Sunday, January 3, 2010

REGRESSO AO REALISMO MÁGICO E À MONTANHA



"E, depois, peço licença - continuou António Joaquim - para ponderar que as tuas fantasias romanescas são, na maior parte, desnaturais e falsas.
- Ora essa!...
- Espanta-me; mas não te agastes com esta rudeza. Sabes que eu leio os teus romances: é o máximo sacrifício que posso fazer-te das minhas horas de repouso. Em louvor dos teus livros, basta dizer-te que os leio. Prendem-me a curiosidade uns paradoxos de virtude que tu estendes a trezentas páginas. Já fizeste chorar minha mulher; quase que ma ias fazendo nervosa! Foi-me preciso dizer-lhe que tu mentias como dois ministérios, e que timbravas em ter um estilo de cebola ou de mostarda de sinapismos que faz rebentar chafarizes de pranto. Nem assim consegui desacreditar-te! Assim que sai romance teu, minha mulher, combinada com o editor, seca-me a paciência, até que o livro chega de Braga entre um papeliço de açúcar, e o saco do arroz. A pobre mulher começa a chorar no título; estrenouta-se a ler; e, ao outro dia, está desolhada, e amarela como as doze mulheres tísicas que tens levado à sepultura num rio de lágrimas. Tens romances, meu amigo, que mentem desde o título. Comecei, pouco há, a ler um que se chama: «A mulher que salva».
-Então - acudi eu - que tem esse título?
- Não tem senso comum.
- Estou pasmado!... Pois a mulher que salva...
- Não há mulher nenhuma que salve. Homem perdido por uma, não pode ser salvado por outra.
- Cala-te aí! Tu não sabes nada do coração humano, António Joaquim! (...)"


Camilo Castelo Branco, Vinte Horas de Liteira, 2ª ed. revista pelo autor, Lisboa: Companhia Editora de Publicações Illustradas, s.d. pp. 15-16 [actualização do texto]

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