Friday, January 31, 2020

OBSCURO




"Há um comboio que chega devagar
ao rosto das palavras. 

não procures    meu amor     sinónimos secretos
do teu nome      ou dos gestos que
em janeiro largas sobre a toalha de linho
manchada de copos e garrafas vazias
enquanto ergo do chão vestígios de 
um corpo que te espera como no
primeiro dia

para o teu nome todos os sinónimos tão tristes
ou apenas inúteis    porque ninguém
te vai reconhecer no meio deles     e nenhum
te leva ao coração das palavra proibidas que
nasciam com o musgo das paredes da casa
no desolado frio de invernos em que
ao longe nos despedíamos para sempre

há um comboio que chega devagar
ao rosto das palavras em que    sem querer
entraste pelo lado errado    e delas desprende-se
um obscuro cheiro a quartos húmidos
camas desfeitas     ruas de cães vadios
e velhos sujos

e eu espero apenas um sinal
para começar a preparar a minha morte"


Alice Vieira, O Que Dói às Aves, 2.ª ed., Alfragide: Caminho, 2014, pp. 22-23. 

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