Saturday, November 19, 2016

PRO PAUPERE



"Com efeito, vemos mulheres mal feitas e feias em todos os aspetos
serem adoradas e gozar de grande prestígio.
E os homens riem-se uns dos outros e dão conselhos 
para aplacar Vénus, porque estão atingidos
por uma paixão vergonhosa e os desgraçados
quase nunca percebem as suas próprias e enormes desgraças. 
A preta é "cor de mel", a suja e fedorenta é "simples", 
a esverdeada é uma "estátua de Palas", a seca e nervosa é uma "gazela", 
a baixota e anã é uma das Graças, um "puro grão de sal", 
a corpulenta e matulona é um "portento", "cheia de majestade", 
a gaga, incapaz de falar, diz-se que "ceceia", a muda é "recatada", 
mas, se é impetuosa, de mau feitio e desagradável, torna-se uma "tocha ardente", 
a que tem lábios grossos é "toda ela um beijo", 
aquela que, de tão magra, a custo se mantém viva
é um "terno amorzinho", 
a meio-morta de tosse é "delicada", 
se for cheiinha e mamalhuda, é "Ceres em pessoa, 
depois de dar o peito a Baco", 
a de nariz achatado é uma "Silena" e uma "sátira", 
a de lábios grossos é um "ninho de beijos". 
E seria um nunca acabar se eu quisesse continuar por aí fora. 
Mas seja qual for a designação honrosa que queiras dar
àquela que emana sensualidade de todo o seu corpo, 
a verdade é que há mais mulheres no mundo, 
a verdade é que vivemos antes sem esta, 
a verdade é que faz as mesmas coisas que a feia (e sabemos que as faz)
e ela própria se conspurca a si mesma, a infeliz, com cheiros nauseabundos, 
a ponto de as servas fugirem para longe e rirem às escondidas."


Lucrécio, Da Natureza das Coisas, IV, 1153-1180,  trad. Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2015, p. 257. 

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