"Tremem os cerros
os favos entumescem;
às meias horas cai
da sombra a sombra.
E a gorda luz
encosta-me à parede."
Luiza Neto Jorge, Poesia, Lisboa: Assírio & Alvim, 1993, p. 268.
"A vida moderna afrouxa o vigor destas imagens. Por certo ela aceita a casa como um lugar de tranquilidade, mas trata-se apenas de uma tranquilidade abstrata que pode assumir muitos aspectos. Esquece-se de um: o aspecto cósmico. É preciso que nossa noite seja humana contra a noite desumana. É preciso que seja protegida. A casa nos protege. Impossível escrever a história do inconsciente humano sem escrever uma história da casa."
Gaston Bachelard, A Terra e os Devaneios do Repouso - Ensaio sobre as imagens da intimidade, trad. Paulo Neves, 2.ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 89.
"Olhavam-se os suplicantes, interditos: tinham esperado outra fala, algo de transcendente! Afinal, expressava-se como qualquer um deles, abstraindo das faculdades espantosas de ouvir e ver, talvez perceber..."
Filomena Cabral, Em Demanda da Europa, Porto: Campo das Letras, 1997, p. 21.
"Assim disse:- Sou condenado a ver, ainda que fechasse os olhos, me tapasse com a veste, tal como serei condenado a ouvir, mas não sofrais por mim, duvido que pudesse sofrer por vós! O tempo em que os deuses e os homens se sacrificavam por amor ao próximo, passou, assim não poderei dizer-vos que vejais naquele que vos segue um irmão, sim que nele estais vós, não ignorais que, actualmente, tendo-se perdido o sentido de grupo, resta a preocupação com a própria pele!"Filomena Cabral, Em Demanda da Europa, Porto: Campo das Letras, 1997, p. 21.
"A natureza era espectáculo grande e simples. Os sábios é que, com suas pesquisas imprudentes, suas exigências excessivas a des-serviam, como que, debruçado sobre uma poça de água límpida, não se contentando com a imagem pura que ela espelha, agita as águas e revolve o fundo, em busca da alma das linhas e das cores, que ninguém atinge."
Antero de Figueiredo, "Leça da Palmeira", in Jornadas em Portugal, 7.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d. p. 304.
"O mal, tal como o fundamentalismo religioso, é, entre outras coisas, uma nostalgia de uma civilização mais antiga e simples, na qual havia certezas, como a salvação e a condenação, e onde sabíamos onde estávamos. Neste sentido, o Pinkie de Greene é um moralista estrito e antiquado. Num sentido curioso, o mal é um protesto contra a qualidade degradada da existência moderna. O Diabo é um reacionário da classe alta que acha a existência moderna repugnante. Nem sequer é suficientemente profundo para ser danado. O seu objetivo é injetar nela algo um pouco mais espiritualmente exótico."
Terry Eagleton, Sobre o Mal, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 121.
"Na nossa atual condição desvirtuada, diz Nat, o amor de Deus parecer-nos-ia «negação pura». Sem forma ou vazio. Estás a ver? Uma espécie de relâmpago negro que destrói tudo a que chamamos «vida». Deus é uma espécie de nada sublime. É um terrorista do amor, cujo perdão implacável está condenado a parecer uma afronta intolerável àqueles que não podem entregar-se. Os danados são os que experienciam o infinito «bom» de Deus como um infinito «mau». Do mesmo modo, podemos experienciar aquilo a que os historiadores da arte chamam o sublime (montanhas enormes, tempestades no mar, céus infinitos) como terrível ou magnífico, ou ambos."
Terry Eagleton, Sobre o Mal, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2022, pp. 36-37.
"De facto, os seres humanos podem alcançar um certo nível de autodeterminação. Mas só o podem fazer no contexto de uma dependência mais profunda de outros semelhantes, uma dependência que é aquilo que faz deles humanos. É isto, como veremos, que o mal nega. A pura autonomia é um sonho do mal."Terry Eagleton, Sobre o Mal, trad. Pedro Elói Duarte, Lisboa: Edições 70, 2022, p. 23.
"Música e canto; arte formosa moldada, lavrada, bordada, tecida por artistas de fama; e, no conjunto das formalidades, a graça dos movimentos harmoniosos.Tudo, nesse religioso ambiente de beleza, é lirismo festivo nas almas e nas coisas, desde os artesões da abóbada às fisionomias dos santos, em suas esculturas e seus painéis; no profuso ornato da talha dourada, no retábulo e nas capelas - barroco português onde, nas voltas e arquivoltas, nos frisos (estes, às vezes, séries de cabecitas de querubins alados); nas pilastras gregas, entre silvas de curvas decorativas, bailam, uns com outros, meninos gordinhos, nuzinhos; as grinaldas abraçam-se nos fustes salomónicos; criancinhas, de corpos rosados, afagam pombas que depenicam cachos de uvas; e minhotas flores cristãs, mutuamente, boamente se congratulam com as pagãs folhas de acanto dos capitéis coríntios."
"Durante os séculos XIX e XX a escola assumiu pouco a pouco todas as funções da educação - nomeadamente as que pertenciam antes de mais - à comunidade e, depois, à família. Hoje é na escola que se aprende a andar na rua e nas estradas, a respeitar o Estado e a Pátria, a obedecer a todas as suas minuciosas prescrições policiais e fiscais - e até mesmo a fazer amor."
Philippe Ariès, «Prefácio», in Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 18.
"A cortesia, um dos conceitos então mais difundidos, não constituía uma virtude de pequena importância. A sua origem era ilustre: «A Cortesia desceu do Céu, quando Gabriel saudou a Nossa Senhora e Elisabeth veio ao seu encontro.» Ela abrangia simultaneamente regras de boas maneiras e uma moral comum: não mentir, não se endividar, falar «com honestidade», e também: servir bem o seu senhor à mesa, na intimidade, no trabalho, na corte, na guerra e na caça, saber guardar segredos."
Philippe Ariès, «Prefácio», in Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 13.
"Para que o fundo bom de uma criança se manifeste por todos os lados (e ele reluz sobretudo no rosto), o seu olha deve ser doce, respeitador e honrado; os olhos duros são um indício de violência; olhos fixos, sinal de atrevimento; olhos errantes e vagos, sinal de loucura; eles nunca devem olhar de viés, o que é próprio de um sonso, de alguém que prepara uma maldade; também não devem ser desmesuradamente abertos, como os de um imbecil; baixar as pálpebras e piscar os olhos é um indício de frivolidade; mantê-los parados é indício de um espírito preguiçoso - e disso acusou-se Sócrates; olhos perscrutadores denotam irascibilidade; olhos demasiado vivos, ou muito eloquentes, um temperamento lascivo: convém sim que reflitam um espírito calmo e respeitosamente afectuoso. Não foi por acaso, com efeito, que os velhos sábios afirmaram: a alma depõe-se no olhar."
Erasmo, A Civilidade Pueril, trad. Fernando Guerreiro, Lisboa: Editorial Estampa, 1978, p. 71.
" - En la Antigüedad - prosiguió la implacable acusada -, el vicio era sagrado porque el ser humano era fuerte. En nuestro siglo es vergonzoso, porque nace de nuestro agotamiento. Si fuéramos fuertes, y si además tuviéramos quejas contra la virtud, estaría permitido ser vicioso, haciéndose creador, por ejemplo."
Rachilde, Monsieur Venus - Novela materialista, trad. Rodrigo Guijarro Lasheras, Oviedo, KRK Ediciones, 2017, pp. 163-164.
"O presente é inconsciente como a juventude: - só na idade reflectida se mede o prazer que passou. O prazer é vivaz e efémero; a recordação vem esmorecida, mas pousa e fica. A alegria vale, sobretudo, pelo fio de doçura que deixa a saudade nevoenta...Quando fruímos um prazer, com a ardência do sol em chamas, estamos a preparar o luar desse gozo: o deleite brando e demorado de o relembrar."
Antero de Figueiredo, Jornadas em Portugal, 7.ª ed., Lisboa: Livraria Bertrand, s.d., p. 1.