Saturday, July 10, 2010

AS PRISÕES DA VIRTUDE



"- Senhora - retorqui-lhe eu -, se tudo isso é obra do crime, a Providência, que acaba sempre por ser justa, não vos deixará que o gozeis por muito tempo.
- Enganas-te - contrariou a Dubois. - Não te convenças de que a Providência favorece só a virtude; não deve um curto instante de prosperidade cegar-te a esse ponto; para o bom equilíbrio das leis da Providência, é indiferente que Paulo faça o mal, enquanto Pedro faz o bem; a natureza necessita tanto duma coisa como da outra; é-lhe perfeitamente indiferente que neste mundo se pratique a virtude ou o crime; escuta-me com atenção, Teresa - continuou esta corruptora, sentando-se ao meu lado -, eu sei que és esperta e vou fazer tudo para te convencer.
Não é a opção virtuosa do homem que lhe faz encontrar a felicidade, minha filha, pois a virtude, tal como o vício, é apenas um modo de singrar na vida; seguir uma coisa ou outra é o que menos importa; o que é preciso é seguir sempre o caminho mais geral; quem dele se afastar está a laborar pelo erro; num mundo inteiramente virtuoso, eu aconselhar-te-ia a virtude, porque sendo então recompensada, traria consigo a felicidade; num mundo totalmente corrompido, eu aconselhar-te-ia sempre o vício. Quem não seguir o mesmo caminho que os outros está irremediavelmente perdido; irá chocar com tudo o que lhe aparece e, como é fraco, acabará por ser esmagado. É vão todo o esforço das leis para restabelecer a ordem e reconduzir os homens à virtude; prevaricadoras e fracas como são, elas levarão os homens a afastarem-se um tudo-nada do caminho mais batido, mas nunca poderão arredá-los totalmente desse caminho. Quando o interesse geral dos homens os impele para a corrupção, quem com eles não quiser corromper-se está a lutar contra o interesse geral; ora, que felicidade pode esperar quem está continuamente a contrariar o interesse dos outros? Vais talvez dizer-me que é o vício que contraria o interesse dos homens? Eu era capaz de o admitir num mundo composto por partes iguais de bons e de maus, porque nessa altura o interesse duns choca visivelmente com o dos outros; mas não se passa já o mesmo com uma sociedade completamente corrupta; os meus vícios, ultrajando somente o vicioso, determinam nele outros vícios com que ele se desforra, e ambos ficamos felizes. A vibração torna-se geral; é uma série de choques e de lesões mútuas em que cada um, tornando logo a ganhar o que acaba de perder, recupera a todo o momento uma posição vantajosa. O vício só é perigoso para a virtude que, fraca e tímida, não se atreve a agir."


Marquês de Sade, Justine ou os Infortúnios da Virtude, trad. Manuel João Gomes, Lisboa: Antígona, 2001, pp. 281-283.

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