Wednesday, July 20, 2011

CHAVE PARA O FUTURISMO


"DIABO (para Jesus) - Deixa de ser Deus um instante, e permite-me que goze um pouco da amável companhia desta senhora, que, há muitos anos, admiro!

MARQUESA (aflita, os olhos em Jesus) - Quererá ele a minha alma?

DIABO - A alma, senhora Marquesa, pode entregá-la a Jesus Cristo. Eu preferia o resto...

MARQUESA  - O resto quê?

DIABO - Esse corpo de rosa e neve. (Para o poeta) Não é assim que se diz em verso, meu poeta?

POETA - Ele também me conhece? A minha fama já chegou ao inferno!(Para o Diabo, referindo-se ao jornalista) E deste novel escritor você já ouviu falar?

DIABO - Conheço-o a si, a ele e a todas as pessoas que me cercam. No inferno, donde venho, é que vós existis na realidade. Lá é que você é um poeta e este senhor é um jornalista. Lá, é que os seres existem. Aqui, neste mundo, e ainda mais nesta Lisboa, sois meras sombras ilusórias. Sois reflexos emanados de inferno, onde as criaturas são estrelas e a vida tem o resplendor do sol.

SENHORAS - Ah! Ah!

OUTRAS - Que horror!

DIABO - Cá em cima, só existe o fumo; mas lá em baixo é que crepita a labareda (Referindo-se a Jesus) Este Deus tem a monomania dos espectros: É a segunda vez que os visita: Mas da sombra não pode sair a luz. Por mais sangue divino que injectes nestes defuntos, serão sempre a mesma carne inanimada. Não te sacrifiques mais. O segredo da vida pertence-me. A vida e o fogo do inferno (E num gesto de desdém) Fica-te com o segredo da morte e divagando entre fantasmas.

MARQUESA - Como o diabo discursa!

POETA - O diabo é futurista!"
Raul Brandão/Teixeira de Pascoaes, Jesus Cristo em Lisboa, Lisboa: Vega, 1984, pp. 84-85.

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