Tuesday, November 5, 2024

PAUSAS DE LUZ

 



"Nas pausas de luz
trazidas pelos dias com chuva
no regaço enrolas grãos de cinza.
Despedes-te da tarde
num alhear de fogo
enquanto a lua se afunda
nas poças da rua
num agudo rebramir de vozes."



Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Dióspiro - Poesia Reunida 1977-2007, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, p. 202. 

Sunday, November 3, 2024

ABISMADO

 


“Onde acabava o céu e começava a terra? E as árvores rumorejavam, os ralos cantavam – um estrépito novo, profundo, incessante, enchia a noite. Ficou um momento debruçado, escutando a amplidão sonora: invadiu-o uma tristeza diferente de todas as tristezas. Sentiu as lágrimas rolarem-lhe pelas faces. Dir-se-ia que a vida acabara para ele. Como era possível uma pessoa ficar assim de repente como morta, tão longe de tudo que amava? Entre o ser debruçado daquela janela e aquele que momentos antes se abraçara a chorar ao pescoço do pai já não havia relação alguma. Tudo o que até então se lhe afigurara a vida – a sua própria vida – era agora uma coisa tão distante como os montes que costumava fitar, abismado, do alto do Castelo de Leiria. Imaginava que para além ninguém podia ser feliz: era como se o mundo acabasse ali e depois fosse a frieza desolada de um planeta morto. Nesse planeta habitava agora.”


João Gaspar Simões, Internato, 2.ª ed., Portugália Editora, 1969, p. 22. 

Saturday, November 2, 2024

DIA DOS MORTOS


 
“Esta visão deu a Rochester uma satisfação cínica, alimentando provavelmente a sua invocação do «Nada», um soberbo poema existencial que não perdeu nenhum do seu brilho.

«Ó Nada, mais velho até que a Escuridão
Já existias mesmo antes da Criação
E és o único que não teme a extinção.

Antes de haver Espaço e Tempo, não havia tal.
Quando o Nada Primitivo criou algo natural,
Tudo – o quê? - se gerou da união original.

Mas teu poder foi comandado por algo profundo
Que da tua mão, cheia de um vazio fecundo,
Fez homens, bichos, fogo, água, ar e mundo.”


Paul Newman, História do Terror - O Medo e a Angústia Através dos Tempos, trad. Nuno Batalha, Lisboa: Edições Século XXI, 2004, p. 102.

Friday, November 1, 2024

SONETO DE OUTONO

 




"Dizem-me os teus olhos, claros como o cristal:
«Qual é, para ti, estranho amante, o meu mérito?»
- Sê bela e cala! Meu coração, que só preza
A candura dos primitivos animais,

Não quer revelar-te o seu segredo infernal,
Embalo cuja mão me predispõe ao sono,
Nem a seu negra lenda lavrada a fogo.
Odeio a paixão, e o espírito faz-me mal!

Amemo-nos docemente. No abrigo, o amor,
Emboscado, retesa o seu arco fatal.
Conheço os engenhos do seu velho arsenal:

Crime, horror, loucura! - Ó pálida margarida!
Não serás tu, como eu, um sol outonal,
Ó minha branca, ó fria Margarida?"



Charles Baudelaire, As Flores do Mal, trad. João Moita, Lisboa: Relógio D'Água, 2020, p. 151.