Monday, October 13, 2008

UNIVERSO COMO REALIDADE AMBÍGUA




"«-O universo é uma realidade ambígua.» Por outro lado,
ele mexia o café e respirava apressadamente o ar húmido,
os cheiros da terra, a água a serpentear nos canteiros.
«- Do lado oculto, as coisas daqui tornam-se visíveis. Se-
res duplos, corpos sem alma, etc.» O contacto dos lábios
com a chávena! A neblina dissipava-se, revelando as
colinas, o pequeno bosque, casas já distantes e dispersas,
uma fogueira... e o ruído abstracto de lenha a crepitar
desviou-lhe o pensamento: paisagem? sonho? a construção
de um mundo interior no qual subitamente, ele próprio
perdesse a sua consistência - como se não fosse mais do
que um espírito vagueando entre uma e outra coisa, ali-
mentando a sua existência de qualidades diversas e con-
traditórias: a dureza de uma pedra, a transparência da
água, as cores da vegetação, o fumo do café."



Nuno Júdice, "Rimbaud Inverso", in Obra Poética (1972-1985). Lisboa: Quetzal Editores, 1991, p. 314.