus dedos nos seus movimentos."



Natércia Freire, Obra Poética, vol. I, Lisboa: INCM, 1991, p. 153.

Sunday, December 15, 2024

ORGANIZAR

 


"Uma preocupação começa no entanto a tomar forma. Como nos organizamos neste caos de pensamentos de que somos feitos? Passamos de minuto a minuto do pensamento mais contraditório para o seu oposto e todos levamos a sério como se nós próprios fôssemos constituídos de múltiplos seres fragmentados, mudando de eu a cada momento. Como organizar o caos?"


Risoleta Pedro Natálio, O Aniversário, Lisboa: Difel, 1998, p. 25. 

Saturday, December 14, 2024

O CÉU E O INFERNO



"Maia, maia, tudo ilusão.
Ainda há pouco ardia de raiva, julgava que morria, e agora aqui estou, metida dentro de uma banheira com água gelada, feliz como em poucos momentos da minha vida. E não teria sido possível experimentar este sentimento se antes não tivesse passado pelo Inferno. Sem dúvida o Céu e o Inferno estão dentro de nós, fabricados por nós, e necessários como o pão para a boca, como o ar para os pulmões."


Risoleta Pedro Natálio, O Aniversário, Lisboa: Difel, 1998, p. 25.

Wednesday, December 11, 2024

SINA

 


" João - Isto em mim é a minha sina. O que quer a senhora?
D. Joana - Ah! não, não... não diga isso, João. Neste mundo não há sinas nem para o bem nem para o mal. Dores todos as sentem, lágrimas todas as choram e risos... vamos, também não há alma tão atribulada, que não tenha conhecido o prazer que dá uma alegria verdadeira."

 
Júlio Dinis, "O Bolo Quente", in Teatro I, Lisboa: Círculo de Leitores, 1979, pp. 12-13. 

Tuesday, December 10, 2024

PALCO

 



"Europa -isca e -fetiche,
arena para os desejos todos,

obstruída por cordão sanitário
na sua torre de vidro transparente,

informe, fragmentária, as nações partidas
em pedaços para mais fácil deglutição,

arde no tempo da extensa flor canicular.
Entregue aos senhores da sequência

e da permutação, dos jogos fúnebres,
um palco para as cenas transformadas."


Paulo Teixeira, A Boda dos Tempos, Lisboa: Língua Morta, 2024, p. 47.

Monday, December 9, 2024

FIN DE SIÈCLE


 "D. Joana - Olhe lá, Francisco, não ponha na mesa vinhos muito fortes nem comidas indigestas. De noite é preciso toda a cautela. Não me agradam nada estas ceias. É isto que estraga por aí tantos rapazes que, aos vinte anos, já andam cheios de achaques, como se fossem velhos... Quem é este rapaz?"

 


Júlio Dinis, "O Bolo Quente", in Teatro I, Lisboa: Círculo de Leitores, 1979, p. 11. 

Sunday, December 8, 2024

CONCEPÇÃO

 



"Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gesto das minhas mãos tontas de amor!

Que te seja propício o astro e a flor,
Que a teus pés se incline a terra e o mar,
P'los séculos dos séculos sem par,
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor!

Eu, doce e humilde escrava, te saúdo,
E, de mãos postas, em sentida prece,
Canto teus olhos de oiro e de veludo.

Ah! esse verso imenso de ansiedade,
Esse verso de amor que te fizesse
Ser eterno por toda a Eternidade!..."


Florbela Espanca, Sonetos Completos, 8.ª ed., Coimbra: Livraria Gonçalves, 1950, p. 181.

Saturday, December 7, 2024

TEMPOS DE PRECARIEDADE

 



"Tempos de precariedade
de abundância de ironias.
É tudo tão suspeito:
vaguear em retrato de poeta
andar por aqui a pé
na cisma suburbana

- e bastar um lampião
para extinguir milhares de estrelas."


Carlos Poças Falcão, Coração Alcantilado, Guimarães: Opera Omnia, 2007, p. 32.

Friday, December 6, 2024

CONSTRUÇÃO

 



"E, depois,o facto de irmos e virmos, e de partirmos de novo, lembra-me um caminha no labirinto. Ora, creio que o labirinto é por excelência a imagem de uma iniciação... Por outro lado, considero que toda a existência humana se constitui por uma série de provações iniciáticas; o homem constrói-se a partir de uma série de iniciações inconscientes ou conscientes. Sim, penso que o título exprime muito bem o que se passa comigo diante do gravador; mas também me compraz devido a ser uma expressão bastante justa, penso, a respeito da condição humana."


Mircea Eliade, A provação do labirinto - conversas com Claude-Henri Rocquet, trad. Luís Filipe Bragança Teixeira, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1987, p. 27.  

À GUISA DE VITRAL

 



"na mão a faca luminosa
a mulher dirige-se
pla ogiva do portão
à guisa de vitral
o sangue faz-se vinho
no avental às flores as manchas
o vinho faz-se fel
no vívere morto separam-se os intestinos
jaz ainda quente o corpo
nas lajes o sol cai
na mulher exacta, o suor
cujas vértebras coladas contra a camisa."


Ana Paula Inácio, As Vinhas de Meu Pai, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2000, p. 25.

Wednesday, December 4, 2024

UM ABERTO SEM FIM

 



"Um aberto sem fim sustém o hábito
que incita o intelecto
a mais longe elevar o empenho. O acto
que maior expandir o seu deserto.
Que só o deserto alicerça. Quanto
dele partir demandará o excesso
de cada coisa difundindo o campo
do seu vazio instituído dentro.
E tudo se dirige para o espanto.
E este toma o seu esplendor de vento
que cresce imóvel. E se torna espaço
onde só pulsa o horizonte aberto."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 264.

Monday, December 2, 2024

PRODUTO ONÍRICO

 


"Há diamantes em bruto soltando-se do inconsciente pela noite, que tenta na tela agarrar e transformar em preciosas pérolas. Os sonhos. São o produto onírico de um Deus, brutos diamantes distraídos da sua verdadeira natureza. Só pela intuição, lá chegaremos. O mesmo tentam alcançar os loucos, os artistas, as crianças, os visionários, os santos e os grandes pecadores. Não há gente mais preciosa neste mundo que... toda a gente. Não há para o santo, ser mais necessário que o pecador, seu outro lado. Como pensar a existência de um sem o outro? As duas faces da mesma moeda. Talvez por isso um santo houve que todas as manhãs, e noites, ajoelhou e agradeceu a Deus o ter semeado no mundo.. o pecado. E não se contentava em fazê-lo assim, ajoelhava também ao meio-dia, e no meio-dia das noites, pedindo a Deus a benesse de mais pecadores ainda. Um santo não se cansa da virtude. Ela nunca o satisfaz; é-lhe tão dependente, que se torna cada vez maior a sua necessidade de pecado, pois sem este não alcançaria o seu reverso."



Risoleta Pedro Natálio, O Corpo e a Tela, Lisboa: Hugin, 1997, pp. 81-82.

Sunday, December 1, 2024

PRIMEIRO, DE DEZEMBRO

 



"Dá-lhes a paz. Um carrilhão repleto,
de repente só flor dominical
a que o limbo de luz de cada objeto
devolva o júbilo da paz geral.

Dá-lhes a paz. Ondículas a celha
dominem no bordo nupcial
de correnteza, onde, um momento, a abelha
cruze de sol e hesite, musical.

Dá-lhes a paz. E ainda a paz. E ainda
celhas e carrilhões e, em cada lado,
água que abunde pela terra infinda

de música e de mel. E um ar dourado
rumoreje de trigo pela quinta
de perpétuo domingo consagrado."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 209.

Saturday, November 30, 2024

SENHOR DA CAMPA

 



"De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando."



Vinícius de Moraes, O Operário em Construção, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986, p. 120.

APREENDER

 


"Dizem os físicos que inicialmente havia o caos, mas não é verdade. O caos persiste nos meus braços e nas minhas pernas, sou uma espécie de substância atómica distraída da estabilidade necessária. 

Às vezes, olho-me por dentro, tentando apreender o pensamento de algum Deus que eventualmente por aí exista, e se assim é, será um pensamento obrigatoriamente caótico, disperso, criativo, hesitante, irónico e cruel. Irritante. Um pensamento de criança. Igual ao do mundo. Igual a mim."


Risoleta Pedro Natálio, O Corpo e a Tela, Lisboa: Hugin, 1997, p. 34. 

Thursday, November 28, 2024

POUSIO

 


"Pousou, de súbito, o frio.
E apareceu um lugar
que era só seu próprio limbo.
Ou uma pausa. Da qual
avultava o fora íntimo
e abria uma espécie de ar.
Que parava. Para o brilho
ir caindo. Se apagar
de forma a fundar-se um sítio
cujo horizonte se vai,
insensível, retraindo.
Recolhendo-se. Por trás
talvez se confundam bichos
e alheiem matagais
na letargia de um ritmo
que prepara o ir nevar."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 129.

NOVEMBRO

 



"Novembro atinge aquela transparência
que se enreda nas árvores, de sorte
que apareça nos troncos a tristeza
feliz de quem os olhe.
E os ramos por onde trepa
ainda a lenta circulação da noite
retém retículas, e a análise discreta
do deslumbrado ver com que se doure.
Assim, Novembro reina.
Mas, se por acaso, chove
somos Novembro reclinado à beira
da transparência que confina a morte."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 124.

Tuesday, November 26, 2024

CREPÚSCULO

 



"Oh tu: sombra perdida numa reminiscência
de céus selados na minha memória: ti, que
um passado desejo despertas na maturação
dos bosques - de onde se elevam os fluidos
húmidos do crepúsculo - e que ao ameno
Sul emprestas o amargo traço de um rosto noc-
turno: dar-me-ás esse véu de palavras
mortas sob as argilas negras do inverno?
Esse cansado impulso de ser num vestígio
de voz - sudário sopro de que vago murmúrio?"


Nuno Júdice, Obra Poética (1972-1985), Lisboa: Quetzal, 1991, p. 275.

Monday, November 25, 2024

SOPRO

 


"Soprou: não te aproximes
dos deuses
sem te acautelares. Ampara

o que não pode
senão amassar
o oculto pão da recusa.

E bebe, infinitamente
bebe

o estrondo repetido
de cada gota

caindo."


José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 71.

Sunday, November 24, 2024

FERMOSA

 


"Ficou despois de morta mais fermosa do que dantes era, pelo que a puseram aonde fosse vista de todos e as mulheres da vila a vinham ver, tocando algumas coisas em seus pés, as quais guardavam por relíquias, porque tinham por mais certo que estava sua alma na glória"


Frei Luís dos Anjos, Jardim de Portugal [1626], ed. Maria de Lurdes Correia Fernandes, Porto: Campo das Letras, 1999, p. 185. 

Saturday, November 23, 2024

UM TEMPO DE ESTRUTURA FRÁGIL

 



"Andando foram. E, depois de andarem,
com a noite a chegar pelo caminho,
abriu-se um tempo de estrutura frágil
que poderia acompanhar os rios.
Aí, parar era possível. Árvores
sugeriam o sono. Mesmo o ritmo
acomodava o lucilar da margem
à sede vagarosa com que os bichos
pungiam o costume dos lugares.
E os deixavam a anoitecer no brilho.
Pararam por ali. Já era tarde.
Passara o tempo a aparecer antigo."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 50.

Friday, November 22, 2024

DENSIDADE




"Puro é o deserto. Porque só mensura
a antiguidade de estar
sendo o em si mesmo. Que pulsa
por um tempo que é quase que sinal
de apenas longe a dilatar a sua
profundidade. Onde vai arredondar-se
essa expansão segura
que sitia um quase virtual
retraimento de matéria. E uma
densidade nem quase material.
Mas o deserto insiste. Indiferente à altura
e à idade arcaica das formas animais."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 39.

Thursday, November 21, 2024

RENTAVA

 



"O sem sítio rentava o onde arcaica
havia a massa de se instaurar, e em sítio.
Nem o ainda media. Nem mais nada
senão silêncio. Para, depois, o brilho
de um prelúdio em negrura iniciática
concentrar a vertigem do vazio.
Depois ainda, foi a vertigem estaca.
Que a vacuidade prévia pegou brio
e estrondo. De onde apareceu a massa
de uma força que sacudia em ciclos
a glória desastrada
que recomeça na dos cataclismos.
E a tudo presidia, não palavra,
mas o silêncio na palavra inscrito."


Fernando Echevarría, Geórgicas, Porto: Afrontamento, 1998, p. 10.

Wednesday, November 20, 2024

ENCONTRO

 




"Tudo tende para o encontro
para o uno e a totalidade, 

seres míticos e grandes espíritos
sarianos, a fórmula mágica

e invariável dos devotos
na oração eterna, 

o vínculo entre a palavra primitiva
e a sua ideia pós-diluviana."



Paulo Teixeira, A Boda dos Tempos, Lisboa: Língua Morta, 2024, p. 85. 

Tuesday, November 19, 2024

COBERTA

 





"Coberta de absurdos
a parede

devolve-me os mortos,
tempo e sombra subindo
no quarto, equações

rangendo, postigo
de sangue apertando
a abordagem do susto."



José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 127.

SOUCIS

 




"Que nada te perturbe: rumor,
trabalho, a carne
peregrina da terra

imersa na escuridão, o
salto

que o poema pode
desenhar. Ne te fais pas
de soucis, come

a lanterna dupla
do riso, sobe

os andaimes das equações
e lambe, sobretudo
lambe
as privadas lágrimas
do sofrimento."


José Carlos Soares, Camel Blue, Lisboa: Averno, 2018, p. 152.

Sunday, November 17, 2024

ROCHA ALTA

 



"Já a Pastora chegava ao alto cume
Da serra, onde é mais alta a penedia,
Dond' o olho abaixo olhando, perde o lume,
E entr' ela, e el-Rei só a lança se metia.
Já lhe chega o Tirano, e já presume
Que nem em terra, ou Céu lhe escaparia,
Quando COMBA gritou: ó rocha alta, onde
Venho buscar abrigo, em ti me esconde.
Ó Maravilha grande! abriu-se a dura pedra.
Obedeceu à Santa a rocha dura,
Obedeceu à Santa, e abriu-se a pedra,
E defendeu-a da cruel ventura.
Também a lança do Mouro abriu a pedra,
Ao pé fica assinada a ferradura,
Ao pé da rocha, onde hoje inda parece,
E na pedra a lançada se conhece.
Tanto que em si recolheu, cerrou-se
A dura rocha, assim de Deus mandada."



António Ferreira, Poemas Lusitanos, vol. II, 3ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1971, p. 29.

DORMITÓRIOS

 



"Não se diz no letreiro que morreu de vinte e um anos, senão que os viveu, porque quem morre ao mundo sempre vive pera Deus e assi nunca morre, e foram, como está dito, seus anos vinte e um, bem poucos a respeito de muitas virtudes que já tinha alcançado; pelo qual em o mesmo letreiro se lhe aplica o que lemos de Enoc no livro do Eclesiástico, isto é, que brevemente cumpriu muitos tempos. Diz mais: que dormiu em paz, porque os mortos hão-de ressuscitar com tanta facilidade das sepulturas como os que dormem de seus leitos e por isso os adros são chamados cemitérios, que é o mesmo que dormitórios. Quando lemos que dormiu em paz, podemos coligir que teve a morte dos justos, que andam na vida sempre diante de Deus, até que no fim se vêm a unir e abraçar com Ele e a descansar em paz, como pedimos nas exéquias de nossos defuntos, sabendo que são bem-aventurados os mortos que morrem no Senhor" 

 

Frei Luís dos Anjos, Jardim de Portugal [1626], ed. Maria de Lurdes Correia Fernandes, Porto: Campo das Letras, 1999, p. 102.