Sunday, March 29, 2020

PASSOS




"Senhor, porque as grandes cidades estão
perdidas e desfeitas;
a maior é como fuga de chamas direitas, 
e não há consolo que lhe dê consolação, 
e o seu pequeno tempo escoa em vão. 

Aí vivem pessoas, mal vivem e com dificuldade, 
em quartos isolados, com gestos angustiados, 
mais do que um rebanho de primogénitos assustados; 
e lá fora vigia e respira a terra tua e dos deserdados, 
mas eles existem e já não sabem essa verdade.

Aí há crianças que crescem em degraus de janelas, 
sempre na mesma sombra fria,
e não sabem que lá fora chamam flores por elas
para um dia cheio de espaço, vento e alegria, 
e têm de ser crianças e são crianças, tristes delas. 

Aí se abrem raparigas ao desconhecido
e têm saudades do seu sossego de infância;
mas não existe o que lhes era querido, 
e a tremer fecham-se na sua ânsia. 
E passam em escondidos quartos das traseiras
os dias da desiludida maternidade, 
o choramingar sem vontade de noites inteiras
e anos frios sem luta e sem tenacidade. 
E completamente no escuro estão leitos de mortes alheias, 
e lentamente desejam que o corpo para aí siga;
e longamente morrem, morrem como em cadeias
e apagam-se como uma mendiga."


Rainer Maria Rilke, O Livro de Horas, 2.ª ed., trad. Maria Teresa Dias Furtado, Lisboa: Assírio & Alvim, 2020, pp. 283; 285. 

No comments: