Thursday, January 6, 2011

DOS MAGOS E SUAS VESTES



"Durante a noite os três reis foram transportados para a cripta da igreja de S. Jorge, fora das muralhas. Reinaldo quis vê-los, e explodiu numa série de imprecações indignas de um arcebispo:
- Com bragas? E com este barrete que parece de um jogral?
- Senhor Reinaldo, assim se vestiam evidentemente naquela época os sábios do Oriente: há uns anos estive em Ravena e vi um mosaico onde na veste da imperatriz Teodora os três estão representados mais ou menos assim.
- Precisamente, coisas que podem convencer os greculos de Bizâncio. Mas imaginas se apresento em Colónia os Magos vestidos de malabaristas? Vamos vesti-los de outra maneira.
- E como? - perguntou o Poeta.
- E como? Eu consenti que comesses e bebesses como um feudatário escrevendo dois ou três versos ao ano e tu não sabes como hás-de vestir quem foram os primeiros a adorar Nosso Senhor Jesus Cristo?! Veste-os como toda a gente imagina que sejam vestidos, de bispos, de papas, de arquimandritas, sei lá!
- Saquearam a igreja-mor e o bispado. Talvez possamos recuperar paramentos sagrados. Vou tentar. - disse o Poeta.
Foi uma noite terrível. Os paramentos foram encontrados, e até qualquer coisa que pareciam três tiaras, mas o problema foi despir as três múmias. Se os rostos estavam ainda como vivos, os corpos - tirando as mãos, completamente secas - estavam reduzidos a uma armação de vimes e de palha, que se desfazia a cada tentativa de tirar as roupas. - Não importa - disse Reinaldo - que uma vez em Colónia já ninguém vai tornar a abrir o caixão. Metam paus, qualquer coisa que os mantenha direitos, como se fossem espantalhos. Mas com respeito, não se esqueçam.
- Jesus Senhor - lamentou-se o Poeta -, nem a cair de bêbedo imaginei alguma vez poder vir a enfiar os Reis Magos pelo traseiro.
- Cala-te e veste-os - disse Baudolino -, estamos a agir para a glória do império. - O Poeta emitia horríveis blasfémias e os Magos agora pareciam cardeais da santa igreja romana."


Umberto Eco, Baudolino, trad. José Colaço Barreiros, Lisboa: Difel, 2002, pp. 107-108.

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