Friday, May 1, 2009

EMBELEZAR A DOR


"364

Da poesia se poderá dizer que embeleza a dor,
que cicatriza com as flechas que atravessam
o corpo real,
que é uma flor de espuma que lava a cegueira das cidades.
Enquanto a dor arde e a morte se aproxima - a poesia
fornece-nos um pouco de azul.
Ironia da arte - ela sorri, altaneira quase,
do ruído da vida, do caos cumprido pelos corpos,
da tristeza e do abandono como se fossem coisa de somenos.
Mas, para quem souber ler, a poesia que nos encanta
e quase nos faz esquecer,
também nos aviva a memória para os caminhos do chão
e do ar e das águas,
por mais tortuosos que sejam,
como se ela fosse uma irmã consoladora da dor.
Serão então os fragmentos iluminados da mágoa em cacos
que ficam pelo caminho? Palavras que nos lembram
que nem só de sofrimento se compõem
os percursos do homem?
Que nos recordam os vales da alegria,
os prazeres, os momentos mais delicados?
Poemas são conchas abandonadas por animais sofredores
que nelas viveram - a beleza que resta
de uns traços da humana errância.
O repouso do sobressalto."


Casimiro de Brito, Fragmentos de Babel seguido de Arte Poética, Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, p. 85.

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