Sunday, May 26, 2013

EXPIAR


"É quase oblíquo o olhar que lançamos sobre a poesia -
ou a forma como os raios de sol atravessam e se poisam
sobre a cobertura puída e fina do marroquino. No entanto,
os anjos não a compreendem e indiferentes à sua estranheza
apenas os homens nela reconhecem um acolhimento
ainda sem lágrimas, feito de ausências e de amargura.
Discreta maneira de se retirar do mundo,
mantém-na uma seriedade feita de falta,
assim como a mesa de que caíram
os alimentos se apresenta agora
aos nossos olhos inocente e muda.
Mas qual é a moral das palavras?,
como se restabelece o ser na sua falta
de espessura? Não se espere contudo
que da sua prática nos venha consolo-
ou que delas se desprenda um bálsamo
reparador capaz de dissipar as sombras
em que, em nós, mergulha misteriosa
a literatura. A sua massa é anónima.
Sabem-no os deuses que expiam,
pela palavra, a ilusão de um dia se
ter pensando na sua desmesura."


Fernando Guerreiro, Outono, Lisboa: Black Son, 1998, p. 25.

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