Sunday, June 10, 2012

OLHO PARA LUÍS VAZ


"Mas, de uma maneira ou de outra, os fedores assaltam-nos de todos os quadrantes. Do rio sopra um cheiro agoniativo a conserva de peixe, a esgoto, a curtume de couro. Ah, que bom, mudou o vento! Agora vem uma brisa perfumada de cravinho e de canela. Noz moscada... pão a cozer. Olho para Luís Vaz, a ver se ele nota alguma coisa. A expressão mantém-se inalterada. É a mesma desde que começámos o retrato. A mesma desde que o rio se encheu de galeões. É uma expressão que me está a dificultar - não, a impossibilitar - a feitura deste retrato, encomendado pelo conde, admirador e generoso mecenas do poeta d' Os Lusíadas. Poeta esse que, como todos sabemos, só tem um olho, mas como - ó meu Santo António! - é que um olho só consegue dardejar tanta amargura, tanta ferocidade?"
Frederico Lourenço, "O Retrato de Camões", in A Formosa Pintura do Mundo, Lisboa: Cotovia, 2005, p. 219.

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