Friday, July 27, 2012

CERTEZA


" - Estava à tua espera - disse-lhe Encarnação. - Ajuda-me a vestir porque vou morrer hoje.
Aninha não achou nada que dizer porque a viu exactamente como quando era ainda uma criança e se ria das coisas que assustavam os outros. Pareceu-lhe que o vulto de Encarnação se recompunha, ao mesmo tempo que diminuía de tamanho e que os seus cabelos ganhavam cor, emoldurando um rosto frágil, infantil. Viu-a fugir no tempo, transformar-se em bebé e enfim desaparecer. Depois abriu os olhos e encarou a irmã que lhe sorria.
- É então isso a morte?  - perguntou.
- Não é bem isso - disse Encarnação. - Mas é igualmente muito consolador.
Procuraram no armário um vestido de baile que Encarnação fizera para estrear aos vinte anos mas que nunca tivera ocasião de usar. Era um vestido rosa muito claro, enfeitado nas mangas com miosótis de organza. Mas quando lhe tocaram desfez-se numa brisa que cheirava a bolor.
Encarnação ergueu os ombros, resignada. Apanhou o cabelo e vestiu uma bata de riscado cinzento. Depois deitou-se sobre a cama e suspirou.
- Antes que passe a chuva, eu já terei partido. Não chames a Luísa. Incomodar-me-ia muito ver chorar. Dá tempo a que eu me afaste.
Pegou na mão de Aninha, fez um jeito mimado.
- Para ser franca, achei que isto da vida não tem ponta por onde se lhe pegue - disse, piscando o olho. Descaiu a cabeça para o lado direito e começou a arrefecer."
Hélia Correia, O Número dos Vivos, 2ª ed., Lisboa: Relógio D'Água, 1997, pp. 74-75.

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