Saturday, October 9, 2010

O TEU LUGAR


"Quando acabou a parábola, as duas grandes alas da humanidade desconjuntaram-se.
Havia uma cruz na enscruzilhada.
A cada um que passava dizia o Cristo de pedra:

«Em vez de ter morrido numa cruz, por ti, antes que tivesse pregado numa lança que me abriu o peito, para com ela te rasgar os olhos da cara. Para deixar entrar a claridade para dentro de ti pelos buracos dos teus olhos rasgados.
«Tudo quanto eu te disse ficou escrito e é tudo quanto ainda hoje tenho para te dizer.
«Se me fiz crucificar para to dizer porque não te deixas crucificar para saberes como eu to disse?
«Não posso, por mais que tente, livrar uma das mãos, pregaram-mas bem, como se prega um crucificado; não posso, por mais que tente, livrar uma das mãos, para te sacudir a cabeça quando vieres ajoelhar-te aqui aos pés da minha cruz.
«Se fosse o teu orgulho de joelhos, ainda era o teu orgulho, mas são as tuas pernas dobradas com o peso do ar.
«Não tenho uma das mãos livres para te empurrar daqui da minha cruz até ao teu lugar lá em baixo na terra.
«Levanta-te, homem! No dia em que tu nasceste, nasceu no mesmo dia um lugar para ti, lá em baixo na terra. Esse lugar é o teu! o teu lugar é a tua fortuna! o teu lugar é a tua glória. Não deixes o teu lugar vazio, nem te deixes pr'aí sem lugar."


Almada Negreiros, A Invenção do Dia Claro, introd. Jerónimo Pizarro, rev. e actualização ortográfica Susana Tavares Pedro, Lisboa: Guimarães, 2010, pp. 40-41.

1 comment:

Anonymous said...

Muito bom gosto. talvez se divirta em: http://papopoetico.blogspot.com/
A Poesia é necessária
Tudo de bom