Sunday, December 1, 2019

MEMÓRIA ABERTA



"A alma, quando sai da caverna, não podendo ver, sob a crueza do Sol, os arquétipos, vê como que as imagens na água. Alguém já pensara tudo isto, antes dela, mas só muito mais tarde se daria conta disso, embora fosse essa também, precisamente, uma condição prévia da sua visão. O pensamento está pensado, há tanto tempo, descobriu um dia Marta. Se alguém nasce, sem olhar em ouvir, como dizer-lhe o que está pensado e visto? Mais tarde, pensaria que seria melhor deixar no silêncio e na invisão essa criança, não lhe criando desejos. Não ter o vício de a tornar igual a nós, a ela, Marta. E entre a sua longínqua vida rural e a sua actual visão, Marta concluiria que criar desejos e necessidades é um vício de educação, perverso e sem piedade. Crianças cegas-surdas, que poderiam estar na paz da não-memória, martirizadas com os apelos e as estratégias para alcançarem um dia algum dos nossos terríveis desejos. Desejo do que já se teve e terá, memória aberta."

Fiama Hasse Pais Brandão, "Sob o Olhar de Medeia", in Em Cada Pedra Um Voo Imóvel e outros textos, Lisboa: Assírio & Alvim, 2008, p. 167. 

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