Wednesday, April 30, 2014

PARA A. OU DA FELICIDADE



"Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal, 
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal. 

Sem que nisso a desgoste ou desenfade, 
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas, 
Eu vejo-a, com a tal solenidade, 
Ir impondo toilettes complicadas!... 

Em si tudo me atrai como um tesouro:
O seu ar pensativo e senhoril, 
A sua voz que tem um timbre de oiro, 
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte, 
Como a Moda supérflua e feminina, 
E tão alta e serena como a Morte!...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha, 
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha, 
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente, 
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente, 
E afaga como o pêlo dum regalo. 

Pois bem. Conserve o gelo por esposo, 
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos, 
O modo diplomático e orgulhoso, 
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos. 

E enfim prossiga altiva como a Fama, 
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante. (...)"


Cesário Verde, Poesia Completa, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2001, pp. 76-77. 

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