Wednesday, January 13, 2010

NOVA TEOGONIA


"Pensando bem, raramente pronunciavam a palavra «amor». Talvez fosse uma coisa bastante fictícia, bastante inútil na vida. Os padres e os políticos falavam de amor. Os fadistas, os poetas, toda essa gente descarada e consumidora de lagostins e de cerveja. Mas vivia-se bem sem o amor. Ou antes, vivia-se melhor sem ele.
Porque: o tal fogo que arde sem se ver é um estado de combustão espontânea que a natureza celebra de tempos a tempos com as suas florestas e pântanos do neolítico, seja o que for.
Porque: o amor é completamente discriminado, proibido e desfavorecido na sociedade moral e ululante quando se trata do amor e as suas repercussões. Não se trata da moral pequeno-burguesa, mas do edifício de dissimulações que faz a sociedade viável dentro dos seus compromissos. E por falar em neolítico, imaginem que aquela terra descampada e seca fora há dez milhões de anos um prado verde, com lagos de límpida água, fresca como um beijo de menino. Viviam lá tartarugas gigantes e sáurios que se arrastavam pelas margens. Flores grandes e pensativas desabrochavam à brisa da noite. Ouvia-se um murmúrio, talvez de sangue que escorre, uma vez a presa abatida. A alma da terra não tinha palavras para se descrever. O amor não tinha sido ainda inventado; só a criação acontecia, vigorosa e imensamente ignorante de Deus. E Deus não existia, porque não era irmão da sua imagem que lhe daria nome e reconhecimento. E um dia a terra morreu, ficou pálida e sedenta, o vento levantava o pó e cobria o céu de pó. Foi quando o homem e a mulher, feitos do pó, começaram a sua caminhada."


Agustina Bessa-Luís, Memórias Laurentinas, 2ª edição. Lisboa: Guimarães Editores, 2005, pp. 126-127.

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