Friday, August 30, 2019

A SAGRADA FACE




"A dentadura encravou-se! Rezai,
prometei abstinência por um ano
para quem a prótese malfeita se despegue da boca.
Ó Deus, como éreis bom, 
rosas, dentes postiços, 
touceiras de coqueirinho, 
a profusão dos milagres. 
Casimiro de Abreu, que não era santo, 
mas que estava nos livros, 
também ele dizia, como Jó, 
como meu pai e minha mãe diziam:
«um Ser que nós não vemos
é maior que o mar que nós tememos...»
Que faço agora que Vos descubro em silêncio, 
mas, dentro de mim, em nossos ossos, 
vertiginosa doçura?
Os dentistas fazem as próteses, não Vós, 
a terra é que gera as rosas. 
Desde a juventude pedi, quero ver Teus Rosto, 
mostra-me a Tua Face. 
Então é este o esplendor, 
este deserto ardente, claro, 
de tão claro sem caminhos!
Esta doçura nova me empobrece, 
nascer sem pai, sem mãe, 
objeto de um amor em si mesma gerado. 
Flor não é Deus, terra não é, eu não sou. 
Pobre e desvalida entrego-me ao que seja
esta força de perdão e de descanso, 
paciência infinita. 
Quase posso dizer, eu amo."


Adélia Prado, "O Pelicano", in Com Licença Poética - Antologia, org. Abel Barros Baptista, Lisboa: Cotovia, 2003, p. 72. 

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