Tuesday, November 25, 2008

SINAIS DE FUMO


"Não haverá oficina para as minhas noites.
Vejo-as deitar fumo
como o alcatrão ainda quente
dos meus olhos fundamentalmente
sem trânsito,
ouço-as trémulas ao embaterem
nos ombros da sentinela de gesso
que me guarda o sono.
Não haverá mecânica para estes metais
soldados a frio, armados
sobre a estação
sinistra
onde os anjos fazem transbordo
e seguem, sentados, para o forno
da vida eterna.

Mas eu tenho uma têmpora ferida
pela pata marcial de um leopardo
e sangro o meu instinto
na concepção de uma biologia
mais vulnerável
e perigosa,
e uso a noite para este fim
e para este apenas
- e é de lava e sombra
a substância profana
em que tão avariadamente
trabalho.

Não haverá uma oficina
e os seus elevadores, não haverá
um martelo - não me corrijam,
esta vida vai em sobre-aquecimento
dos seus interiores,
perplexa, marginal,
honesta.

E se a virem parar no meio de uma estrada,

inflamada e contorcida,
é porque aí
encontrou
o mais justo câmbio
de vento
para as suas noites.

Não a reboquem, ponham-lhe flores,

e sigam, sentados, para o forno
da vida que vos coube."


Vasco Gato, Omertà. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2007, pp. 65-66.

1 comment:

Joana Blu said...

sem dúvida, um dos melhores livros da poesia portuguesa dos últimos anos.
um abraço :)