Saturday, November 21, 2020

A LENTA DESCIDA DAS ALTURAS

 



"A lenta descida das alturas do clima
para o espaço físico, sem memória, 
sem bandeiras, sem oráculos nem heróis. 

Envolta numa bandagem de gelo, 
a Europa, nas primeiras horas da manhã
de Março, entre o display e a escotilha, 

entre o mapa e o território, adormecida, 
por momentos, na ausência de poder
que se deduz da plácida geografia. 

É uma questão de escala e de altitude
o desejo do cartógrafo: medir o espaço
e desenhar-lhe com os dedos os contornos.

Este o prazer secreto da agrimensura, 
a passagem, numa pausa entre as nuvens, 
da paisagem árida, lunar, à topografia.

Portugal é uma orla, um fino recorte
do mundo, e torna-se mais nítido
o rosto com que fita o oceano. 

Em baixo, os pequenos pontos luminosos
são o presente e a intenção que move
os veículos pelas estradas nacionais.

Desces para uma história de vida, 
além da mancha de retalhos da lavoura. 
O rio, as pontes, a torre e o mosteiro, 

as docas vazias de Alcântara, pontuam 
de referências conhecidas o cenário
onde encenar de novo uma pertença - 

a trepidação no regresso ao script da origem, 
ao logos de nascença, a razia aos prédios
e a queda implacável no real quotidiano."


Paulo Teixeira, A Comoção do Mundo, Lisboa: Caminho, 2020, pp. 31-32.